24 de junho de 2004

BRIZOLA, A DEVOÇÃO CÍVICA

Não somos uma religião, Brizola, nem sequer um partido. Somos um sentimento, agradecido pela tua longa existência. Somos hoje o que deveríamos ser sempre, um povo ocupando dignamente a rua. Não queremos revanche, Brizola, porque tivemos a nossa chance. Deus há de nos explicar um dia porque não te colocamos na presidência. E há de nos perdoar por não te enterrarmos hoje como chefe supremo de Estado. Te enterramos apenas como herói da Pátria, como irmão que nos alistou na honra, e como líder que nos ensinou a grandeza que ainda nos falta, aprendizes que somos do civismo verdadeiro, o que não tem volta porque nele devemos apostar não só uma luta, mas toda uma vida.

FRONTEIRA - Foi o que fizeste, Brizola, neste tempo que deveria ser de luzes, mas foi de trevas. Neste interminável pesadelo que acabou nos devorando com suas promessas não cumpridas. Morei anos perto de ti, Brizola. Estavas recolhido no Uruguai, esse refúgio dos guerreiros do pampa, esse lugar que um dia recebeu Honório Lemos e o devolveu armado, à frente de um exército de 800 homens vestindo lenço vermelho. Lembro como tinham medo que cruzasses a fronteira, Brizola. Qualquer movimento e prendiam o orador que saudou o ex-aluno e paraninfo João Goulart numa formatura memorável do Colégio Santana. Como se ele representasse algum perigo. Esse estudante, que sofreu anos a tortura de ser recolhido à prisão me confessou o medo que tinha de acabar sendo o que ele não era, pois exigiam que se declarasse comunista. "Vou acabar me comunizando", dizia ele, amedrontado, com sua cara cheia de espinhas, menino ainda, que no seu discurso havia levantado a voz e a mão para saudar o ilustre presidente que ali estava na sua frente, escutando suas palavras. Tiraram essa glória dele, Brizola, porque tinham medo. E lembro o grande pavor que sentiram quando enfim o coração de Jango não agüentou e aí sim cruzou a fronteira para sempre, num caixão de madeira. Jango foi carregado pela ponte de Uruguaiana, Brizola, para ser carregado até São Borja, onde foi enterrado ao lado de Getúlio. Foi aí que eles sentiram que podiam abrir um pouco, achavam que tinham rompido a linhagem popular que elegia os trabalhistas em todos os níveis, municipais, estaduais, federais. Lembro como foi a gestão de Íris Valls, do PTB, na minha cidade, querido amigo. Uruguaiana era uma cidade esplendorosa, arborizada, rica, cheia de vida. A esposa do prefeito trabalhista foi minha professora do primeiro ano primário e me ensinou a ler. Era assim a têmpera daquelas pessoas maravilhosas que governavam o país e foram expulsas pela incúria, pela violência e pela inveja.

MEMÓRIA - Por isso somos um sentimento, Brizola. Somos essa memória que não cessa de nos estocar com seu arsenal de cobranças. Lembro minha mãe escandalizada com as manipulações do voto que as campanhas políticas já faziam naqueles tempos terríveis. Votem nos trabalhistas, dizia ela, não se deixem enganar. Lembro também meu pai proclamando-se centrista, como Jango, que a todos conseguia passar a perna, dizia, rindo, aquela perna que Jango puxava principalmente quando passava as tropas em revista. Tínhamos então amor às Forças Armadas, Brizola. Elas ainda não haviam sido ludibriadas por essa direita que acabou empalmando tudo, para nos entregar de graça para a pirataria internacional. Lembro que minha mãe ficou de cama quando o novo falso presidente fardado assumiu o poder falando mal dos trabalhistas, os acusando do que nunca foram, de comunistas. Adoecemos todos naquela época, Brizola. Contraímos a tristeza incurável das nações derrotadas. Olhávamos para a fronteira e sabíamos que lá, por trás daquela linha imaginária, estavas em silêncio forçado, louco para voltar. Mas quando voltaste já éramos outros, Brizola. Tiveste que recolher todos os cacos da nação e provar que ainda estava viva a chama da terra brava que hoje faz teu funeral. Foste de rua em rua, de casa em casa e conseguiste de novo a vitória, nesse Rio de Janeiro que será sempre a capital da nação amada e que teve de ser despossuída para que os verdugos triunfassem. O Rio de Janeiro que recebeu Getúlio em 1930 e que te elegeu governador duas vezes, como a repetir que te queria presidente na capital que esvaziaram e que hoje está entregue à sanha da violência.

ACAMPAMENTO - Fiquei impressionado com o rosto de dor da governadora do Rio, Brizola. Como a nos dizer que devia tudo à tua generosidade e que talvez não fora suficientemente explícita no seu reconhecimento. E agora, tarde demais, carrega sua dor incurável pelo velório com a cara transtornada pelo choro sem fim. A política que temos hoje não permite esse tipo de emoção, Brizola. Foi esse sentimento, que desenha o rosto dela, que prevalece nesta hora em que te depositamos na morada definitiva. Apesar das falsidades que desfilaram no teu velório, lá estava o povo, chorando, discursando, levantando os braços, porque algo terrível aconteceu: morreste, Brizola, foste para sempre e levaste contigo a oportunidade de resgatarmos ainda nesta vida o país perdido, a nação brasileira que precisa ressuscitar deste horror a que nos submeteram. Somos devotos do teu civismo, Brizola, e não teus fanáticos seguidores. Não temos fanatismo, porque somos um povo que veio de longe, junto contigo, e soube combater o bom combate. Nossa cultura é de acampamento guerreiro, comandante. Dormimos debaixo de lonas grossas, conversamos ao redor do fogo, nos amparamos no tiroteio, passamos uma bebida amarga e quente de mão em mão. Tem gente que acha graça, Brizola. Mas hoje ninguém ri dos teus compatriotas que te enterram, querido amigo. Mesmo nesta profissão extinta, o jornalismo, houve alguns claros no obscurantismo. Tiveram que fazer a cobertura completa, Brizola, apesar de alguns deboches, de algumas vaidades (todos te entrevistaram!) e desse desfile de fantasmas em vida que se referem a ti como se tivessem te conhecido em toda a tua dimensão. Mas o verdadeiro testemunho já está enterrado, Brizola. Imagino o que diriam Tarso de Castro ou Darcy Ribeiro. Resta apenas a nossa dor e a pobreza destas palavras.

LEVANTE - Porque nasci poeta no pampa que despertaste, te saúdo, Brizola. Assim, sem que ninguém me pedisse e sem que eu tivesse a mínima chance de representar quem quer que seja. Porque também não é a saudade que nos move, Brizola. Não somos saudosos, somos apenas o povo que hoje te enterra. Por nossas mãos desces à terra como um pássaro procura a luz, como a dor que se redime, como o sentimento que aflora. Nosso coração te leva junto, companheiro, nesta jornada ainda no meio, como a bandeira de uma nação que, pelo teu exemplo, se levanta.

RETORNO - "Um texto grandioso para um grande personagem.
Aceite meu abraço." Helena Ortiz (sobre o texto Brizola, do verbo Brasil)."Puxamos o Brasil no laço até as barrancas do rio Uruguai. Somos brasileiros por opção, porque somos livres. E libertários." Elo Ortiz Duclós (num desabafo sincero, no momento em que soube da morte de Brizola).

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