1 de março de 2004

O CINEMA É MULHER

Um decepcionante Bil Murray apresentou, na noite do Oscar, a diretora Sofia Coppola como uma “garota americana” e celebrou o fato de ela ser a primeira diretora a ter indicação para o prêmio. Assim como Sean Penn, que foi reconhecido como o melhor ator da temporada, não representa a categoria “homem”, Sofia representa a si mesma e não o fato de ser “mulher”. Ser homenageada como espécie e não como indivíduo (como notou Jorge Luis Borges) é uma tragédia cultural, logo na arte maior que é o cinema. Como se as mulheres fossem uma exceção nessa atividade que deve tudo a elas e, graças a elas, sobrevive.

OUTSIDER - Sofia viu sua carreira de atriz ser destruída quando interpretou magistralmente seu papel no Poderoso Chefão III. Na noite do Oscar, ela parecia deslocada. Ganhou o prêmio de consolação, melhor roteiro, mas seu roteiro não prescinde da sua direção. Irmãos siameses, texto e imagem deságuam num filme sobre cinema, que denuncia brilhantemente o loteamento do olhar na sociedade globalizada. O crítico Rubens Edwald Filho torceu o nariz para o obra, tratando-a de “um filme sobre viagem”, o que é de uma insensibilidade a toda prova. A chamada Academia jorrou prêmios (11) para o Senhor dos Anéis, indicando assim o caminho a ser seguido: a da distorção da percepção a favor do espetáculo, velha bandeira de Hollywood. Sofia ataca a indústria da qual é uma outsider (por ser uma autora, e não uma lambe-botas do vasto comércio instalado) com um golpe na pleura: se o olhar está sufocado pela brutalidade da comercialização, é hora de buscar outro caminho, encontrar uma saída para o cerco, e essa solução está em colocar o cinema no espelho, para que se reconheça e saia do impasse. Para deixar isso claro, ela aposta na diversidade do relacionamento humano, desvinculado dos lugares comuns e cartas marcadas (portanto, fora dos padrões instalados). Esperamos que Sofia continue firme e não se renda à pressão que, ontem, ficou explícita. O que há contra ela? Não participa da estética oficial (a que destruiu Michael Jackson)? Tem o brilho do gênio num mar de mediocridades? É filha de um dos maiores cineastas do mundo – portanto, seria demais também reconhecer nela uma contribuição decisiva para o cinema? Precisa ser reconhecida como uma american girl para ser aceita? Fiquei tocado com sua maneira tímida de aparecer e falar. Timidez é a ausência do gesto forçado, é a transparência absoluta, é o espírito humano abrindo alas na estudada escola do fingimento das mídias.
Encontros e desencontros (Lost in translation), filme sobre viagem? Bah...

DEAN E PENN - Outro preterido da noite foi o mestre Clint Eastwood, apesar de ter sido parcialmente vitorioso com os dois atores do seu filme Sobre meninos e lobos, Sean Penn e Tim Robbins (melhor ator coadjuvante). Insisto na ligação entre Clint e Nickolas Ray, inclusive na direção de atores. A performance genial de Penn tem tudo a ver com o desesperado James Dean em Juventude Transviada. Essa escola americana de fazer cinema, que consegue o equilíbrio perfeito entre a autoria e a narrativa enxuta e contundente, foi percebida nos anos 50 e 60 pelos críticos franceses do Cahiers du Cinéma, especialmente Godard. Clint mantém a escrita, com o rigor da história bem contada, apesar de sempre render-se ao círculo de giz da América: sua crítica à violência não elimina o perfil americano de ser, antes o consolida, encontrando no caos o insumo necessário para a nação continuar de pé. Não seria condenável se os Estados Unidos não fossem o que são, um império, que ao reificar sua extrema nacionalidade acaba, por tabela, excluindo o resto das nações. Clint contribui com a América, sendo fiel ao espírito da origem, a de um território aberto para todos os povos do mundo, desde que prestem tributo à chamada homeland - coisa que nele chega a ter grandeza, mas em Bush transforma-se em horror e em Billy Cristal (que deitou-se sobre os chamados hispânicos na noite do Oscar) em cretinice. Clint está na dele e é um cineasta de primeira água, admirável, apesar dos seus defeitos (a aversão à Igreja Católica é um deles, e nisso o mestre compactua com os filmes americanos em geral).

O FINO DE TIM - O grande Tim Robbins, com sua cara eterna de menino, que já nos deu maravilhosas interpretações e é também um artista íntegro e crítico, consegue fazer, em Sobre meninos e lobos, um atormentado pai de família marcado por dolorosa experiência na infância. Tim despoja-se de todo maneirismo e carrega seu personagem com intensidade rara. Ele não explode no filme como Sean Penn (que transforma o ódio e o pânico em momentos seminais do cinema contemporâneo). Mas Tim também não é “contido”. Ele implode e quem é do ramo sabe como é difícil conseguir esse resultado. Tim Robbins faz parte desse seleto grupo de atores magníficos que nos lava a alma quando vamos ao cinema. Não concordo que, no filme, ele seja um coadjuvante. Está no mesmo nível dos outros personagens. Essa é a única coisa que se pode criticar no prêmio que recebeu ontem.
Denys Arcand foi também justamente premiado. Suas Invasões Bárbaras (melhor filme estrangeiro) é um tiro na pseudocultura acadêmica e um resgate da verdade nos bastidores do universo intelectual.
Não foi ainda a vez do Brasil (que, apesar de tudo, já ganhou um Oscar, o de melhor ator para William Hurt, no filme brasileiro de Hector Babenco, O beijo da mulher aranha). Mas vamos chegar lá.


RETORNO- Miguel Ramos, o melhor ator brasileiro ao lado de Othon Bastos, escreve elogiando o que falei aqui sobre Encontros e desencontros. Disse que é a primeira vez que lê algo a favor da performance de Sofia no Chefão III. E o que é mais gratificante: diz que sou do ramo. Nesse caso, sou mesmo de Ramos, Miguel Ramos (preparem-se que ele vem aí com novas interpretações magistrais).

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