13 de março de 2004

DIA DA POESIA


Dizem que poesia tem data, 14 de março. Como todo dia é dia de poema, vou dar um mergulho nesse ofício, só para marcar em cima, jogar duro, desarmar e driblar. Coisa de cultura guerreira.

TRAMANDAÍ – Peguei o Maria Fumaça às sete da manhã junto com um grupo de normalistas. Aos nove anos, viajei na carona da minha irmã e suas colegas de classe para desembocar em Porto Alegre no dia seguinte. De lá me levaram para Tramandaí, onde ficamos, uma parentada enorme, numa casa de madeira de apenas quatro peças, que tinha quintal com fundos para o rio do mesmo nome da cidade. Meus parentes fizeram suspense. Me levaram por meio das dunas – naquele tempo, 1957, as dunas estavam lá – e me fizeram subir pela mais alta dela. Foi aí, ao chegar no topo, que vi aquele monstro tomando conta da paisagem. Era um dia de vento e as ondas, altas e iradas, chocavam-se no ar e me desafiavam. O mar, lá, tem uma envergadura de 180 graus, já que no Rio Grande do Sul tudo é aberto, plano, transparente. Desci a duna correndo e me joguei, aos socos, no mar que eu não compreendia. Deixava subir a onda e salpicava-lhe um manotaço de punho fechado. Era a forma de demonstrar alegria, dizer que eu conhecia um novo amigo, que não me entregava assim de primeira, que precisava antes do rito de passagem, uma luta, uma briga, um enfrentamento qualquer. Depois descobri a espuma que se forma quando as águas beijam a areia. Cavei os mais fundos buracos. Fiquei preto, preto, preto. Curei então a asma que o inverno do pampa tinha me cultivado em infernais anos da primeira infância. E quando cheguei de novo no meu “escritório” (a mesa de estudos), fiz meu primeiro poema. “Deus fez o céu, fez a terra”, dizia o primeiro verso. Foi a criação do mundo por meio da poesia. Escrevia cada uma delas na máquina Smith Corona que mais tarde meu pai deu de presente. Teclava forte e o barulho das teclas entrava agudo no meu ouvido. Escudei a audição machucada com tufos de algodão. Fui crescendo por demais da conta e coloquei alguns livros embaixo da máquina (que tinha tipos manuscritos e ficava dentro de uma caixa especial) para não me curvar tanto. Meu irmão Luiz Carlos me via com algodão na orelha, debruçado sobre a máquina, escrevendo sem parar e lamentava: “Mas que cara neurótico”. Mais tarde, quando deixei a faculdade de engenharia para entrar no jornalismo, Luiz Carlos foi o único que saiu em minha defesa. Meu irmão quase gêmeo, com apenas 13 meses de diferença. Implicava comigo, mas sempre foi meu braço amigo.

PRAÇA – Estava eu e Marco Celso Viola colocando poemas em cartolina. Era 1969, o ano graça, segundo Marco Celso. Dizíamos: ei, vamos fazer mais deste, pois está vendendo melhor (cada cartolina com poema, pregada nas árvores da Praça da Alfândega, de Porto Alegre, custava um cruzeiro – e cada cruzeiro pagava um café da manhã completo). Luiz Carlos, que era alvo da nossa crítica ao capitalismo, pois nunca deu bola para nossas veleidades revolucionárias, nos flagrava: “Aí, então os ches guevaras estão pensando em dinheiro, quem diria”. E gargalhava. Já vi Luiz Carlos bravo, triste, impaciente, mas jamais de mau humor. Nada o abate, fortaleza que cruza o tempo. Na praça, juntava gente em frente aos poemas. Um velho vinha emocionado me falar de um poema meu sobre o crepúsculo (“o silêncio constrói sua varanda e eu me sento nela”). Era o auge do desconstrucionismo da linguagem, era moda bater na pobre da língua, bater na poesia a ferro frio. “Ponho minha camisa amarela e saio porta afora” gritava Marco Celso para o público. Nada tínhamos a ver com as modas. Éramos poetas de rua, vivíamos do que escrevíamos. “Somos os melhores”, garantia Marco Celso. Éramos mesmo: os melhores loucos da cidade. Fomos em direção ao abraço do que chamávamos “povo”. Nosso ídolo era Maiakovski e A plenos pulmões nosso poema favorito. Vi uma noite dessas uma atriz declamar esse poema na TV Cultura de São Paulo como quem brinca de roda. “Os cem tomos dos meus versos militantes”, dizia, sorrindo. Dá licença. Maiakoviski não pode ser tratado com frivolidade. Se alguém disser “caros camaradas futuros”, o primeiro verso do genial poema, precisa ficar de pé, usar o timbre mais bruto, gritar se for preciso. Revolução não é frescura.

RETORNO - Hoje foi dia de manutenção do cybershark.net, que administra o portal Consciencia, que por sua vez abriga o meu site (www.consciencia.org/neiduclos). daniduc encarregou-se pessoalmente da migração do servidor e nisso investiu seu sagrado domingo. daniduc, mito da informática free, querídissimo colega dos micreiros revolucionários do Gulib, e meu primogênito, rules.

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