15 de maio de 2003

O CARTEL DA DUBLAGEM

O CARTEL DA DUBLAGEM

Nei Duclós
(nei@consciencia.org)

É incrível como as pessoas sofrem, sem reclamar, com os horrores da dublagem nas televisões brasileiras. Nas poucas vezes em que o assunto vem à tona na mídia, é para elogiar. Um especialista chegou a dizer que a dublagem brasileira é muito respeitada no exterior. Pudera: lá ninguém entende português.
É natural que haja silêncio sobre o assunto, pois esse mercado é dominado por poucos privilegiados. Existem outras empresas, mas é como se fossem uma só: todas cometem os mesmos erros. Todo cartel é tremulamente respeitado no Brasil, onde qualquer tipo de concorrência ainda é encarada como crime. O mais impressionante dos depoimentos dos dubladores é que eles se julgam artistas e possuem teorias sobre interpretação. É por isso que eles “se esforçam” e nos oferecem sacadas geniais como, por exemplo, a voz brasileira fanha do James Stewart. Outra: como confessou um dos envolvidos, a voz de Marlon Brando não está à altura da sua estampa, por isso é substituída por um trinado de galã.
Não é demais lembrar os horrores infantis e geriátricos. Todos os velhos, sem exceção, possuem uma voz trêmula. As crianças, bem, Carrossel basta como exemplo. Mas como todo mundo fica quieto, eles vão em frente e chegamos ao absurdo de assistir o Burt Lancaster, num filme intitulado ‘Rochedo Gibraltar” sendo aterrorizado por netinhos com voz de melodrama do SBT.
Os franceses e alemães que falam inglês com sotaque no original, coitados, são homenageados por erres guturais e guinchos de chucrutz. E de Jack Nicholson a Jack Palance triunfa, poderosa, a voz do Kojak. Esse é mais um sintoma do cartel: apenas meia dúzia de vozes fazem tudo, numa linha de montagem que passa por cima da sensibilidade, da lógica, da arte.
Cenas de multidão são um desastre: juntam meia dúzia para gritar qualquer coisa, transformando momentos drmáticos de massa numa mixórdia. E o que dizer dos sotaques espertinhos dos jovens, os exagerados gemidos femininos e os suspiros gerais? Pior do que os sussurros sem nexo, porém, são as vozes estridentes que rebentam qualquer cena. É inesquecível o exemplo da destruição de uma obra-prima como “El Cid”, de William Wyler. No momento em que Charlton Heston é pressionado para se decidir pela guerra, sua mulher - a pobre da Sophia Loren - começar a guinchar, fanhosamente, implorando para que ele não vá. É de chorar.
Mas como todo mundo fica quieto - “fazer o quê? É o nosso slogan - o guincho asqueroso volta em tudo que é filme, fazendo “arte”, para horror do bom senso. Mas não é só isso. Os programas especiais maravilhosos da BBC
são editados com os dubaldores imitando o que eles imaginam ser o clima dos depoimentos. Um ex-combatente russo, por exemplo, sofrido e pausado em suas ponderações, é massacrado com um tom doentio e inaudível porque o dublador, ao ver aquele cansaço todo, “interpretou" como se o personagem estivesse internado numa UTI. O pior é a perseguição ao movimento dos lábios. Como o velho fala devagar numa outra língua, o dublador espicha as falas e faz entonações falsas para suas frases entrarem a fórceps no depoimento original.
Não podemos esquecer de outros escândalos. Negros, por exemplo, sempre tem aquela voz bem grossa, aranhada, tremida. Não existe um só negro com voz límpida na dublagem brasileira. A não ser o Eddie Murphy, que fala esganiçado. Falando nisso: e os comediantes, como Jerry Lewis e Woody Allen, precisam dizer suas piadas daquele jeito imbecil?
Os dubladores, naturalmente, não tem tempo para ver os filmes. Eles precisam trabalhar muito para o cartel. Se houvesse concorrência real - e como mudar isso se as redes de TV, e seus epígonos na TV a cabo, também são grandes monopólios? - a situação seriaa diferente. Haveria um mínimo de preocupação pela qualidade e o convite a artistas de verdade - atores, e não locutores sem talento dramático.
A culpa é sua, telespectador, que sofre em silêncio a mutilação do resto de lazer que nos cabe - ver televisão, enquanto o Brasil vai se acabando. O som original corresponde à metade de uma obra cinematográfica e não pode ser suprimida e substituída por uivos, muxôxos e interjeições. Está na hora de ligar em massa para as empresas de dublagem e os números de atendimento ao telespectador que estão surgindo e impor um pouco mais de respeito.

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