7 de outubro de 2003

O MUNDO ALÉM DA JANELA


Redação é exílio e a maneira mais eficiente de ficar longe da vida e dos acontecimentos é passar a vida batucando em teclas, de cabeça baixa, trabalhando linguagens alheias e obedecendo a mil imposições dos poderes da mídia. Há, nesse deserto gelado, lugares por onde é possível respirar. Mas a paisagem vista dessas aberturas é sempre sinistra. Só o coração pode tornar-se a nau capitânea que irá te resgatar em meio à névoa.

LÁ FORA - Pode-se argumentar que um repórter vive mais do que um redator ou editor, mas seja qual for a função exercida dentro de uma redação ? de jornal, revista, rádio, televisão ? a maior parte do tempo é dedicada ao ofício bruto, à produção de milhões de linhas ou imagens para o consumo. Por mais vibrante que seja a vida do jornalista, o que pega mesmo é a ?cozinha?, e isso serve para todo mundo. Ontem, revi o início do clássico Todos os Homens do Presidente, e cheguei à conclusão que esse é o único filme americano em que os jornalistas trabalham de verdade. Nos outros, eles vivem aventuras, conquistam princesas, espionam, lutam, atiram. Mesmo uma redação completa como nos filmes de Super-Homem não serve para nada (tanto, que o vilão Lex Luthor, ao destruir tudo, revela que aquilo não passa de um aquário de luxo). Clark Kent é perfeito como repórter : tem certeza que é o Super-Homem, mas não passa de um panaca. Nunca está trabalhando, está sempre sendo desviado para loucas escapadas (como o Tintim, outro repórter que jamais escreveu uma linha). Vendo Redford e Hoffman colocando laudas nas máquinas, tirando papéis amassados do bolso, me deu uma infinita tristeza, não a tristeza dos poetas, como alerta Mario Quintana, daquele tipo ?que em vez de se matar, faz versos? (Quintana é mortal!). Mas repassei as milhões de horas em que fiz aquilo, pressionado pela História. Lembro Mino Carta me dando uma reportagem que ele não gostou e que eu devia reescrever inteira para ?descer? à gráfica em poucos minutos. Era uma reportagem enorme, sobre o enterro do Tancredo Neves. Tive que bolar uma estrutura (a partir do que estava escrito, criei, para costurar a matéria, o tema ?o funeral serviu de teste político para seus organizadores e principais participantes?). Enquanto ia escrevendo, Mino ia lendo e passando a caneta. Tremo só de pensar naqueles minutos terríveis.

VOCAÇÕES - O jornalismo, pelo que tenho visto, é uma vocação rara e a maioria está lá por contingências. Mino, que é um grande pintor (e que desenhava cada edição da revista Senhor), fala muito sobre isso. Conheci poucas vocações. Uma delas é Caco Barcelos, que fez, entre milhares de outras matérias, a magnífica ?Sabotamos a central nuclear!?, com chamada de capa na revista Repórter Três. Caco virou operário em Angra dos Reis e em plena época do regime autoritário civil/militar levou uma máquina fotográfica dessas descartáveis e provou que esteve lá dentro e que, assim, qualquer um poderia entrar - a segurança era furada. O editor da Repórter Três era outro vocacionado, Hamilton Almeida Filho (ninguém mais fala dele? mas que escândalo!). E tem uma lista boa, muitos aqui citados, mas lembrei do Pena Branca, repórter policial e ídolo do Caco. Para não me acusarem de saudosista, quero dizer que a ditadura civil, vitoriosa em 1985, com a morte de Tancredo, e que até hoje dá as cartas, eliminou o jornalismo verdadeiro do Brasil, de uma maneira muito eficiente: cortando a sucessão natural nas redações. Eliminaram-se os grandes repórteres, que sumiram sem deixar vestígios. Sobrevivem alguns poucos, todos ótimos, e formam-se novos, alguns promissores, mas nenhum ainda com aquela grandeza. O ponto de mutação foi a desastrada greve dos jornalistas em 1979, quando o patronato descobriu que poderia fazer jornal sem jornalistas. As redações foram às ruas, cruzaram os braços e... os jornais noticiaram a greve. Foi um erro colossal, sem o apoio dos gráficos. A partir daí, o cargo de diretor de redação ficou restrito às famílias proprietárias (com algumas exceções). Somam-se a necessidade do coronelato político de manter o garrote na nação inerme (desarmada), os negócios mal feitos das empresas de comunicação e temos o quadro tremendo de desertificação.

ESPÓLIO - Os jornalistas que se formaram nos anos 60 e 70 amargam exílio não apenas pela idade ou a morte, mas por essa brutal intervenção na mídia, em que a reportagem cedeu ao evento, a coragem ao tráfico das denúncias, o talento à mediocridade bem comportada, a ousadia à consultoria, a revelação ao compromisso. Para isso, sucumbir ao horror da ditadura civil, é que dedicamos nossa vida. Deveríamos desconfiar: em pleno autoritarismo dos 60 e 70, apesar de tantos sonhos e alguns momentos de euforia, a maior parte do tempo estávamos às voltas com a censura. Ela então, sob a forma do politicamente correto, desceu sobre nós como um anjo mau. Com o agravante apontado hoje pelo obrigatório Mangabeira Unger, na Folha: "A mídia está quase toda quebrada e dependente do governo. Sobram poucos espaços livres". O que nos resta é resistir, de coração em guarda, e contrariar tudo o que aqui escrevi, tomando contato com a mídia que hoje nasce democrática na Internet e lutando para que a grandeza do jornalismo brasileiro volte com tudo às redações e deixe de ser, nelas, uma exceção. Hoje, os jornalistas de verdade continuam sendo assassinados (e os líderes populares, presos). A ditadura civil não perdoa.

RETORNO - O bom de publicar no Comunique-se é que, embaixo do texto, tem sempre comentários. Isso sim é que é vida!

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