23 de setembro de 2003

TODAS AS CENSURAS

É hipocrisia falar em “volta da censura”. A censura está mais ativa como nunca, embutida no jornalismo, como se fosse uma instituição, ou pelo menos, uma situação de fato. Há vários tipos. Todos depõem contra a prática da profissão que precisa de liberdade para sobreviver.

DITADURA CIVIL – Nos tempos do AI-5, a censura era feita não apenas da forma como ficou conhecida. O censor dentro da redação, a substituição de informação por receita de bolo e outros eventos fartamente noticiados, eram apenas a parte “nobre”, vamos dizer assim, do assunto. O importante é saber que a censura funcionava como sempre funcionou a escravidão: disseminada em todos os estamentos sociais, no caso da redação, em todos os níveis. Havia a consciência de que você não podia criticar o governo, mas isso era só a casquinha do problema. Você não podia, por exemplo, noticiar determinado acidente, que envolveu o filho de figura pública conhecida. E quem avisava a redação, diretamente para o editor (nem passava, às vezes, pelo diretor de redação) era alguma “otoridade” de plantão. Havia portanto a massificação da censura, que somava a auto-censura e a proibição pontual de todo tipo de evento considerado prejudicial, a nível local, regional ou federal. Como nossa abertura democrática foi um arranjo de poderes, essa prática, instalada na comunicação manteve-se, mas sob outras formas.

É BEM ASSIM - Hoje é comum o fato de algumas pessoas colocarem um “não” à frente do que realmente querem dizer, pretensamente para não dar bandeira da abobrinha ou barbaridade proferida. A pré-emenda fica pior do que o sub-soneto. Já vi na TV alguém dizendo: “Não é que a gente fique desconfiado, mas a gente fica com o pé atrás”. A mania também serve para contrariar os outros. Se você diz algo que realmente conhece ou acredita, sempre tem alguém sacudindo o dedinho dizendo que não é bem assim. Pois é bem assim. A censura do chamado Estado de Direito (onde o crime organizado está mais forte e atuante do que nunca) é muito mais sutil e poderosa, pois quem manda na redação apropriou-se do discurso democrático. Como sou mais antigo do que andar a pé, noto que são sempre os mesmos que mandam, só que com rótulos diferentes. Se vem a reengenharia, são os primeiros reengenheiros; se vem a qualidade total, eles são os mais cheios de qualidade do que todos; se vem o atendimento preferencial ao cliente, eles é que atendem o cliente como ninguém. A farda muda, mas a essência é a mesma. Com a democracia, são os mais democratas, os mais cheios de “passados de luta”. Acrescento: os mais eficientes censores. Nos anos 70, eu costumava brincar que você podia falar mal do presidente Figueiredo, mas jamais do Henfil. Já se manifestava, naquela época de anistia, o perfil da censura que estava se instalando. Nota: nada contra o Henfil, só implicava com o fetiche ao redor dele.

TALENTO, FORA! – Vamos elencar algumas práticas de censura: o colunista que mostra a lista dos bacanas envolvidos no grande crime de colarinho branco, mas não diz nenhum nome; o repórter à frente de uma fábrica e que não identifica a empresa, a não ser que seja noticiário policial; ignorar alguma posição correta de um governo mal visto pela direção; impedir que o repórter ou editor dê voz a pessoas importantes, mas desconhecidas da mídia (a falsa lei da agenda rotativa, sempre com os mesmos nomes falando das mesmas coisas); a divulgação de dossiês armados contra inimigos dos autores do dossiê, sem que a reportagem seja transparente o suficiente para mostrar as implicações da sua fonte; a negociação das denúncias; o poder da mediocridade sobre o talento; o mau uso dos manuais. Os manuais podem ser úteis se não se transformarem no Manual do Escoteiro Mirim, aquele dos sobrinhos do Pato Donald que regulava tudo e informava sobre qualquer coisa. Manual pode ser um parâmetro, especialmente nas pedreiras gramaticais ou nos procedimentos éticos do jornalismo, mas não pode regulamentar aberturas de texto, títulos ou tipos de reportagens. Só posso atribuir a mesmice dos textos da imprensa à imposição dos manuais. Ou à soma de todas as censuras. Mas o realmente trágico é que a liberdade de expressão é apropriada pelos mais desqualificados sujeitos, muitos deles fora do jornalismo, que "testam" (ou seja, desmoralizam) a democracia. Esses tipos lutam pela volta da censura explícita e total, esticando a corda até rebentar, impedindo, com sua nociva influência, que a liberdade tenha chances de se manifestar.

RETORNO – Transcrevo a parte de um poema meu sobre o fim do inverno: “Hoje começa a primavera, com o azul que eu perdera e o som de despertar a terra. “

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