8 de maio de 2003

A língua em risco de risco de vida

Estava com vontade de escrever sobre o crime cometido por alguns jornais que usam "risco de morte" no lugar do clássico "risco de vida". Como quem corre risco é a vida e não a morte, que não corre risco nenhum, e como não me acostumo às besteiras consagradas da imprensa, fui primeiro ao Google e lá encontrei o bom texto do Instituto Gutenberg, que serve de antídoto às modinhas inventadas pela imprensa nesta época de trevas:

IDIOMA


A língua em risco de risco de vida


Novidades da imprensa agridem
fórmulas consagradas do português


Volta e meia, a imprensa patrocina a condenação de expressões clássicas do português e, em nome de uma lógica que não é formal nem dialética, as substitui por alguma genialidade de algibeira. Foi o caso de estar de férias, trocada por "estar em férias" - quando as duas expressões são aceitáveis.
Puseram no índex também o dito "maiores informações", tido como errado, substituído por "mais informações". Ora, uma coisa não é maior que outra somente no tamanho, mas, também, no número, na grandeza, na importância, na qualidade. A troca demanda maiores reflexões.
Igualmente censurada, caiu em desgraça nas redações a expressão "vezes menor". Argumenta-se que uma coisa só pode ser tantas vezes maior (nunca tantas vezes menor) que outra, porque vezes significa adição. É lógica da matemática, não da língua. Pela lógica dos números, a frase "uma vez na vida, outra na morte" só comportaria duas (únicas) ações, mas é empregada com sentido de raramente, e ao longo de uma vida o que é raro, como pobre comer frango, pode ocorrer dúzias de vezes.
Outra patacoada impenitente continua a ser a grafia de nomes de tribos indígenas com letra maiúscula e no singular, como "os Xavante", comum no Jornal do Brasil. De maneira que, já, já os filólogos de jornal podem copidescar o título do poema de Gonçalves Dias, de Os timbiras para "Os Timbira". Não custa lembrar que Gonçalves Dias, indianista exaltado, foi estudioso das línguas indígenas, tendo preparado um dicionário de tupi.
E o que dizer de "Antártida", como às vezes escrevem o Estadão e a Folha, se a palavra vem de ártico, do grego arktos, e o continente de gelo foi batizado como oposto ao velho Ártico? Grandes autores abonam o vernáculo. Castro Alves, em Espumas flutuantes: "O antártico pólo de diamante...". Camões, nos Lusíadas: ""Do mar temos corrido e navegado / Toda a parte do Antártico e Calisto..."
A novidade das revisões intempestivas é "risco de morte" por "risco de vida". Nos jornais, principalmente na Folha de S.Paulo, ninguém corre "risco de vida", frase de clareza solar, indicadora de que a pessoa está em perigo. Na nova ordem lingüística da imprensa, risco, só de morte. Não pensavam assim alguns artífices do idioma. Aluísio de Azevedo, em O cortiço, escreveu: "Delporto e Pompeo foram varridos pela febre amarela e três outros italianos estiveram em risco de vida." José de Alencar, em O guarani: "Não há dúvida, disse D. Antônio de Mariz, na sua cega dedicação por Cecília quis fazer-lhe a vontade com risco de vida."
Tais revisões não deixam de ser purismo, ou, pior, uma tentativa de interpretar a língua ao pé da letra. Pelo andar da carruagem, a imprensa vai banir palavras ou expressões que perderam o sentido literal, como anemia (ausência de sangue), tirar a pressão (vai dizer que tal procedimento mataria o paciente...) ou alpinismo, que, como indica o étimo, era montanhismo exclusivo dos Alpes.

17/04/2002

©Instituto Gutenberg
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