6 de agosto de 2004

O POEMA FUNDADOR

A letra do Hino Nacional está crivada de críticas, como um São Sebastião amarrado ao poste. Existe até uma versão considerada mais popular, já que se faz escândalo sobre a linguagem usada, que estaria obsoleta, com metáforas exageradas. Diz-se que é grande demais, mas tem apenas 1.200 caracteres. Acho a letra de Joaquim Osório Duque Estrada uma obra-prima. Está fundamente enraizada na História do país e serve como desafio permanente pelas dificuldades que propõe. Em vez de fugir delas, precisamos abordá-las com espírito livre.

IMPÁVIDO COLOSSO - A primeira estrofe seleciona o momento de decisão, o grito do Ipiranga, como semente do novo país. O desfecho, a Independência, não se resume à convocação do príncipe para a guerra. O conflito armado já estava desencadeado desde o ano anterior, em 1821, e só chegou ao fim no dia 2 de julho de 1823. O que raiou naquele instante foi a promessa da liberdade, o sol que cega, a luz ostentada, a liberdade imaginada. Um brilho no céu. O céu escuro da pátria (até então não-existente) se revelou com essa faísca. O brado retumba porque havia ressonância nacional, havia a percepção de que era preciso se separar de Portugal. A segunda estrofe é o compromisso, o penhor, o significado do grito que coloca a nova nação contra a parede: ou se liberta, ou morre. Ou continua dependente, ou vira o jogo. O bordão da Pátria amada cria (ou faz referência a) o vínculo amoroso com a nova nação, que se torna objeto de adoração. O país nasce então, na terceira estrofe, desse raio vívido vislumbrado no momento do grito, desse sonho, dessa esperança e desse amor proposto para que a nação exista. A Pátria é uma revelação sem nenhum risco ou rasura. A imagem do novo país é como um céu límpido que se expressa com identidade própria, com a marca do Cruzeiro do Sul na sua face. Esse país, que tem uma constelação como marca, possui a vocação de grandeza, ditada pelo vasto território conquistado em séculos e com o sacrifício de muitas gerações. Esse esforço coletivo transfere grandeza à nação que nasce, um gigante que não se abala, sereno (impávido colosso, metáfora maravilhosa). Nasce forte e é eterno, pois seu futuro é como o seu território, gigante, belo e forte.



BERÇO ESPLÊNDIDO - O país nasce soberano, bem plantado, para todo o sempre, no seu território, embalado pela sua vocação de grandeza . Ao som do mar (tão distante hoje, com tanto baticum na praia) e à luz do céu profundo (temos isso ainda no interior e no litoral, não nas grandes cidades). Aquela faísca inicial, graças á grandeza da nova nação, faz do país uma criatura luminosa, gerada pelas promessas de um mundo renovado, num continente novo, a América. Esse país é de tamanho brilho e grandeza que pode ser visto como um ornamento de ouro, central, em forma de flor, nesse novo continente. Isso o torna diferente das demais. A natureza generosa sugere uma vida também diferente, fundada na felicidade e no amor. Por isso ela é idolatrada e sua representação (bandeira, mapa, cultura) deve ser saudada como um estandarte, um símbolo do amor eterno. O poema define as cores do país (verde-louro) e seus fundamentos, sua vocação: paz no futuro e glória no passado. Há, entretanto, perigo na esquina. O país que nasce e se consolida pode ser ameaçado. A arma do novo país então é a clava forte da justiça, a guerra justa, que serve para reunir os cidadãos em torno de uma luta legítima, para valer, até a morte se for preciso. A certeza no país, o amor devotado a ele, não permite defecções. Esse país tão amado deve ser sempre como uma mãe amorosa para com seus filhos. Amor retribuído, de cidadão para a nação e vice-versa. Amor mútuo, recíproco.

ANTOLOGIA - O hino é apenas linguagem, e linguagem é pura representação. Isso não o torna irreal. Ele existe concretamente e serve de parâmetro para a idéia de soberania do país, com identidade própria, legitimidade e futuro garantido. O hino não propõe uma situação estática. Ele propõe uma História, a nação que nasce a partir de uma decisão irrevogável; uma mitologia, a da grandeza soberana, representada pelas cores, o estandarte (a bandeira), a marca da sua legitimidade natural (o Cruzeiro). O que é insuportável é alguém fazer trejeitos com a voz para tornar o hino mais muderno. O que não devemos aceitar é usar os símbolos nacionais para implantar uma ditadura, para fazer patriotadas. O que não podemos esquecer, nesta maré alta da pirataria internacional, que os territórios continuam sendo conquistados, invadidos, comprados, tomados á força. O Brasil existe porque está enfeixado em seus símbolos. Por isso a bandeira tremula ao vento e levamos a mão ao peito quando entoamos o poema fundador desse poeta fundamental, que tem sobrenome de rota, caminho, direção. E que deve fazer parte de qualquer antologia da nossa literatura, pois coube a ele dizer o que o país significa nos momentos mais solenes. Quando perdemos as eleições das diretas-já. Ou quando somos campeões do mundo. Ou quando enterramos um herói, que pela Pátria arriscou todos os minutos da sua vida.

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