8 de janeiro de 2004

A RONDA DOS BICHOS E O CÉU DO VERÃO


Os bichos imprimem o desenho dos teus hábitos. Estão próximos demais para serem ignorados. Os predadores domesticados te cercam, os selvagens acasalados te espiam, os habitantes de paragens remotas te sobrevoam. Penas, asas, patas, focinhos, olhos fundos a te enxergar a alma. Eles estão conosco e repartem mais do que água e comida. Partilham o planeta, que longe do tráfego, sabe ser quieto, majestoso, indecifrado.

CORUJAS - No terceiro dia de nossa estadia, uma das corujas chegou até a cerca e pousou, perto da varanda, dando um guincho. Era o sinal mais explícito de sua presença, de seu domínio. Segundos depois, estourou uma bomba com som de canhão. O sujeito deu um sobressalto, mas não levantou vôo. Continuou firme, nos espiando. Mora com sua parceira ou parceiro no terreno baldio em frente, ao lado da plantação de milho, que já está meio troncha pelo calor, falta de água e cuidados, cercada de mato ralo impertinente. O casal faz a ronda e ataca em rasantes os grandes cachorrões que ousam aproximar-se do ninho, feito no chão. Quando explodiu a bomba e Os-Grandes-Olhos continuou no local, firmemente plantado no mourão do muro, dei meu grito de guerra, que inventei neste verão:
- Viva a Marinha do Brasil!
Dizem que é mais uma bobagem que tirei do baú, mas o bordão me acompanhou por toda a virada desse ano novo. Imaginei uma escola de navegação em cada cidade do litoral, para massificar uma prática numa civilização das águas. Imaginei milhões de toras de madeira de lei apreendidas pelo Ibama serem transformadas em barcos novos para pescadores e amadores e o turismo em geral. Imaginei um país que planeja o grande fluxo migratório de volta ao litoral – pois é de lá que viemos, quando arranhávamos as costas, nos dizeres do nosso primeiro historiador, Frei Vicente de Salvador (ele falava em portugueses, mas dá no mesmo). É esse o sentido da grande massa que despenca para as praias: resgatar nossas raízes sobre as areias, a visão primeira do paraíso, longe do inferno terreal do interior. Somos índios a olhar o horizonte em busca de navios, somos soldados portugueses a saudar a Marinha, estamos na plataforma do Brasil que olha o mundo, diante do mar profundo e azul turquesa da nossa costa sem fim. Planejar essa migração, com local adequado para todos, para que não se atroplem, não sejam explorados, saibam navegar, eis o meu sonho deste início de 2004, enquanto o casal de corujas me observava.

GAIVOTAS, CACHORRO - Rodeando por todo o canto, a palavra gaivota, que dá nome a avenidas, pousadas, bares e restaurante. A majestade do pássaro maior das nossas praias, a disputar território aéreo com urubus, bem-te-vis e picapaus. A conviver com os poucos barcos dos pescadores que restaram, no canto de algumas praias, em comunidades despossuídas de terras que a especulação imobiliária pegou, afundadas nas dunas, para depois serem expulsos de lá em nome da “preservação ambiental”. Enquanto isso, postes de luz fincam-se firmes na areia movediça e tudo é permitido no litoral, onde se coloca carros em cima do dorso de Netuno, o deus exangue. Mas a barbárie fica a alguns quilômetros. Aqui, a vida é outra. Acho que não terei a oportunidade de testemunhar um evento que deve ocorrer em breve: a visita do cocker Nick ao mar, que desde que chegou na praia, ele pressente que existe. As pessoas saem pesarosas, com os rostos caídos e voltam radiantes, molhadas e salgadas. Ele cheira e desconfia. Algo enorme esconde-se pra lá do horizonte, perto das montanhas, quem sabe. Mas é cedo. Ele ainda se recupera da travessia do país num edredon no banco de trás do carro, tremendo sem parar num dia de Natal, para poder ficar agora escondido em algum canto da grama do quintal. Ele sonha com a noite do dia 24 de dezembro, quando em Curitiba fez de tudo, desde verter água em todas as plantas do hotel, e até mesmo cair, na manhã seguinte, com cinco graus de temperatura mínima, em plena piscina, obrigando seus donos a uma delicada operação de salvamento. A longa jornada do cocker em direção ao mundo muito maior do que ele imaginava é a saga que levou Nick para um lugar onde ele agora cheira tudo, observa tudo e já começa a latir para os que passam, pois seu território começou a ficar firmemente demarcado.
Só não pode chegar perto das corujas, que elas não deixam. Nem alcançar as gaivotas, que estão muito acima do que um pobre cão pode viver ou pensar.

ASTRONOMIA POPULAR - Enquanto isso, diante do céu estrelado, o poeta explica para seus filhos a existência das improváveis Três Joaninhas, uma carreirinha de estrelas apagadas que estão perto das Três Marias e que, desconfio, só existiam porque Tia Ceci um dia nos disse que elas estavam lá. E estão mesmo!
A astronomia popular de Uruguaiana sobe aos céus da ilha encantada. Ouve-se mais um tiro de canhão:
- Viva a Marinha do Brasil! grito, sem nenhum freio.

Tem gente que sacode a cabeça, achando estranho.
Mas há verões e verões. Este fica na história.

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