28 de setembro de 2002

SOBRA DE GUERRA, de José Onofre (L&PM, 1982)

SOBRA DE GUERRA, de José Onofre (L&PM, 1982)

Nei Duclós

Fiz uma visita à Bienal do Livro, em São Paulo, para não me arrepender depois. Foi pior: me arrependi durante. Entrei junto com cem mil crianças uniformizadas. Tinha palhaço, pipoca, cafezinho, pizza e, soterrando alguns lançamentos excelentes, muitos livros sobre nada, ostentados por autores capazes de tudo. Fui caçado pelos espalhadores de folhetos nos corredores cheios, umbrais que cercavam estandes de todos os tipos, a maioria vazios nas três horas em que fiquei lá (entre meio dia e três da tarde de uma quinta feira). Mas tive a sorte de esbarrar num baú de livros em promoção, uma caixa cheia da L&PM, que, entre muitos títulos, continha um exemplar da segunda edição de Sobra de Guerra, de José Onofre.

José Onofre está bem servido de fortuna crítica, porque a apresentação do livro é feita por Luis Fernando Veríssimo, seu leitor de longa data. Quem tem um fã de carteirinha como Veríssimo pode aposentar-se sem ter publicado uma única linha - o que não é o caso de José Onofre, jornalista de larga e profunda militância cultural, autor de textos primorosos sobre a melhor literatura e, como prova este livro, um escritor como poucos. Neste vôo literário enxuto e demolidor de Sobra de Guerra, ele entreabre um baú que o tempo - codinome da omissão - pensou ter fechado para sempre.

O que vemos é muito mais do que o corte afiado de suas frases. Mas algumas podem ser destacadas, por ordem de aparição, como nos filmes, para servir de vitrine do que estamos falando:

?A História é o romance das decisões raras.
Você é um cão de caça jogado ainda vivo e jovem num freezer.
Apenas o gesto exato põe em movimento a roda da fortuna.
A máfia entrou na literatura e a literatura entrou no crime.
O que o pais precisa é bom senso e boca fechada.
Dá o fora antes que eu esqueça que sou um humanista.?

Onofre explora a superficialidade da tampa para sugerir a profundidade do poço. O diálogo escasso e alguns perfis ariscos dos personagens narram um crime que parece passional e pode ser político; o sufoco de um apartamento ensanguentado, a redação de jornal rondando a úlcera, uma delegacia com fantasmas no armário são flashes de ambientes que não merecem mais do que um ou dois parágrafos. Sinal de que Onofre não perde tempo para dizer a que veio - já que pressupõe o leitor como um cúmplice, a quem não se deve muitas explicações., afora o essencial - ou seja, os detalhes.

O país que emerge dessa usura narrativa é o mesmo revelado em qualquer mesa de bar, quando se fala pouco para a conversa não desviar a atenção do copo. A contenção leva o leitor a uma paisagem de primeiros planos, quando é possível reconhecer a máscara de cada um. O tiro desferido poupa o espelho quando podemos reconhecer, pelo reflexo da sobra, a essência da guerra. Vemos então um território que o romance policial clássico - e estrangeiro - costuma catar no lixo. Se cavarmos qualquer história de detetive escrita em inglês encontraremos o Brasil naquilo que os personagens adoram pisar, e que aqui costumamos comer. Aparentemente, fica simples escrever histórias policiais com o material que temos à mão. Mas é essa facilidade que nos inviabiliza para o gênero. Não há o que descobrir quando todos sabem de tudo e todos consentem em calar por hábito - terno azul que veste o corpo da covardia. Se não há saída, nenhum caso poderá ser decifrado.

E se não há o que descobrir, todos são bandidos. O inspetor que no início da trama comporta-se com indiferença não reverte, no final - como acontece nos romances do gênero -para uma nobreza tardiamente revelada. Ao contrário: aqui o nosso detetive acaba confundindo-se com a matéria-prima que ele tenta revolver. O mais trágico -e magistral - é que o autor não reivindica a salvação, como acontece de maneira demagógica nos romances policiais.

Tradicionalmente, quando o detetive revela enfim sua humanidade, no desfecho, é o escritor que encontra uma válvula para reconstruir-se e partir para um novo romance. Isso não acontece em José Onofre, porque sua ética é tão destruidora quanto a política recriada em seu livro. Ele fecha o cerco sobre si mesmo e se retira para não mais voltar. Acaba reaparecendo num baú escondido num evento medíocre. Lá ele nos espera, com a chave do seu enigma, contrapondo-se ao horror, armado apenas de algumas palavras.

Se fosse em Londres, chamariam essa postura e essa capacidade de talento. Como é no Brasil, podemos chamá-las de coragem, que é a única arma capaz de revelar a verdadeira vocação para a literatura entre nós.

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