22 de junho de 2004

BRIZOLA, DO VERBO BRASIL


Leonel Brizola lutou praticamente só contra a destruição do Brasil, o país inaugurado em 1930 e devastado a partir de 1964. Nasceu como cidadão quando foi testemunha, ainda no colo da mãe, do assassinato do seu pai, guerreiro da revolução de 1923, que fora desarmado e remetido para casa e perseguido pelos tiranos que tinham jurado a paz das Pedras Altas. Nasceu como político em 1945, quando Getúlio Vargas foi destituído por um golpe militar, e ajudou a fundar o PTB. Morreu testemunhando o estrangulamento total da nação a qual serviu como ninguém, como o primeiro - e, portanto, jamais o último - dos patriotas.

LEGALIDADE - O vasto desenho do seu rosto estava escancarado num painel em frente à minha casa, no Colégio Santana, em Uruguaiana, para onde acorriam os eleitores naquele distante 1958. Simpatizei com aquela cara boa e limpa e, aos 11 anos de idade, subi no muro da minha casa e berrei seu nome o dia inteiro. Ele foi vitorioso nessas eleições para governador, quando mudou o país. Estatizou a multinacional que monopolizava as telecomunicações do Rio Grande do Sul, fundou uma escola rural a cada cinco quilômetros de estrada e quando terminou seu mandato era o mais importante e prestigiado político do Brasil. O presidente americano John Kennedy ficou irritado com ele, que tinha pago um Tamandaré (um cruzeiro) para ter de volta a CRT, a Companhia Riograndense de Telecomunicações. Tinha coragem e tinha grandeza. Quando estourou o movimento da Legalidade, improvisamos um quartel no quintal da nossa casa. Empilhamos os estrados que serviam de suporte para as bolsas comercializadas por nosso pai e colocamos bandeiras em cima dessa pilha. Convocamos todos os homens abaixo dos treze anos de idade. Distribuímos as armas: paus, pedras, cabos de vassoura. Estas, eram as espingardas que colocamos a tiracolo para montar guarda. Enquanto Brizola fazia sua campanha de mobilização por uma rede radiofônica a partir do porão do Palácio Piratini, nós nos revezamos, por uma longa semana sem aula, mantendo-nos firmes contra os golpistas. Foi nosso exercício de cidadania: uma representação da mobilização armada . Milhares de pessoas moradoras do campo vinham lotando caminhões e carroças para se alistar. E nós, garotos, da cidade, estávamos lá. Crescemos com aquela vitória. Levamos essa disposição para as ruas em 1968. Depois, invadimos as redações com nossa fúria, com nossa ética, com nossa vontade de reverter a guerra.

ANISTIA - Quando voltaste do exílio vieste até aqui em Florianópolis, Brizola. Eu trabalhava em propaganda naquela época. Encostei rapidamente o carro na calçada e fui te conhecer pessoalmente. Apertei tua enorme mão e a todos atendias com teu garbo, teu perfil de cavalheiro, tua grandeza, teu carisma. Olhaste rapidamente para mim e sentiste que eu não estava disponível para a política partidária. Compreendeste, sem eu te falar nada. Eu não podia te abraçar, Brizola, porque o sucateamento do Brasil já estava na minha carne, já tinha me ferido profundamente e eu só fui te conhecer, mas não me alistar, companheiro leal e líder da vida que compartilhamos tão à distância, mas neste mesmo território nacional de tanta luta. Virei depois, além de teu correligionário - sempre voto no PDT - teu crítico, pois não entendia como puderam te trair tanto, Brizola. Como no samba, foste traído, mas não traíste jamais. Porque esse era teu destino, Brizola, servir de rocha à beira mar, servir de modelo para a nação, quando encarnaste o verbo Brasil, esse verbo tão pouco conjugado e que precisa ressuscitar. Por que perdemos uma vida inteira, comandante, para tentar resgatar o que nos foi roubado quando ainda éramos tão moços? Éramos crianças quando foste expulso, tu e teu rosto de quase menino, tão determinado quanto um guerreiro pode ser. Por que perdemos aquela eleição de 89, Brizola? Consciente da minha total falta de importância política, mesmo assim enviei uma carta para ti que ninguém te entregou, assim como não te entregaram tantas cartas de trabalhistas apavorados com o engodo Lula e com a sagacidade da direita. Falei que ias perder a eleição por causa de São Paulo, Brizola. Aquele Airton Soares, quando soube da minha preocupação, pois enviei também uma carta a ele, me telefonou, sondando alguma contribuição financeira, pois eu trabalhava para uma empresa naquela época. Perdeste, Brizola, porque teus aliados eram fracos e não estavam à tua altura. Perdemos contigo, mas continuaste de vela enfunada, capitão de um navio que jamais será derrotado definitivamente.

LEGADO - Mas nós te criticávamos porque assim nos formaste, comandante, porque foi assim que aprendemos contigo. Não a crítica dos verdugos que acabaram te empurrando para fora da política, apesar de tanta resistência. Não esses que agora lamentam da boca fora e esfregam as mãos de felicidade sinistra. Vi a noticia da tua morte pela Globo, Brizola, esse monstro que devorou o Brasil e agora clona o país na sua novela Celebridade, numa desfaçatez sem tamanho, esse monstro endividado até o osso, sugador de recursos públicos, incompetente e que tentou te roubar uma eleição, a de governador do Rio em 1982, Brizola. Todo mundo viu como derrotaste o monopólio, querido amigo que agora nos deixa para todo o sempre. Como enfrentaste as câmaras e lutaste por uma democracia que afinal não veio. Voltamos à ditadura, Brizola. A mesma que te viu nascer, naquela década de 20 tão importante para ser estudada. É a mesma ditadura, querido amigo. Eles entregaram o país, endividam até o osso, pegam dinheiro emprestado sem parar para no fim entregar toda a soberania. Desces à terra como o maior patriota deste país ainda vivo, Brizola, porque não deixaste morrer. Teu nome começa com as mesmas letras de Brasil. Nos ensinaste a conjugar esse verbo, e vamos conjugá-lo todos os dias da nossa vida. Queremos ação, comandante. Não teremos mais tua análise, teu texto, tua advertência, tua lucidez a serviço da honestidade e da nação. Mas temos teu exemplo. Temos teu corpo, comandante, em nossas mãos precárias. E te depositamos no solo da terra amada com todo o mar infinito em nossos olhos. Agora somos tu, Brizola. Agora somos o sonho que carregaste em vida e que iluminas, bem posto na eternidade. Mesmo teus inimigos terão que se curvar. Mesmo teus falsos amigos terão agora que lamentar. Mas o povo te carregará no coração como um fogo sagrado que nada nem ninguém jamais apagará.

2 comentários:

  1. Prezado Nei,
    te agradeço por compartilhar esse texto maravilhoso sobre esse grande estadista brasileiro. quando, nos anos 50, ele ia em nossa vila la no RS minha familia o recebia. o comicio era um momento de gala na comunidade, todos com suas melhores roupas. eu de paletó de risca de giz, gravata e calças curtas.
    e ele me pegava pela mão e me carregava para o palanque. e dali, da altura de minha pequenez eu olhava o povo que olhava para ele, e escutava ele dizer: 'povo riograndense, .....´'. depois da fala, vinha o almoço e ele partia, ficava um vazio na vila e meu pai e minha mãe recebiam as pessoas e passavam os dias a conversar sobre o Doutor Leonel de Moura Brizola. assim se chamava e eu não entendia, mas sentia que era uma conversa de bem, de respeito.
    hoje, já velho, sei que o Brizola, o grande estadista brasileiro me pegou no colo!
    grande abraço meu amigo

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    1. Que depoimento maravilhoso! Obrigado, meu amigo.

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