21 de julho de 2004

A MALA QUE GUARDAVA SEGREDOS



Recebo um exemplar raro de Outubro, meu livro de estréia, que reúne poemas escritos no final dos anos 60 e início dos 70. O presente é de Cláudio Levitan, que não só ilustrou maravilhosamente o livro, imprimindo a marca de seu talento luminoso, como participou da edição desde o seu início, pois foi ele quem me visitou em Blumenau um belo dia para conhecer os poemas. E dessa visita, relatada na orelha, nasceu a luz da nossa geração. Um livro cult, jamais reeditado, que nunca ganhou qualquer prêmio, mas que não é encontrado em lugar nenhum, a não ser bem guardado nas estantes de seus poucos e fiéis leitores. Quem tem não empresta, porque não volta. Qual o mistério de Outubro?

SOL E ESTRELAS - Desde 2001, quando coloquei na mão da editora Globo o último exemplar que dispunha, pois precisavam fazer meu perfil poético para divulgar o livro que eles estavam editando (No mar, veremos), que eu estava ermo de Outubro. Com a mudança da responsável pela edição, e também do andar onde estava instalada a diretoria de livros no edifício da Globo no Jaguaré, o exemplar sumiu. Comecei então, penosamente, a tentar encontrar um. Passaram-se três anos. Reencontro agora e custo a acreditar: um exemplar absolutamente intacto, novinho, como se estivesse saído da gráfica. Revisito a magia do livro. Os poemas que saltam na cara, a capa maravilhosa de Cláudio Levitan, letras pretas sobre fundo amarelo para o título e laranja para a paisagem que está estampada nela. Qual essa paisagem? O pampa, por certo, estilizado, com uma cerca que vai para o infinito, embaixo de gigantesco sol que mais parece um ovo frito. Em diagonal a esse sol (a capa e as ilustrações podem ser vistas no site), um pássaro em vôo decidido. Um primor de capa clean, vibrante, fundada nos princípios eternos da grafia e ao mesmo tempo totalmente de vanguarda, pois ?declara?que aquele não é um sol, aquele chão não é um pampa e aquela cerca são traços que nos carregam para o futuro. A cerca e o pássaro voam em direção ao sol, que tem as bordas roçando o chão. Só esse capa merecia ganhar um prêmio internacional. A contracpa é outra obra-prima. Aquele sol, desapropriado de sua luz e calor, cai sobre o chão numa cena noturna. Da casca desse objeto que cai, dessa lua que se parte ao meio, sai uma infinidade de estrelas em direção ao céu. Cena que, ao contrário da capa, não toma conta de todo o espaço disponível. Está enquadrado, num fundo branco. Essa é a viagem visual idealizada pelo nosso genial artista: o sol que se anuncia em outubro parte-se (ceguei-me em sangue de estrelas, diz um dos poemas) num parto de revelações e deslumbramentos.

EDIÇÃO - A edição do livro contou também com a participação fundamental de Juarez Fonseca (que fez primorosa diagramação), Ida Duclós (minha mais atenta leitora) e Caio Fernando Abreu, que às vezes ficava constrangido de sugerir algumas poucas mudanças nos poemas e que levou o trabalho para o patrocínio do Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul, presidido na época por Ligia Averbruck. Todos nós fizemos então a seleção dos poemas que eu guardava numa velha mala surrada dos tempos de estudante peregrino (e que virou uma lenda graças ao texto de apresentação de Levitan, onde está a frase que dá título a este post). Sete capítulos, como se fosse um romance: o primeiro sobre a anunciação do poeta (Se eu estiver chegando), o segundo sobre a poesia (Falo de coisas que sei), o terceiro sobre a solidariedade (Confio na solidão que nos une), o quarto sobre a barra pesada da época (Dói entrar na vida), o quinto sobre o amor (Maria, acende meu domingo), o sexto sobre a infância (O canto é uma fome, como a infância), e o sétimo sobre a leveza das coisas e da vida (Ah, essa mania de escrever para a eternidade). Tínhamos assim na mão um acervo poderoso de sugestões literárias. Um poeta desconhecido que diz a que veio, uma geração que sofre e tem esperança, um trabalho focado na sua época e que tem a ousadia de ser uma mensagem também para o futuro (Ao Brasil tenho um recado).

LÍGIA - Lembro que fiquei impressionado com a repercussão do livro. De repente, aquela geração que nada tinha, apenas sonhos estocados, resolve mostrar a cara e dizer que existe, no Brasil da ditadura. Por isso foi fundamental a presença no IEL de Ligia Averbruck, que adorou o livro, tinha plena confiança em Caio e aplicou o dinheiro público para cacifar uma obra original. Lembro que fiquei apavorado com a possibilidade de o livro ficar guardado no IEL, apesar dos esforços da Ligia. Houve um boato, não lembro, uma notícia, de que havia certa resistência em colocar o livro na praça e Ligia estava batalhando para que o trabalho saísse um pouco mais tarde. Era uma época de muita paranóia. Foi esse medo que me levou a marcar apressadamente o lançamento, que foi feito na Faculdade de Arquitetura da Ufrgs, local da vanguarda total, onde estudavam Gilberto Gick, Muts Weyrauch, Cláudio Ferlauto e Tabajara Ruas (apenas esse time, e que time!). Convites feitos apressadamente cometeram a maior gafe da história da minha vida. Um desses convites não chegou até Ligia, que não compareceu ao lançamento. Até hoje fico mortificado com isso. Ligia já foi para o Outro Lado e jamais pude explicar o que aconteceu, desculpar-me pelo indesculpável. Na rápida passagem que tive na W11, quando participei da produção de dezenas de livros para a Bienal de São Paulo, um jornalista do Rio, nascido gaúcho, me ligou. Disse: "Eu precisava te dizer isso, Nei. Outubro fez minha cabeça, mudou minha vida e eu nunca tinha tido a oportunidade de te agradecer e cumprimentar." É por isso que Outubro sempre nos emociona. Porque faz parte de uma onda tremenda de criação cultural brasileira e pertence a este país soberano e é nele que deita raízes profundas, de uma poesia que se insurgiu contra as modinhas da época, que não aceitou o silêncio imposto e que veio à luz em plena ditadura para ajudar a vida a fazer sentido. Só isso já justifica minha vinda a este mundo. Viva Outubro!


RETORNO - Recebo de Claudio Levitan a seguinte mensagem: " Recebeste, então! Valeu ter guardado todo este tempo pra desfrutar da tua emoção! Aqui em casa, reclamam muito de mim: sou um guardador de memórias e vivo sempre esquecido. ouvir isto de alguém, especialmente de ti, me conforta e valoriza todo este intervalo de tempo (que é uma vida!). valeu a pena".

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