23 de novembro de 2003

VIAGEM AO PRINCÍPIO DO MUNDO


O pampa amanheceu na janela do ônibus com o veludo verde do chão pontilhado de tufos de árvores e banhado pelo ouro da alvorada de um dia inesquecível. Espelhos gêmeos, o céu fazia par com o campo, e a cidade aos poucos se apresentava, primeiro nas casas esparsas, depois nas longas e largas ruas, e finalmente no mar de abraços das pessoas, que expressaram a generosidade de uma terra intacta e eterna.

ENCONTRO NA CALÇADA ? Disse naquela hora que talvez não acreditassem em mim quando contasse que estávamos reunidos na calçada em frente da prefeitura, um espaço urbano recuperado pela atual administração do dinâmico e jovem prefeito Caio Repiso Riela, que tem em seu secretário de Cultura, Esportes e Turismo, o compositor, instrumentista e cantor Bebeto Alves (que está lançando seu selo Upa) o braço direito para inúmeros projetos que vai implantar na cidade, a começar por um teatro, que vai funcionar no belo prédio que pertencia à Exatoria Estadual. Éramos uns 20 autores da cidade, debatendo o que era melhor para Uruguaiana. Quando chegou a minha vez de falar, lembrei que foi no mesmo tipo de calçada, na nossa casa em frente ao Colégio Santana (que está esplendoroso, sob administração do Irmão Arno, meu professor de História do ginásio, que voltou depois de muitos anos), onde nos reuníamos para contar causos, debater política e música, atraindo visitantes de todos os quadrandes, vizinhos e parentes, todos em volta de um chimarrão, sob a lua, as estrelas e as luzes da cidade. A idéia de fazer o encontro na calçada dá bem a medida da atual administração: criatividade e projeções para o futuro, resgatando o que Uruguaiana sempre teve de melhor. A idéia, além do teatro, é também construir (as obras começam daqui a pouco) uma bela estrutura de turismo e lazer na beira do rio Uruguai, com passeios de barco, um trapiche para pesca e uma avenida para o exercício físico e passeios dos cidadãos daquele quadrante do mundo. Naquela calçada, naquele momento, num espaço onde pontificam os postes de luz antigos que foram resgatados de depósitos, diante do prédio da prefeitura que um dia foi nosso Grupo Escolar Romaguera Correa (nome do grande dicionarista do pampa), onde aprendi a ler e a escrever, fui tomado pela grandeza do momento e travei no meio das frases, impossibilitado de levar adiante tudo o que sentia. Mas me recuperei depois e tive o prazer de dar entrevistas para as rádios Charrua e São Miguel, emissoras que me ensinaram a gostar de música e do Brasil.

O LIVRO É DO POVO - Na abertura oficial da Vigésima Nona Feira do Livro (que vai até o dia 30 deste mês), o prefeito Riela fez um discurso inflamado, em plena praça Barão do Rio Branco, absolutamente iluminada e maravilhosa, chamando os autores convidados que moram longe. O poeta Luiz de Miranda, o escritor e cineasta Tabajara Ruas e eu fomos saudados pelo prefeito e aplaudidos pela multidão na praça, numa demonstração de carinho que nem nos meus mais loucos sonhos tinha imaginado. Foi absolutamente indescritível. O que a cidade quer agora é reconhecer seus talentos, reaprofundar sua auto-estima, projetar-se como centro cultural e turístico. Encontrei pessoas que há décadas não via e que traziam meu livro "No Mar, Veremos" (que estava lá, graças ao dinamismo da equipe da Editora Globo), embaixo do braço para autografar. Um me disse: vim na praça para te cumprimentar, talvez tu lembre de mim, sou teu amigo há muitos anos. Veio uma professora que diz colocar meus poemas entre seus alunos, que gostam sempre de apresentarem poesia feita por mim como se fosse deles, o que é uma homenagem sincera e profunda da meninada. Junto com a feira de livros infanto-juvenis do Sesc, o evento tornou-se um absoluto sucesso, numa terra que procura difundir ainda mais a leitura e quer ser vista como um centro de propostas. Inclusive Uruguaiana faz parte de um grupo de municípios da Metade Sul do Estado, que está conseguindo uma verba de cem milhões de dólares do Banco Mundial para obras de infra-estrutra, onde entram as obras culturais, o que vai dinamizar toda aquela região, que é o Brasil no que tem de mais sincero e transparente.

TERRA DE ESCRITORES - Outro encontro emocionante foi com Ubirajara Raffo Constant, poeta que teve a coragem de ficar, que está pronto para lançar seu romance de 500 páginas sobre a revolução de 1923. Bira estava no seu Quartel General, um bar em frente à sua casa, e quando me reconheceu me abraçou como nunca. Além de Bira, tive o prazer de reencontrar meu querido amigo Miguel Ramos, vereador da cidade, um dos maiores talentos artísticos do país, aquele cara que foi fazer uma ponta na novela A Casa das Sete Mulheres e foi recebido como um rei pelo genial Othon Bastos. Tive também o prazer de conhecer pessoalmente meu amigo Anderson Petroceli, com quem desenvolvo um trabalho foto-poético sobre a cidade, que me levou num tour memorialístico, me fotografando diante da casa da minha infância (as imagens do evento estarão no www.portaluruguaiana.com.br) e me levando pelos lugares novos e antigos, especialmente lá onde repousam meus pais, irmã e tias. Visitei também a Catedral de Santana, que abriga as grandes obras do mestre Fulvio Penachi, que por si só já justificam uma visita a Uruguaiana. Foi tudo muito intenso e maravilhoso e sobre essa viagem sem fim de apenas três dias falarei ao longo das próximas edições (a síntese do que senti e vivi lá fará parte de um livro que todos os autores se comprometeram a escrever sobre o encontro). Houve também vários outros momentos de grande emoção, quando em Porto Alegre fui visitar o poeta maior J. A. Pio de Almeida, que me recebeu elegantemente de bombacha bege, camisa verde clara, uma faixa colorida na cintura e sua postura de grande escritor e poeta, me falando coisas que guardarei para sempre. Essa foi a viagem da minha vida e a ela estarei sempre retornando, como uma visita permanente a um território mítico, do qual faço parte, com muito orgulho.

RETORNO -

1. Nosso conselheiro editorial e amigo Moacir Japiassu me condecora na sua coluna definindo como o melhor texto da semana "O Iluminista Quântico", que publiquei no Comunique-se sobre a revista Senhor e Mino Carta.

2. O poeta Rubens Montardo Junior destacou-se também na minha visita à cidade com sua atenção e calorosa recepção. Eis uma nova amizade que aprofundo com este conterrâneo que eu ainda não conhecia pessoalmente e que soube ser um anfitrião de primeira.

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