25 de maio de 2004

A CARTA DO PRIMEIRO AMIGO

O melhor e maior jornalista cultural do país, Juarez Fonseca, me escreve comentando meu romance Universo Baldio. Com o seu consentimento, transcrevo abaixo um trecho da carta, que muito me emocionou e dá uma idéia da amizade que temos desde o primeiro dia em que, em 1968, nos conhecemos. Juarez fazia parte do movimento estudantil e foi o primeiro a me informar sobre o que pegava naquela época de grandes transformações. Depois desse momento, foi sempre o primeiro amigo, aquele cara ponta firme que acreditou no poeta e foi o responsável pela segurança que adquiri em relação à minha obra.

NARRATIVA - "Podes achar engraçado, mas enquanto lia teu livro (não me disseste que tinhas um romance!), e te vendo em carne-e-osso o tempo todo, ia me lembrando de mim também. Algumas daquelas histórias eu já sabia, como a da badtrip de ácido em Porto Alegre, que me foi contada, pouco depois do acontecido, pelo Virson Holderbaum com acompanhamento gestual magnífico. Mas me lembrava de mim porque me VIA em muitas daquelas situações, mesmo sem ter estado lá.
E fiquei te admirando e amando mais, meu amigo, porque esta tua autobiografia é gêmea de minhas emoções, e então mais que um amigo agora te sinto como um irmão amigo. O primeiro tempo do livro não me surpreendeu pelas histórias (a trama) mas pelo tom da narrativa de quem se inventa ao se desinventar. Deixas claro, no vertiginoso segundo tempo, que escrevias o livro por imposição de Honório, ou seja, por imposição da história - e de uma história. O passado desovando o presente e o futuro trazendo o passado a cabresto, com o amor, a perplexidade e a gana que estas coisas exigem. Imagino que ao terminar de escrever Universo Baldio deves ter te sentido como o crente em psicanálise que recebeu "alta" com louvor, se me perdoas pela torta comparação. Imagino que deve ter doído bastante também, embora o olhar para trás seja afetuoso - como não poderia deixar de ser, pois se há uma coisa que devemos amar sem alternativas é nosso passado. Apesar de tudo, a nostalgia é um porto seguro. Uma das matérias primas da literatura é a nostalgia. Já não dizia Pessoa que o poeta é um fingidor e finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente? Um dos melhores livros que li, O Apanhador no Campo de Centeio, é feito do mesmo barro do teu."

URUGUAIANA - "Além do depoimento de geração, adorei teu livro porque também me fascina a história gaúcha e porque tenho uma ligação funda (no meu caso também crítica) com Uruguaiana, com a fronteira, com os platinos. Nos últimos 30 anos estive mais de 30 vezes em Uruguaiana, movido pela Califórnia da Canção. E nunca deixo de vagar pela cidade, de absorver o perfume de umas florzinhas que as árvores das ruas produzem no verão, um perfume que se espalha pelas manhãs e me faz dizer, quando chego: estou de novo em Uruguaiana. Sem falar do Rio Uruguai, da ponte, de Libres, dos correntinos tão iguais a nós em quase tudo. Nunca deixo de ir a Libres comprar vinho, queijo, uns salamitos que só lá tem, azeitonas, galetitas, alpargatas, que trago para casa como um rancho com o cheiro, o gosto e a forma da fronteira.
Mas há algo que devo observar antes de ir-me: em vários momentos o livro revela a disposição de Luís (e do autor, pois o pronome "eu" às vezes se intromete nos relatos da terceira pessoa) em "voltar". Ora para Florianópolis, ora para "o pampa". Aí, pergunto, Nei Duclós: trata-se de uma vontade tua ou é apenas uma mentira literária? Penso naquele poeminha do Mario, de que uma mentira é uma verdade que esqueceu de acontecer, mas também, sei lá de quem, de que uma mentira muitas vezes repetida acaba por tornar-se verdade... Minha vontade é conversar contigo. E sem mais delongas, com desculpas pela piração, o abraço saudoso (de todos os tempos, mas principalmente o de agora) do Juarez ."

CIDADANIA - Pois agora estamos conversados. Aviso aos queridos conterrâneos que Juarez Fonseca é meu candidato para receber o título de Cidadão Uruguaianense. Mais do do que ninguém, ele merece, não só por ser um inventor de amizades, não só por estar, há mais de trinta anos, difundindo, analisando, valorizando a cultura brasileira, como pelo amor que sente pela nossa querida cidade. Juarez é um talento magnífico e seus textos devem urgentemente ser reunidos no formato de livro, para que as novas gerações aprendam a fazer jornalismo cultural e para que os veteranos resgatem o que ficou para trás nesta trajetória terrível e gratificante em que nos metemos nas últimas décadas. E respondo ao Juarez: nunca saí da minha terra, amigo. Meu exílio é pura formalidade. Sempre que abro uma janela, vejo o rio Uruguai.

RETORNO - Assisti ontem na TV Cultura maravilhosa aula do professor Franklin Leopoldo e Silva, sobre fenomenologia e existencialismo. Toda segunda feira, à meia noite e 15 (ou zero hora e 15 minutos de terça) tem aula imperdível no canal da Fundação Padre Anchieta.
2. O professor Mangabeira Unger, que na semana passada defendeu o atual e inaceitável arrocho fiscal, voltou à boa forma na sua coluna obrigatória das terças feiras na Folha: "Uma disputa surpreendente pelo poder - fora dos cálculos dos sabidos, porém dentro da imaginação dos brasileiros - é a centelha que falta. Não faltará se houver cidadãos do Brasil."
3. A China deita e rola, graças à subserviência do governo brasileiro, que pede desculpas pela contaminação da soja (produto maldito que está em baixa no mercado mundial mas continua em alta por aqui, no nosso imenso país que produz esse insumo para comida de porco de país rico, enquanto continua importando trigo). Assim mesmo, o governo chinês veta as empresas que entraram no imbroglio, ou seja, ouve as desculpas, mas desce o pau. Outra coisa são os direitos humanos: somos a favor da anexação de Taiwan, da presença ditadorial no Tibete e das execuções sumárias. E somos também a favor do trabalho escravo na China, já que acreditamos na "constituição" deles. Sem falar na Lucélia Santos, que vai manter a escrita: o Brasil entra com a mulher, e o país estrangeiro - no caso, a China - entra com o homem na produção audiovisual que vai comer no mínimo R$ 7 milhões de dinheiro público via Petrobrás.

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