16 de outubro de 2003

CRÉDITO É CIVILIZAÇÃO



Para reconhecer a existência do Outro, é preciso deixar de ser auto-centrado. Quando você admira alguém ou o trabalho de alguém, diga a todos, não se escude na inveja, não lamente a sorte. Esse é um perigo que difunde a dor e o plágio. Mas para reconhecer, é preciso enxergar. O Brasil, país invisível (é tratado como hispânico, por exemplo) tem dentro de si vastas porções de sua civilização completamente invisíveis ou vistas de maneira distorcida. Querem ver uma?

ESPANHOLISMO – Dois jornalistas, escritores da Academia, que deitaram e rolaram no tempo do regime de 64, quando estavam bem acomodados no Império Manchete, continuam sua insidiosa campanha contra todos os avanços do Brasil de 1930 a 1964. São eles: Murilo Melo Filho e Carlos Heitor Cony. Murilo divulga um texto citando um estadista catarinense que alertava para o perigo desses “espanhóis do Sul” que tomariam o poder para sempre. Cony recorda uma viagem a São Borja, terra de Getúlio Vargas, em que elenca os barbarismos locais – atentem: Cony mora na Lagoa, no Rio de Janeiro, terra, como se sabe, onde reina a paz, a concórdia e ninguém morre de bala perdida. Pois bem: nessa mesma época relatada por Cony, meu pai, perto dali (a apenas uns 200 quilômetros) abria a porta da frente das nossa casa no verão e, sofredor de apnéia, dormia à larga em plena calçada, a noite toda. As pessoas passavam e cumprimentavam. Uruguaiana não era nem nunca foi roça, é uma cidade voltada para dois países, hoje conta com cerca de 150 mil habitantes e nos anos 50 deveria ter uns 80 mil. Suas largas ruas e calçadas, desenhadas pela engenharia militar, é um exemplo de urbanismo. Quero destacar a segurança naquela época naquela região. Ninguém perturbava meu pai, dormindo desarmado com as portas da sua casa escancaradas. Não havia motivo para sustos: vivíamos em paz. Não havia portanto a barbárie apontada por Cony, que mora hoje no meio do tiroteio e do horror, mas prefere não ligar a brutalidade que o cerca à tribo a qual pertence – a dos irresponsáveis preconceituosos.

EUROPINHA - Espanholismo é uma acusação injusta para um povo que lutou contra os espanhóis por dois séculos. Outro equívoco é dizer que lá é uma espécie de Europa em miniatura, já que o povo do Sul (esse país imaginário inventado para fazer tábula rasa de três estados, divididos em vários regiões diferentes) seria composto por alemães e italianos de olhos azuis. O Rio Grande do Sul, meus amigos, faz parte do que o cientista Paulo Vanzolini chama de “milagre de português”. Vanzolini esteve na Amazônia, no Pantanal, no Nordeste e em todo o lugar encontrava o brasileiro, sentia-se em casa. Pois no Rio Grande do Sul é a mesma coisa. Impera a vasta população negra, e também a mestiça descendente dos índios, como é o caso de minha mãe, que teve bisavó paterna da tribo guarani casada com um português, e era pela família materna descendente de italianos. Existe também muito descendente de europeu, claro, e os guetos dos imigrantes, alguns, pois a maioria está assimilada à civilização brasileira. Pois são esses guetos os destaques das materinhas ridículas da televisão, que ficam reiterando esse assunto de Europinha no “Sul”. A hegemonia da palavra Sul impede a minha existência, pois sou da tríplice fronteira oeste, um lugar que só aparece no noticiário quando há alguma má notícia, já que é difícil ver matéria favorável sobre Uruguaiana. O que tudo isso tem a ver com crédito? Acho que é preciso enxergar o Rio Grande do Sul na sua diversidade e complexidade e na sua contribuição política (a Era Vargas), cultural (dos Veríssimos a J. A. Pio de Almeida), econômica (a insistência no mercado interno, ponto focal de suas brigas com o poder central, segundo o excepcional brasilianista Joseph Love) e comportamental (o culto às tradições e ao espírito de luta). E não justitificar seus feitos distorcendo sua identidade, como se não pertencesse ao Brasil e fizesse parte dos países do Prata. O equívoco, além da má-fé ( o preconceito contra o Brasil trigueiro), talvez venha exatamente daí: pois não é outro o tal rio que era grande e ficava no sul; tratava-se mesmo do rio da Prata. Mas depois que a colônia de Sacramento foi derrotada por aquelas bandas e a Província Cisplatina voltou a ser Uruguaia no início do século 19, nada mais temos a ver com aquilo lá. Só convívio entre vizinhos, o que é outra coisa.

UM CLÁSSICO OCULTO – Coloquei o poeta maior J. A. Pio de Almeida logo acima por pura provocação. Quem é esse poeta estupendo que hoje está recolhido, quieto, “oculto entre as colunas altas do Silêncio”, como diz, no bairro do Espírito Santo, em Porto Alegre? É um brasileiro também descendente de guarani e portugueses, da estirpe dos primeiros donatários de sesmarias que se fixaram no extremo Sudoeste rio-grandense. Sua poesia pertence ao mais alto patamar da literatura brasileira. Leiam esses versos: ““Há um tapa de jaguar vencido em meu silêncio/ um taciturno fim de época rebelde/ um não-sei-quê de sombra e glória no que eu penso...” Mais: “Procuro temperar o rubro nunca visto/ a cujo faiscar dos ângulos confiro/ relâmpagos de espada estrela pura e vento”. E mais estes: “Atiro nacos de poemas em cima da terra nova/ - eis meu sangue recém/ derramado meu sacrifício vinde ver/ o bravo/ que morre por/ uma coisa que eu não sei se é vergonha ou liberdade.” J. A. Pio de Almeida é uruguaianense, nasceu no interior do município, no meio do pampa, e, menino, foi aluno de um professor de longas barbas e postura bíblica. Sua poesia é clássica e precisa ser conhecida. Voltarei a ele, transcrevendo trechos de seus livros Claves da Harpa e do Vento (Ed. Sulina, 1970) , Ciclo (Lume Editora, 1977) e As Brasinas (crônicas, Age Edditora, 2001). Levei um ano para conseguir convencer o poeta a me enviar estes livros. Agradeço agora no ar pela grandeza do seu gesto, pela gentileza do seu trato e pela majestade da sua biografia, que engrandece o país e nos serve de exemplo. O que João Araújo Pio de Almeida, poeta maior, escreve está gravado no coração da civilização a qual pertencemos, a de uma nação que foi construída com gerações de brasileiros vindos de todas as nações e que encontraram paz e dignidade depois de uma eternidade de sofrimentos.

RETORNO - Recebo mensagem de Fabio Murakawa, repórter que já destaquei aqui, e escritor de literatura de primeira água. As editoras estão demorando, penso eu, em publicar o futuro best-seller “Memórias Póstumas de Gim Tones”, da sua lavra, um magnífico painel sobre o exercício da profissão nestes tempos de barbárie e uma seqüência de personagens inesquecíveis. Aposto que este livro vai vender como água. Entrem em contato com o autor: gim.tones@uol.com.br

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