24 de maio de 2004

O DIREITO À IMAGEM PÚBLICA

O exemplo mais radical de solidão é alguém na rua falando sozinho. A necessidade de ter correspondência com o Outro faz parte da nossa natureza, e sem essa sintonia inventamos algo ou alguém para ocupar o espaço, o que nem sempre é saudável. Precisamos que nos vejam de fato para que possamos existir. Mas, para variar, esse direito à exposição pública foi desvirtuada em função do alpinismo da fama. Os soldados americanos que posaram para a celebridade empilhando corpos no Iraque fazem parte dessa sinistra distorção.

REPIQUE - Paulo Nogueira me envia de Brasília o texto do Sergio Davila, que saiu na Folha, sobre a possível marmelada em Cannes. Reproduzo alguns trechos: "Dos sete prêmios possíveis, quatro foram para o cinema asiático, ao qual Tarantino é intimamente ligado. Tarantino foi direto: Os melhores filmes do mundo vêm hoje em dia do Japão e da Coréia. Havia ainda uma dúvida extra ligada à escolha: Fahrenheit foi produzido pela Miramax, a mesma produtora dos filmes de Tarantino. Vários relatos davam conta de Harvey Weinstein, um dos proprietários do estúdio, dizendo em festas já no começo da semana passada que o filme seria o grande premiado. Tarantino não fez comentários a esse respeito na entrevista, a primeira vez que o júri se justifica perante a imprensa em 57 anos. Indagados sobre a ausência de prêmio para Diários de Motocicleta, dirigido pelo brasileiro Walter Salles, o segundo filme mais aplaudido pelo público no festival, atrás apenas do próprio Fahrenheit 9/11, os membros do júri riram, e Tarantino respondeu que não iriam comentar caso a caso os filmes não-premiados. Com a insistência, a atriz escocesa Tilda Swinton acabou respondendo: Nós simplesmente não quisemos dar um prêmio ao filme. Disse à Folha Walter Salles, por telefone: Não foi uma surpresa, já que o cinema no qual Tarantino acredita não tem nenhuma intersecção com o cinema que nós fazemos hoje na América Latina. Não tem nada a ver com Diários ou o cinema poético e delicado de Lucrecia Martel La Nina Santa, também não-premiado." Ou seja, Tarantino dá duas. Primeiro, despreza o nosso cinema. Segundo, lança uma sombra sobre o magnífico Michael Moore, que merecia um diretor de Cannes mais competente e não apenas uma fraude como esse sub-cineasno apaixonado pela violência.

ORKUT - Daniduc, sempre up-to-date, me informa sobre a grande nova tendência da rede, que é o Orkut, comunidades virtuais compostas por pessoas que procuram atender essa necessidade básica de que falei acima, de reconhecimento mútuo (eu existo a partir do olhar do Outro)- e não só isso, de curtição mesmo, de encontrar gente pelo mundo afora. Daniduc faz parte de uma dessas comunidades e propôs para o seu grupo um exercício interessante e super-criativo: invenção de short stories com no máximo 1024 caracteres. Tive acesso a algumas Whispered, resounding, voice echoed in my mind....
- Freeeee mee...
What in hell was that?! Looked the cup. "Best consumed before" two years ago. I need to spend more time at home.
-FREE ME!
- What the fuck are you?
- I am a Yogurt Genius! Open the cup and free me!
- Fat chance, asshole. I'll throw you away.
- I'll give you 3 wishes!
Well, that seemed fair to me. I opened the cup. Bad smell. A dude appeared out from thin air.
- Well, I wish a...
- Fat chance, asshole - he showed me the finger and disappeared. Never trust a genius.
I hate empty refrigerators."

TORTURA - Vi hoje um documentário que descreve com detalhes um campo de concentração nazista na Áustria. Passados 50 anos, descobrimos que continuamos na mesma. O sofrimento industrial imposto a grupos considerados sub-humanos é gerado por esse equívoco, a de que a humanidade divide-se pelo chamado "sangue". Os povos são formações culturais e não raciais. Às vezes a raça coincide com a cultura, mas isso é cada vez mais raro. O que me impressionou, entre tantas fotos, foi o sorriso dos torturadores. Eles estavam demonstrando fisicamente a felicidade de pertencerem a uma raça superior. O grande drama é a indiferença. Sabemos, por exemplo, que a China vai entrar com tudo nas ferrovias. Precisa de alimentos para sua grande população e uma forma barata de escoar os grãos (e outras coisas mais), como fizeram os ingleses no século 19 por aqui, é apostar no trem. O poder público brasileiro há décadas abandonou as ferrovias porque precisava (?) aumentar nossa dependência ao petróleo. Agora retoma esse transporte mas só para carga, e não para passageiros. Nós ficamos amontoados em carros, ônibus e aviões. O privilégio de andar de trem fica para a soja transgênica.

RETORNO - Urariano Mota, escritor pernambucano, autor de Corações Futuristas, entre outros livros, fez maravilhosa
resenha sobre Universo Baldio. Numa carta, ele destaca os primeiros capítulos da segunda parte do romance, dizendo que eles sobreviverão a mim. Esse é o reconhecimento que buscamos ao expor nossa arte publicamente. Acertar o coração e a cabeça do Outro é o maior privilégio de uma criatura viva.

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