17 de novembro de 2003

O TREM VAZIO DO DESTINO

Vocação não basta, é preciso arrumar as malas, despedir-se do seu mundo, gastar sapato até a via férrea e lá pegar o trem que passa sem te dar a colher da marcha lenta. Já exausto, você corre junto aos vagões e gasta sua última força para alcançá-los, imaginando o pior: que faria a viagem de pé, pois não haveria mais lugares vagos. Mas como na porta inacessível da história citada em O Processo, de Kafka, não existe ninguém mais tentando entrar naquele conjunto de rodas barulhentas. Ele foi feito só para ti e seria perdido para sempre se não tivesses tomado a decisão correta na hora certa.

PRIMEIRA COMUNHÃO - O rosto do meu pai contraiu-se quando apareci em pleno ano letivo, de barba e cabelo comprido, vestido jeans e camiseta e casaco roto de brim, bem na hora da almoço. Sentei no chão enquanto o que restava da família naquela época ainda estava na mesa. Minha mãe fez seu gesto típico de preocupação e mudo desespero, que era o de colocar a mão espalmada cobrindo metade do rosto, de cotovelo dobrado, enquanto seu olhar perdia-se em melancólica observação. Tinha enfim um filho perdido. O mesmo que alcançara as melhores notas, que fizera primeira comunhão vestido de branco com uma fita dourada no ombro, de cabelo engomado e uma grande vela acesa na mão, quando entrou com seu colegas na nave mãe da catedral de Santana, sob os olhares das magníficas pinturas de Fulvio Penachi, o melhor, o maior, o mais brilhante pintor do Grupo Santa Helena, de São Paulo, e que tem lá em Uruguaiana suas obras mestras, as mesmas que tinham me criado, embalado e até hoje me inspiram em deslumbramento e orações. Aquele mesmo menino que tinha colocado smoking no Ano Novo, e que cumpria horário comercial nos estudos, das oito ao meio dia no colégio, e das duas às seis da tarde, com intervalo para o café às quatro e meia. Pois o garoto que fazia poemas agora estava matando aula, querendo ir para o Uruguai, justificando sua atitude bárbara com o papo furado de que estudava jornalismo, portanto precisava correr mundo para poder escrever sobre ele. Eu sabia que era tudo mentira. Estava lá só para dizer para meus pais quem eu era, o cara que tinha escolhido uma "profissão" (ou seja, um ofício digno de ser exercido), a poesia, que estava por contingência numa faculdade, de jornalismo, e que acabara de atravessar o pampa onde tinha sido preso uma vez e agora partia para a cidade mais próxima, para ser preso novamente. Não havia heroísmo, havia erro: poderia ter escolhido uma forma mais humana e adulta de me comportar, mas eu estava com a macaca dos 19 anos e nada nem ninguém poderia me impedir. Hoje lembro meus pais e rezo por eles: quem merecia um filho desses, a não ser eles mesmos, amorosas criaturas do Bem, que tudo me deram, inclusive aquela liberdade que fui exibir na minha tosca irresponsabilidade de menino crescido?

OPORTUNIDADES – Se você deixar fora da sua bagagem o veneno do ressentimento, poderá enxergar o horizonte que se abre à sua frente quando tudo parece perdido. Na nossa sociedade sem fundos, temos a tendência de colocar a culpa nos outros, mas basta um mergulho rápido em você para entender que o único problema aqui é você mesmo. Isso tem tudo para ser literatura de auto-ajuda, mas não passa de verdade simples, pois sobram exemplos diários de como o talento se desperdiça em ódios internos, como a falta de reconhecimento acaba minando a esperança e a alma, e como ver alguém subir como um balão de gás para alturas maiores costuma encher as pessoas de supremo horror, como se tudo estivesse perdido e o fracasso fosse definido no berço, como se não houvesse vontade e o destino maior não passasse de algo inacessível. Nosso destino é único e ninguém nos tira. Precisamos apenas trabalhar a seu favor. Escrever como se fosse a última palavra, caminhar para longe de todos os refúgios, abraçar até cansar as pessoas que nos cercam e enxergá-las sempre no que elas tem de melhor.

A PORTA KAFKIANA - Vou resumir a história de Kafka citada acima, já que aqui não transcrevo tudo, apenas cito partes (tradução de Torrieri Guimarães): “Diante da Lei está um guarda. Vem um homem do campo e pede para entrar na Lei. Mas o guarda diz-lhe que, por enquanto, não pode autorizar-lhe a entrada. O homem considera e pergunta depois se poderá entrar mais tarde. "É possível" - diz o guarda. -"Mas não agora!". O guarda afasta-se então da porta da Lei, aberta como sempre, e o homem curva-se para olhar lá dentro. Ao ver tal, o guarda ri-se e diz. -"Se tanto te atrai, experimenta entrar, apesar da minha proibição. Contudo, repara, sou forte. E ainda assim sou o último dos guardas. De sala para sala estão guardas cada vez mais fortes, de tal modo que não posso sequer suportar o olhar do terceiro depois de mim. Durante anos seguidos, quase ininterruptamente, o homem observa o guarda. Esquece os outros e aquele afigura ser-lhe o único obstáculo à entrada na Lei. Antes de morrer, acumulam-se na sua cabeça as experiências de tantos anos, que vão todas culminar numa pergunta que ainda não fez ao guarda. Que queres tu saber ainda?", pergunta o guarda. -"És insaciável". "Se todos aspiram a Lei", disse o homem. -"Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar?". O guarda da porta, apercebendo-se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase inerte: -"Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a". Ao contrário dessa porta, o trem do destino é acessível. Mas não pára se você levantar os braços. E se algum guarda tentar te impedir, atente: aquela é a única viagem a ser feita.

RETORNO - Houve uma explosão de visitas de ontem para hoje, segunda-feira. Fiquei impressionado e emocionado com a carinhosa recepção dos leitores, especialmente dos que não conheço e que agora fazem parte de mim. Isso prova que o Diário da Fonte veio para ficar, e crescerá como as árvores nascidas para dar fruto e sombra, e que espalham sua presença como a paineira, a figueira e o umbu no pampa.

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