25 de fevereiro de 2004

O FALSO CINEMA DE AUTOR


Brian de Palma e Martin Scorsese - e sua versão ainda mais perversa, Quentin Tarantino – substituíram o espaço criado nos anos 60 e 70 por inventores como Arthur Penn e Sam Peckinpah, e por meio de um cinema vazio e apelativo tentam assumir a postura de autores, quando não passam de comerciantes da pior qualidade com pose de pais da matéria. Enquanto isso, a linhagem que tem Nickolas Ray como estrela maior encontra em Clint Eastwood sua mais bem acabada realização. Já David Lean e Fred Zinnermann continuam sós, ocupando a olimpo da genialidade sem terem deixado descendentes.

TUDO DESÁGUA NELE – Scorsese costuma pontificar na televisão como uma espécie de historiador do cinema, com um detalhe: o de que toda a maravilhosa produção cinematográfica italiana, de Vittorio de Sica a Fellini, de Rosselini a Visconti, acaba redundando na própria obra dele, Scorsese. Não é muita pretensão? Basta aturar o horrendo Taxi Driver, um filme que confunde transgressão estética com a instauração de uma indústria da maldade e da perversão, para ver que tipo de mente doentia tem esse sujeito. O cinema dele suga o espectador para devolver nossa alma em farrapos, e isso não pode ser encarado com um elogio (é moda aplaudir o horror como se fosse vanguarda). Tem sua porção italianinha com os Bons Companheiros, que ele tenta misturar comédia com tragédia, tentando imitar o “truque “ (na versão dele) de De Sica, esse sim um gênio, que criou inúmeras obras-primas, como Ladrões de bicicleta e Casamento à italiana (inteiramente chupado por Silvio de Abreu numa dessas novelas globais). Scorcese adora usar esse canastrão de marca maior, Robert de Niro, que não serve nem para engraxar os sapatos de Al Pacino e acha que fazer careta é arte de primeira grandeza. De Niro se presta a inúmeras performances que só intensificam sua falta de jeito e talento para esse ramo. Basta um milésimo de Sean Penn, um cordão de sapato de Tim Robbins para desmascarar essa fraude. Scorsese não faz cinema de denúncia (já que é sabujo do sistemão) como Arthur Penn, que em Caçada Humana ou Bonnie and Clyde consegue fazer um retrato da América fora do círculo de giz do autismo ideológico dessa nação. É por isso que encontraram em Scorcese o antídoto perfeito para o impacto causado por Penn, um cineasta como poucos. Além disso, Scorsese está longe de contribuir para o cinema como fez Sam Peckinpah, que colocou sangue na tela (o que era proibido pela censura estética conservadora) e filmou pela primeira vez a morte em câmara lenta (o que agora é usado até o infinito) sem se dobrar aos maneirismos “de autor”, apenas criando novas soluções visuais para traçar o perfil da América violenta. Cineastas originais precisam ser corajosos, o que não é o caso de Scorsese.

ENGULHOS - Nem tampouco Brian de Palma, essa contrafação do suspense, que, em princípio, odeia mulher. Está passando na HBO Femme Fatale, uma palhaçada com o execrável Antonio Banderas (o pior ator do mundo) e uma fauna de preconceitos (o negrão facínora, a loura vagabunda e cruel, a morena coitadinha, as lésbicas exibicionistas). Tudo provoca engulhos. O roteiro é ridículo, a apelação é extrema. O pior é que de Palma (e isso o aproxima de Scorsese) começa o filme transcrevendo um clássico do cinema noir, com Fred McMurray, como se essa citação o encaminhasse para a glória da autoria, como se fizesse parte do seleto grupo de criadores. Sua versão anódina de Os Intocáveis tinha essa mesma ilusão. O resultado foi um filme cheio de falsidades (como a tentativa de reproduzir a célebre cena de Eisenstein em Outubro, a do carrinho de bebê que desce a escada), além de um ridículo, como sempre, Kevin Kostner, o pseudo galã exilado de qualquer carisma. A cena do assassinato de Angie Dickinson em Vestida para matar é uma sucessão de barbaridades, a declarar o ódio que o autor devota ao sexo que ele deveria admirar. Acham essa cena o máximo, mas é apenas uma maneira de marcar o cinema com momentos de alta voltagem comercial, no pior sentido. Tudo não passa de comércio. Não há, nesses filmes, sinceridade que poderia até gerar muito dinheiro. Há apelo, como se o espectador fosse um sádico igual aos cineastas que produzem esse tipo de porcaria. E vocês notam a cara séria que eles fazem quando dão entrevistas sobre sua "arte"? Como se todos fossem obrigados a acreditar nas mentiras que contam.

RAÍZES - O tal de Tarantino, que nos explode a paciência com suas intermináveis arengas recheadas de violência gratuita, é ainda pior. Ter sido convidado para ser jurado em Cannes é puro deboche. Ele faz parte de uma camada de nulidades onde despontam coisas como o "diretor" Mel Gibson, o rei da patriotada barata. O novo filme de Gibson sobre Cristo deve ser uma besteira só. Sabe-se que ele, claro, apela para a violência estúpida que caracteriza toda a sua obra de ator e diretor. Gente desse quilate merece repúdio. Eles infestam o mundo do cinema e exercem péssima influência. Quando sabemos que David Lean se fez num caldo de cultura onde tinha Alexander Korda e Noel Coward, e que Glauber Rocha bebeu em Visconti de Terra Trema para fazer seu Barravento, e que Walter Salles seguiu os passos de Gloria, de John Cassavetes (autor de verdade) para compor sua obra-prima, Central do Brasil, notamos que o gênio nasce, mas precisa de ambiente para evoluir e se expressar. Num espaço tomado por inutilidades, fica difícil despontar os autores que mereçam ser vistos e respeitados.

RETORNO - Meu artigo sobre David Lean (escrito no bom e velho português) foi homenageado com um link no site em língua inglesa The Golden Years, que é uma seleção de textos sobre o que de melhor se fez em cinema. Está no endereço http://www.thegoldenyears.org/lean.html
É sempre bom saber que a análise livre sobre a arte das artes obtém repercussão. Este é um trabalho feito no calor da hora, sem nenhum vínculo com nada nem com ninguém, a não ser com o desafio de sintonizar, por meio da palavra, com a criação cinematográfica.

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