14 de dezembro de 2003

COMO SERÁ O ANO DO LIVRO


Não se trata de marketing, que disso estamos cheios. Nem de divulgar um ramo que agora estou metido até o osso. Falo daquele Ítalo Calvino estocado e ainda não lido, aquele Dom Quixote que te emprestei e não devolveste, aquele Proust interrompido no segundo volume, aquela capa dura que precisa colocar no seu velho Lord Jim. Falo de leitura, de companhia. Nada há para ler, a não ser livros. Basta olhar os jornalões dominicais.

MARIA RITA - Maria Rita chega, Elis se despede. Dois lados da mesma viagem, com diferentes caligrafias. No CD de Maria Rita, a intérprete que revela e inventa compositores, destaca-se uma obra-prima: “Veja bem, meu bem”, de Marcelo Camelo. O vai-e-vem, o leva-e-traz carrega Elis enfim para o Outro Lado – de sua mudez nunca nos conformamos – e nos aporta a filha que chega madura, despertando o milagre: eis que nos pegamos cantando, novamente.Maria Rita chega e todos a inundam de saudade, e não pode ser assim. O certo é recebê-la como um milagre e descobrir com ela o quanto temos ainda intacta a fonte da cultura brasileira, a mesma que resiste e tem uma continuidade alimentada pela grandeza. A chave do cd é “Encontros e Despedidas”, de Milton Nascimento e Fernando Brandt: “São dois lados da mesma viagem/ o trem que chega/ é o mesmo trem da partida/ a hora do encontro/ é também despedida. “ Quando Elis se foi, ficamos na plataforma, tontos de espera. Não houve tempo para despedidas. A chegada da filha significa o adeus de quem nos carregou para dentro da forja divina da canção. É a vez de enfim tirarmos o luto e ter fé, apesar dos problemas.

DA GUERRA - Leio enfim Clausewitz e descubro o óbvio: a guerra, diz ele no início do século 19 (1824) é a ampliação de um duelo, é impor a sua vontade contra a vontade do adversário, e para isso é preciso desarmá-lo. Costumam dizer a bobagem de que no Brasil nunca houve guerra. Parece que o mundo chegou com oito milhões e meio de quilômetros quadrados e disse para o brasileiro: “tó, porque tu é bunitim” . O território foi disputado cada milímetro, contra piratas, potências estrangeiras, traidores de todos os níveis, a ferro, facão, tiro e sangue. Os primeiros donatários, os caras que vieram fazer açúcar nos engenhos, eram obrigados por lei a ter pólvora, armas e chumbo estocados, como nos ensina a professora doutora Nanci Leonzo, da USP, no seu clássico oculto "Forças Armadas na América Portuguesa". A guerra da Independência do Brasil durou dois anos, de 1821 a 1823, com batalhas da Bahia até o Piauí, algumas com mais de 400 mortos, como nos ensina José Honório Rodrigues na sua vasta obra (cinco volumes) sobre a Independência. Há um longo histórico de cidades brasileiras bombardeadas, como Manaus, Salvador e São Paulo, esta em julho de 1924, quando canhões poderosos de 105 mm destruíram bairros operários, hospitais e fábricas. Houve saques por toda a cidade. Metade da população conseguiu fugir. A outra metade se refugiou nas casas e enterrou seus mortos no quintal. Paulo Vanzolini lembra que os portugueses tinham a expressão “limpar o rio”, que era matar índios para a região ser tomada. O Pantanal foi disputado palmo a palmo com a “hispanidad”, los hermanitos tão simpáticos. No Rio Grande do Sul, então, foi bala para todo lado. Quando falo em guerra no Brasil, todo mundo toca na mesma tecla, Canudos. Isso é lembrado porque houve um Euclides da Cunha, assim como a Revolução Francesa teve Michelet (que inventou a mística da revolução 40 anos depois da queda da Bastilha). Há uma dívida histórica no Brasil: o estudo profundo das Forças Armadas. Há muita coisa boa e muita divisão nessa área. Mas falta mais, além de uma disseminação da história da guerra no Brasil, para entendermos porque somos tão belicosos, porque um país tão grande, porque salteadores de estrada nos governam, porque nossos heróis (como os combatentes de Monte Castelo) são desconhecidos e porque até hoje costuma-se sepultar a História, como aconteceu recentemente, quando o aeroporto de Salvador teve seu nome, a data histórica do fim da Guerra da Independência na Bahia, 2 de julho de 1823, substituído por Luis Eduardo Magalhães.

RETORNO - Em 2004, leia livros. Pois 2004 será o Ano do Livro. Se assim sonhamos, assim será.

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