18 de janeiro de 2004

CHUVAS DE VERÃO II



O filme perfeito não me sai da cabeça. Continuo hoje o que comecei ontem neste espaço e abordo a solidão, que ocupa, na obra-prima de Cacá Diegues, um lugar de honra. E faço também um resgate pessoal de outros trabalhos de cineastas da minha preferência, para que possamos ver a paisagem cinematográfica brasileira com sua verdadeira diversidade e competência, que chega muitas vezes no raro patamar da genialidade.

CONFISSÕES DO ISOLAMENTO - “Passei a vida inteira trabalhando em troca de uma caneta dourada. O que fiz da minha vida?”, diz o aposentado interpretado por Jofre Soares (quem pode esquecê-lo em “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, filme maior de Roberto Santos, onde outro grande ator, Leonardo Villar, faz História?)
- “O senhor me desculpe, mas acho que me fodi na vida”, diz a senhora muito antiga, concertista de piano que se desespera diante da inutilidade da sua trajetória e grava sua performance para que futuros netos (que não virão, já que seu filho escolheu como esposa uma velha atriz decadente de teatro de revista) possam apreciá-la.
- “As crianças são a única alegria da minha vida e só faço apresentações para manter a forma”, diz o palhaço aposentado e pedófilo, interpretado por Rodolfo Arena.
- “Eu também preciso ganhar a vida”, diz Juracy, criação do impiedoso Paulo César Peréio, o ator fundamental do cinema brasileiro, quando tenta justificar sua deduragem.
- “Declama aquele poema do brinde, que me emociona tanto”, diz para sua noiva o personagem Paulinho, o adolescente tardio que não sai da escola para não enfrentar a vida.
- “Eu queria ter aquele filho. Mas a pressão foi enorme. Então decidi me dedicar às minhas irmãs”, diz a solteirona Miriam Pires, momentos antes de provar novamente o orgasmo.
Essas frases revelam a solidão de personagens que jamais se encontram e somam-se ao silêncio desesperado de Marieta Severo depois de descobrir a homossexualidade do marido. “Se eu puder fazer alguma coisa por você”, diz o pai e Marieta devolve para essa frase sem sentido um olhar em pânico e um meio sorriso sombrio.
A apresentação visual da solteirona é revelada pelo súbito mutismo do filme, que estava embrenhado no alarido e no zoom. Quando a enfoca pela primeira vez, afasta o olhar da câmara para colocá-la isolada, na calçada, com suas roupas escuras, seu rosto despedaçado.
- “Estou aposentado, não tenho nada para fazer o dia todo”, diz Jofre Soares, olhando os que passam rumo ao trabalho.
Como viver se você foi jogado fora? E o que rompe o isolamento desses personagens trágicos? Primeiro, a súbita aparição de um bandido, amante da empregada (Cristina Aché) do aposentado, que se esconde na casa dele para ser descoberto por Juracy. A busca da polícia alvoroça a rua e agrega as pessoas em torno da tragédia. No mesmo tom, a apresentação do palhaço que reúne em sua volta a ingenuidade popular e a alegria das crianças – contraponto do cerco que o artista faz a uma menina – resulta numa cena que descamba para a ameaça da violência sobre a festa coletiva. O bar onde se encontram os homens sem nada a fazer, fracassados de seus sonhos (como o ex-jogador de futebol que quebrou a perna em dois lugares), é um antídoto para esse cerco de solidão que cai irredutível sobre cada um.
Mas a esperança – que é a salvação possível, a cura da ressaca provocada pelo horror – dá-se pela coragem de enfrentar as dificuldades. A redescoberta do sexo na terceira idade, a auto-entrega do culpado diante da polícia, o carinho pela família, a aceitação do inevitável são remédios que curam de verdade, mesmo que essa cura seja provisória. O filme nos emociona porque não nos pede licença, nos coloca contra a parede mas não tira proveito disso. Ao contrário, nos entrega uma obra de referência, a quem devemos fazer uma visita periodicamente, assim como devemos reler os clássicos.

TODOS OS DOMINGOS DO MUNDO – Assim como Matraga, de Roberto Santos (o cineasta de morreu de um ataque cardíaco depois de um festival de Gramado, onde não recebeu prêmio algum), temos, em Todas as Mulheres do Mundo e Edu, Coração de Ouro, de Domingos de Oliveira, outros exemplos de filmes perfeitos. Anexo à lista São Paulo S.A. (obra-prima absoluta) e O Caso dos Irmãos Naves, de Luiz Sérgio Person e O Assalto ao Trem Pagador, de Roberto Farias. Além, é claro, de O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, Os Fuzis, de Ruy Guerra, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe , de Glauber Rocha. Mas estes são por demais conhecidos e incensados. Nem precisa lembrar o que são – obras-primas brasileiras que deslumbraram o mundo. Só queria chamar a atenção para meus filmes nacionais favoritos que não costumam ganhar o mesmo tipo de admiração e carinho.

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