25 de agosto de 2004

O FUTEBOL QUE ELAS INVENTAM

A curva, no futebol (e não apenas na gramática) é sempre feminina. Aquele chapéu dado por Pelé na zaga do país de Gales em 1958 é uma saia rodada, típica dos anos 50. A folha seca é um vestido tomara-que-caia (sou do tempo do tomara-que-caia). O lance em profundidade, em curva, que não canso de citar aqui (Gerson, Zenon, Alex) é uma espécie de carta de amor com endereço certo (para o coração da possibilidade de um gol). No futebol jogado por nossas atletas (que a TV chama de meninas) tudo é curva e nisso está a reinvenção do futebol.

DIVERSIDADE - Escrevo antes da decisão contra as jogadoras de soccer (pois elas jogam soccer, esse produto artificial que os machões americanos deixaram para as suas mulheres se divertirem). Não importa ouro ou prata, mas sim o que a pátria de chuteiras mostrou nestas Olimpíadas. Diante dos nossos olhos cansados, acostumados a seguir os lances criados pelos homens, as jogadoras de futebol parecem patinar, perder tempo precioso ao dominar a bola, dar um drible, fazer uma tabelinha, armar o bote e definir o ataque. Mas tudo isso é um preconceito de quem só enxerga o que pensa que vê. Trata-se de um jogo totalmente em curva, que surpreende quando a bola, que parecia perdida, sai dessa criatura que joga sempre em arco, Marta, e estufa a rede. Elas parecem cair quando no fundo estão amarrando uma vitória. Antes de entrarem em campo, a partida tem tudo para ser difícil, mas dali a pouco elas colocam cinco gols nas adversárias. As americanas no primeiro jogo ficaram furiosas quando levaram um banho de bola no primeiro tempo. As americanas, instrumentos de uma política imperial de hegemonia em todo o planeta, aprenderam em escolinhas, são impulsionadas a proteínas na primeira infância, obedecem a uma estratégia formatada em algoritmos, amarram o meio de campo como se fossem as guardiãs dos mares, mas elas possuem um defeito: não são brasileiras, não pertencem à civilização do Brasil soberano. Por isso precisam empurrar nossas atletas, quebrar-lhes a clavículas, mandá-las para o hospital, para poder vencer, pois jamais aceitarão o fato de que sua pretensa superioridade não significa nada diante do povo que ensinou a humanidade a voar.

RAÍZES - O futebol tem uma origem, a Inglaterra, mas suas verdadeiras raízes estão no Brasil. Eles inventaram um jogo magnífico, mas não sabiam exatamente o que isso significava. Eles estão envolvidos em metas, vitórias, hegemonia. Nós conseguimos a hegemonia porque mudamos os parâmetros, aprofundamos a pesquisa do corpo que imita a curva da bola. Com essa sintonia colocamos em movimento o jogo que era para ser engessado pela linha reta, e que no fim é driblado pela saia rodada, pelo tubinho (o drible curto), pela frente única (o gol de cabeça na cara do arqueiro). Driblar é, primeiro, seduzir o adversário para a precariedade da posse de bola. Venha cá ver como sou frágil, como posso perder esse lance, como você poderá me desarmar, me humilhar, me jogar ao chão. Quem está sem a bola acredita e parte para cima. Leva um cambau, um repasse de perna, uma ilusão de ótica. Ele vai ao chão e não acredita. É famoso o lance do Canhoteiro, que tinha alguém grudado na costela o tempo todo. Pois o craque, na hora de uma arrancada, deixou a bola parada e foi adiante, levando o adversário colado nele. Depois voltou e recolheu a criança, já que tinha surpreendido o outro. Mario Filho também conta como um zagueiro famoso manteve a bola presa enquanto os adversários argentinos se engalfinharam todos para o fundo das redes e saíram de lá vibrando com o gol inexistente. Enquanto isso, nosso zagueiro, depois de colocar o pé em cima da bola e as mãos na cintura, saiu com o jogo dominado, para gargalhada geral do estádio.

RESPEITO - Esse clima, que não comparo a molecagem, mas ao diferencial civilizatório, é o que nossas atletas trazem de volta ao futebol. Não que sejam deusas ou coisa que valha. Não que sejam cracaças excepcionais. Mas porque são pioneiras e começaram do nada, assim como Garrincha um dia foi apresentado à bola de meia e em pouco tempo estava deslumbrando o mundo. Porque é disso que se trata: elas foram batizadas agora e trazem a sorte de quem começa, a ginga de quem aprende a gostar do jogo. Elas mostram a chance real de reencontrarmos as soluções que um dia fizeram a nossa fama e até hoje costumam reaparecer, principalmente quando o Ronaldinho Gaúcho faz uma fieira de seis italianos (só pelo prazer, só pela glória). Que todos os jogadores em atividade prestem atenção no que elas apresentam. Se trouxerem o ouro, saiam em praça pública para recebê-las. E mesmo que voltem com a prata (o que não é pouco) merecem que lhes beijem as mãos, em sinal de respeito e agradecimento. Elas fazem parte do país pentacampeão do mundo. E abriram caminho do jeito delas, sem apoio, sem alarde, sem medo. E sem deixar de ser o que são, mulheres de luta, do Brasil que vence sem imitar ninguém.

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