30 de janeiro de 2004

A QUALIDADE DOS CONTERRÂNEOS


Faço parte de uma geração de pessoas gentis, formada na refrega dura da vida estudantil onde não havia colher de chá, onde bastava tomar bomba numa só matéria para repetir de ano, e se repetisse duas vezes, era convidado a deixar a escola. Meus pares são pessoas como Fernando Pereira da Silva Filho, Carlos Alberto Martins Bastos, Solon Sastre, Rubens Lenar Güez, Gilberto Duro Gick, Lino Antonio Ulharuso, Vicente Torre, Luiz Carlos Etcheverria, Miguel Ramos, entre tantos outros. Todos, claro, de Uruguaiana.

O TREM DEMOCRÁTICO - No seu belo best-seller, que tem o nome de Como é longe Uruguaiana, meu amigo (e colega de aula do meu irmão Luiz Carlos) Fernando Pereira da Silva Filho me envia um exemplar onde revela seu texto limpo, cheio de detalhes, que mistura história familiar com a história da cidade. Fernando resgata, entre vários eventos maravilhosos, uma viagem de trem, esse transporte que foi sucateado criminosamente pelo regime que ainda está no poder, o instaurado em 1964. O hoje Dr. Fernando, dentista renomado, filho da grande amiga da minha mãe, Dona Leda, sua colega de trabalho no Centro de Saúde, dá um banho de memória e criação literária, ao contar cada curva daquela estrada inesquecível, cada tipo que viajava naqueles trens puxados por uma esforçada Maria Fumaça, todas as peripécias de viagens que marcaram vidas, pois somos dos confins do Brasil, ou melhor, do seu início, e saíamos às cinco da manhã para chegar, com sorte, a Porto Alegre, às sete da manhã seguinte. Chega ao requinte de descrever o vagão restaurante, esse luxo que não existe mais nas viagens brasileiras, onde havia confraternização, alegria e convívios definitivos. Fernando descreve o cuidado que todos deviam ter ao tentar tomar café enquanto o trem sacudia, a distribuição para o vizinho do pacote de bolacha Maria e a presença fulgurante do chefe do trem. Como diz Fernando, a “autoridade máxima da composição, com poderes de mando irrestritos dentro de todo aquele território, que percorria vagões, vestindo sua farda azul, com algumas insígnias e botões dourados bem polidos e a cabeça coberta por um indefectível quepe da mesma cor”. Fernando tem um estilo direto, saboroso, que recria cenas aparentemente banais, que é o segredo de todo escritor de verdade. Sabemos o quanto custa chegar a esse resultado, sem pretensões, que torna-se poético sem jamais distrair-se da narração. Sua história corre pela linha como uma composição que nos carrega para longe, para a alegria das descobertas de um tempo que ainda está conosco, morando como um parente próximo, e amado porque jamais superado na sua grandeza.

DESTILARIA - Perto da minha casa morava, e ainda mora, a grande família dos Etcheverria. O patriarca era o primeiro funcionário da Destilaria, marco da introdução do petróleo no Brasil. Pois a primeira empresa que cuidou do petróleo em território brasileiro foi a que é hoje a Ipiranga. Um grupo de empresários começou a importar óleo cru de Buenos Aires e a fazer o refino. Mais tarde, com as mudanças da legislação e da política, e devido a uma estratégia com mais chances de sucesso, a empresa transferiu-se para Rio Grande, onde hoje tem sua sede. Luiz Carlos Etcheverria era um dos amigos daquela rua. Muito magro, com calções até os joelhos, era um inventor de palavras. Tinha mais de 15 irmãos. Hoje ele é professor aposentado e reparte conosco a glória de ter fundado o Esporte Clube Guarani, um time de rua que tem mais de 40 anos. A duas quadras, morava (numa casa que continua com sua família) o meu amigo Cabeto Bastos, o mais elegante, culto e gentil exemplar desta geração. Ele faz parte de uma das famílias proprietárias do Grupo Ipiranga. Íamos ao colégio Romaguera Correa no mesmo passo. Usávamos avental branco, um grande tope no pescoço, com nossas lancheiras a tiracolo. Ele quase caiu para trás quando o presenteei com um convite de formatura do pré-primário. “Como conseguiste guardar isso tanto tempo?” perguntou. Eu não soube responder.

SENTINELA - Na minha recente viagem à cidade, tive a felicidade de encontrar no tradicional Hotel Glória o Sólon Sastre, um apaixonado pela obra de Fulvio Penacchi, o maior pintor do Grupo Santa Helena e que tem suas obras primas na catedral Santana da nossa cidade. Comecei então pensar nas pessoas daqueles idos dos anos 50 e 60 e descobri que compartilhamos a mesma formação ao mesmo tempo rígida e amorosa dos nossos pais, do ensino estimulante das escolas públicas e privadas, do debate aberto e franco das idéias, que jamais deixaram quaisquer resquícios de inimizade, isso que atravessamos longa e penosa ditadura. Dei-me conta então que fazemos parte de uma humanidade que procura, hoje, transmitir a todos o que aprendemos, dividir a alegria da conversa, somar esperanças e sentir a genuína alegria no reencontro. Pena que alguns já partiram, como o príncipe Gilberto Gick, aquele que jamais deveria ter nos deixado, pelo tanto que poderia fazer, pela enormidade do espírito, pela inteligência infinita e pela ousadia de chegar sempre na frente. Gilberto era a nossa vanguarda e, como todo sinuelo, sofreu o vento minuano dos tiros na primeira hora, quando ainda estávamos dormindo. Quando acordamos, estávamos desamparados pela perda. Mas o texto, que é sempre trabalho penoso pelo desafio e gratificante pelos resultados, é a poção mágica que traz todo mundo de volta e nos coloca ao redor do fogo.
Somos de Uruguaiana, a cidade-sentinela. Quem vem de outro país nos cumprimenta em primeiro lugar. Respondemos com o abraço das boas vindas, com a aceitação das diferenças, com a certeza de que nascemos para dar o exemplo, já que somos fruto do exemplo maior da geração – e que geração! – que nos precedeu. A geração que nos deu os melhores, a que fundou a nação a partir do nada, e que nenhum respeito ou agradecimento, por maiores que sejam, jamais poderão retribuir tudo o que nos deram.

RETORNO - Fernando Pereira da Silva Filho me envia a seguinte a mensagem:
"Meu prezado Nei - Os amigos são sempre benevolentes. Grato por ter me colocado no mundo. Sei dos meus limites mas pretendo ir alargando-os, antes tarde do que nunca. Apesar de levar uma vida de paulista em Uruguaiana ( dá para acreditar?) pelos meus trabalhos ( tenho três frentes para encarar por dia) tenho me dedicado aos escritos. Sem medo de errar digo que eles são o meu prazer, o meu lazer e minha terapia para enfrentar esse mundo de hoje. Um abraço fraterno e obrigado pelo estímulo. Leio sempre tuas mensagens e vejo que apesar
dos tempos não te desligastes de nossa terra. Quem escreve com o coração não se trai nunca".

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