14 de junho de 2004

NO CASTELO DE HERR HOLDERBAUM



Preciso cruzar mais de cinquenta quilômetros de imensas propriedades coroadas de lagoas, montanhas cobertas de mato e algumas de tetos nevados, vales e praias, antes de chegar ao núcleo do refúgio deste território oculto, onde mora Herr Holderbaum num castelo tão imponente quanto simples, um paradoxo que define a vida deste ermitão, colecionador de identidades que guarda em inúmeros aposentos, que vai me mostrando aos poucos, conforme se desenrola nossa conversa ao pé de uma lareira, onde as brasas esquentam um pedaço de pedra lisa. Lá tornam-se digeríveis pizzas e pinhões.

PAISAGEM - Antes que a lenha torne-se brasa, o conde me leva para o alto de uma duna e me mostra o magnífico mar banhando duas ilhas enormes. A praia descortina-se em várias desdobramentos. Tudo está vazio neste inverno de tímido sol. O vento bate em nosso corpo crivado de balas de guerras antigas. Ele não aponta mais o horizonte inalcançável. Coloca as mãos para trás e me conduz até seu mais alto mirante. O chão de areia grossa e amarelo-branca torna o momento ainda mais estranho. Tudo parece desmoronar enquanto o dia se mostra gigantescamente novo, tão novo quanto no dia em aqui chegamos pela primeira vez, vindos de um vale úmido e de um casarão sinistro. Éramos naquela época náufragos de uma batalha perdida. Mas toda essa memória já não serve para o recluso dono do castelo. Descubro que convivi com sua verve apenas uns quatro anos e que ele faz parte de algo maior a qual não consigo alcançar agora. Tento impressioná-lo deitando conhecimentos sobre civilizações perdidas, mas para quem viu pessoalmente Miles Davis tocar com Airto Moreira num bas-fond de Nova York, acho que nos anos 60, nada pode impressioná-lo. Ele tem o passo prudente de Cidadão Kane antes de dizer Rosebud. E fala do tempo em que mergulhou nas minas de ametistas. Abordamos então menos fantasiosamente a grande civilização da pedra construída pelos gigantes e que tornaram o que chamamos hoje de Brasil um jardim de delícias. Vejo as cataratas escondidas no mato em programas de viagens na televisão. É tudo certinho demais. Foi tudo colocado ali, de propósito. Digo isso para o conde. Ele olha para a fogueira. No fundo, o som de um exercício de violão chega aos nossos ouvidos.

ETERNIDADES - Ele abre a primeira porta e um desconhecido virtuose prepara-se para a glória sem fazer alarde. Abre outra porta e alguém toca violino. Mais adiante, um colecionador de conchas levanta os olhos. Além, tecedeiras compõem um tapete gigantesco, cujas dobras tomam conta já do teto. Pergunto por que e para que tudo aquilo. Ele responde que dedica-se a incentivar eternidades e que cansou da precariedade de um país em sobressalto. Costuma reunir amigos de todos os calibres para grandes ágapes de pizzas feitas uma por uma, no maior capricho. Aprendeu pela vida, entre outras coisas. Fala de prêmios perdidos, de vidas passadas, de pessoas mortas, de duendes e saltimbancos. Disfarça-se em algo conhecido para não me assustar. Mas pressinto que toda aquela herdade, não só o quintal do castelo, circundado por um fosso, faz parte de um mundo perdido. Eu só cheguei ali porque não me acostumo à realidade do que vejo, e não me conformo que a percepção que tenho dos amigos. Sempre acho que existe algo muito maior por trás de cada gesto. Dizem para mim: você idealiza demais as pessoas. Mas olho para o alto e vejo um campanário. Existiria uma capela oculta no castelo? Lá o conde faz suas orações, ao som de cantos gregorianos.

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