21 de agosto de 2004

VOCÊ SABE O QUE É DIVISA?


Nei Duclós

Todo mundo fala em divisa, mas ninguém pergunta o que é (jornalista confunde sua função e só sacode a cabeça, pois nasceu sabendo tudo). Perguntei e me responderam. É assim: você, caro exportador, vende seu produto lá fora, que é pago em dólar. Esse dólar não vai para seu bolso, mas para o bucho do Banco Central, que te repassa uma quantia equivalente, mas em outra moeda, o real (que no concerto internacional das nações é não-conversível, é moeda pôdre). Você fica com o real para continuar produzindo e vendendo mais, tudo à mercê do câmbio oficial e paralelo. O Banco Central pega esse dólar que conseguiu com o teu trabalho e paga os juros escorchantes da dívida externa.

Ou seja, o país que importa e consome o teu produto recupera todo o dólar gasto nessa compra. Divisa, portanto, é dólar entregue ao Brasil em consignação, com retorno certo para sua origem. Esse acordo imutável de entrega de soberania via dívida externa foi rompido por Getúlio Vargas nos seus primeiros 15 anos de governo. Mas o José Dirceu, numa viagem a Washington, reforçou o mesmo esquema antes de o PT assumir.

CONTRATOS - Em 1931, primeiro ano do Governo Provisório de Getúlio, o Brasil colocou na justiça os credores e fez uma auditoria completa nos contratos que definiam os empréstimos em moeda forte. Descobriu-se que nenhum deles estava correto, pois não tinham como objetivo o desenvolvimento do país. Houve então longa batalha judicial (com o apoio de outras nações sul-americanas, que estavam no mesmo barco e não eram as paga-paus de hoje) e só em 1943 o governo do Estado Novo conseguiu uma vitória parcial, reduzindo pela metade a dívida.

Antes de Lula assumir o poder, José Dirceu foi a Washington e Nova York e o Guido Mantega foi a Londres, ambos para garantia a sobrevivência do sistema que arrocha o país. Fizeram reuniões a portas fechadas e voltaram com a licença de brincar de governar, desde que mantivessem a crescente e impagável dívida externa. A irresponsabilidade fiscal dos governos brasileiros, que teve seu momento de glória na República Velha e que só foi retomada com Juscelino, foi uma farra que custou nossa soberania.

Depois, fomos obrigados a enxugar as contas públicas de maneira criminosa, pois esse enxugamento não é para o desenvolvimento brasileiro nem para a sobrevivência do povo, mas para o pagamento dos dólares devidos, uma cordilheira de papel pintado que arranca gargalhadas dos gringos. Pois tudo isso fizemos por dois motivos: medo e corrupção.

CORAGEM - Por que não se comentam essas coisas? Porque se isso acontecesse essa canalha que nos governa teria que ser apeada do poder e aí adeus viagens internacionais, futebolzinho na granja do Torto, botox com água oxigenada. Justiça social, espírito público, coragem? Isso tudo sobrava em Getúlio, que teve sua primeira grande lição de injustiça quando foi convencer o veterano político Borges de Medeiros a deixar que um sucessor assumisse o governo do Rio Grande do Sul. Borges já estava há quatro mandatos no poder. Pois o governador disse para Getúlio: Vieram me dizer que serei novamente governador? Ora, como são simpáticos!

Getúlio, leitor de Emile Zola, segundo Joseph Love, autor do clássico O Regionalismo Gaúcho, viu a conseqüência dessa decisão: a guerra de 1923 que por oito meses ensangüentou o pampa. Quando Getúlio deixou o ministério da Fazenda de Washington Luís para assumir a presidência do Estado, sucedendo Borges, que cumpriu o acordo de Pedras Altas depois de mais de 20 anos instalado no Palácio do Piratini, o futuro grande presidente encontrou a chance que procurava.

Pacificou o Rio Grande, uniu as facções até então inimigas e com essa união conseguiu a presidência da República. Getulio entendeu cedo que a revolução no Brasil deveria ser feita com o Estado e não contra ele. Por isso mudou o Estado para compor um novo país. Disso não tomaram ciência os demais revolucionários, que ficaram fazendo catilinárias em quartéis, guerras regionais e calúnias sem fim.

A tudo e a todos Getúlio enfrentou para construir um país moderno, industrializado, com salários compatíveis aos do Primeiro Mundo, com uma economia de desenvolvimento e de austeridade fiscal. Fomos então paparicados por todas a potências.

MERCADO INTERNO - Joseph Love, que fez o melhor e mais completo estudo (até hoje imbatível) sobre esse Rio Grande do Sul que assumiu o poder, aponta as raízes da postura de Vargas. Os governos do Rio Grande lutavam pelo mercado interno, ao contrário de outros estados poderosos, a maior parte voltados para a bocarra gigantesca dos gringos. Getúlio convenceu os milionários superprodutores de café que era mais negócio montar indústrias para vender aqui e lá fora, ou seja, era bem melhor produzir o que consumíamos do que cansar a terra com um grão que desvalorizava. Todas as grandes fortunas, como a de Ermírio de Moraes, se consolidaram na época getulista.

Ao contrário da indústria que gostava de colocar os operários num redil, Getúlio criou as leis trabalhistas que fizeram do operário um cidadão com capacidade de poupar, crescer. São coisas simples que hoje estão fora de moda. Os melhores empregos vão para meia dúzia e sobra esse monte de sub-emprego para a massa gigantesca de desempregados sonhar com uma merreca mensal.

Tudo isso custou a vida a Getulio, pois houve inveja, houve calúnia, houve perseguição, culminando com o suicídio. Posso ver o momento decisivo em que Getulio pesou, de um lado, a sobrevivência física, e de outro, a humilhação que seria ser deposto mais uma vez, depois de ter sido eleito pelo voto direto. O medo que sentiu, a certeza da morte, que inspirou sua brilhante Carta Testamento (o mais importante discurso da República) e finalmente o tiro. A nação soberana cobriu-se então de luto ao perder seu gênio político.

RETORNO - Artigo de Eric Toussaint (pesquisado e traduzido por Ida Duclós) intitulado Brasil, a atualidade da auditoria sobre a dívida externa E a responsabilidade do governo Lula: Durante crise da dívida externa nos anos 30, o Brasil e mais 13 países latinos americanos suspenderam o principal do pagamento durante vários anos - a suspensão foi total em 1931, parcial em 32 e 36 e de novo total em 37 e 1940. Isso foi muito benéfico, porque quando o país negociou um acordo com o cartel de credores estrangeiros, obteve uma redução de quase metade do total da dívida, o acordo final foi fechado em 1943.

A dívida cujo montante alcançou 1.294 mil milhões de dólares em 1930, foi reduzida a 698 milhões em 1945 e a 597 milhões em 1948. Em 1930, o serviço da dívida representava 30% das exportações; em 1945 este serviço representava não mais que 7%. As autoridades brasileiras na época fizeram uso da auditoria para fundamentar a decisão unilateral da suspensão do pagamento. Em 1931, o governo decidiu por meio de um decreto, passar em revista todos os contratos referentes a todos os empréstimos públicos externos, impondo por outro decreto em 1932, a análise detalhada de todos estes contratos. A auditoria permitiu detectar numerosas irregularidades na construção destes contratos.

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