14 de setembro de 2004

A LIBERDADE TOTAL DA LITERATURA


A literatura é a oportunidade que a linguagem tem de se reinventar. Diferente do jornalismo ou das ciências humanas, que obedecem a paradigmas e precisam do consenso do entendimento, de um acordo prévio para ser debatido e desenvolvido, a literatura caracteriza-se pela liberdade de suas falas, do desenraizamento total e da radicalidade de suas experiências. Já que por natureza possui amplo espectro, proporcionado por essa liberdade, ela presta-se mais a uma abordagem seletiva, pois fica difícil abraçar esse vasto mundo ou fazer seu inventário. A saída é definir um conjunto de células para tentar nele soprar nele um pouco de sentido.

LIMITES - Meu álibi para estreitar os limites dessa minha conversa também inclui uma necessidade própria de trafegar pelas leituras que decidi adotar como insumos básicos, tanto do que produzo quanto do que costumo analisar como resenhista. Trata-se de uma deliberação e não de uma desistência diante da complexidade do tema. Por fazer parte do exercício da liberdade, numa época de transformações profundas e cada vez mais rápidas, a literatura desvencilhou-se das últimas escolas e partiu para a aventura radical. Mas isso não a tirou fora do jogo político. A invenção literária permanente costuma refletir o desespero, pois é do caos que ela trata, postura gerada pelo desligamento dos cânones. Vemos isso em Kafka, para pegar o exemplo mais notório. Mas o narrador que é persona do autor diante da indiferença e brutalidade do mundo, é obrigado a reconstruir a linguagem numa nova ordenação do caos. O resultado é uma narrativa sinistra, que faz parte do desencanto econômico e político da Europa que gerou a barbárie de duas guerras. Esse parece ser o personagem favorito da literatura brasileira de hoje. O viajante de João Gilberto Noll em vários dos seus livros, o pesquisador do romance Fantasma, de José Castello, o detetive Cid Espigão de Tabajara Ruas são agentes dessa reordenação da linguagem que veio á tona depois de assassinada. Isso se chama liberdade, mas também está profundamente ligado à ditadura que nos surpreendeu, criou e ainda nos mantém numa espiral de insônia.

DIÁSPORA - Meu romance Universo Baldio (Francis, W11 Editores, 2004) é a composição de duas falas que tentam se complementar. A primeira é a desse caminhante perplexo que vive o desmoronamento do mundo e rearticula sua presença literária para não perder a identidade que arduamente construiu no meio do caos. Nessa primeira fase, há a perplexidade diante da diáspora humana que gerou aquela história, que acaba, como começou, na estrada, dentro de um coletivo que coleciona monólogos. Na segunda parte, a persona que encarna o narrador divide-se diante dos seus fantasmas e ao tentar, desesperado, reencontrar-se, acaba descobrindo o quanto perdeu na sua trajetória. Pior: sabe então que sua perda veio de longe e que nunca houve remédio para ela. Mas ainda se mantém a esperança de que o tecido desfeito possa ser refeito no final, onde o happy end seria uma forma de vingança, e não um lugar comum. Mais não posso dizer desse romance escrito num intervalo de vinte anos e que é uma síntese de várias incursões na prosa literária que se dispersa hoje em crônicas, memórias, contos e projetos de novos romances. O fazer literário não basta, pois ele enfrenta primeiro a dificuldade de exposição pública, por motivos demais conhecidos. É preciso aborda-lo na análise, fazer parte da composição de falas que descem sobre a literatura como uma chuva de conceitos. Minha participação nessa área tem sido constante e compreende desde autores como Rilke, Simões Lopes Neto, Vinícius de Moraes e Borges, como escritores que na minha geração ajudam a compor um universo literário pautado pela liberdade total. Na resenha, procuro incorporar a liberdade literária, encarnar o verbo para ser fiel à fala alheia. Costumo partir para lances não pautados na intenção inicial do texto, mas que felizmente transformam-se, a seu modo, parte da minha literatura.

FEIRA DO LIVRO - A Feira do Livro de Porto Alegre neste ano vai receber dois poetas que naquela mesma praça, a da Alfândega, inauguram sua vida literária, expondo poemas em cartolina e gritando seus versos para o povo que passava (isso em plena ditadura, em 1969, que na definição do amigo poeta era o Ano da Graça). Marco Celso Viola já tem quase pronto seu Poemas para ler em voz alta, estréia mundial de fato da sua profunda, pujante, original e magnífica arte literária, e estará comigo para conversar com o público, num evento que ainda vou divulgar aqui. Marco notou esses tempos que somos poetas longevos, o que é uma surpresa, pois tínhamos tudo para uma vida breve e uma longa presença literária. Sorte que só a segunda parte se concretizou.

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