2 de outubro de 2004

PAULO JOSÉ DIANTE DO ALVO



Paulo José está desesperado na obra-prima Todas as Mulheres do Mundo, de Domingos de Oliveira. É solteiro e entra em parafuso com o excesso de oferta de uma civilização que optou pelo lazer, o Rio de Janeiro dos anos 60. Onde é a festa sábado? grita, bêbado, no bar cheio de mulheres e falsos amigos. Até que de repente, quando participava, completamente louco, de um jogo de tiro ao alvo com setas na casa lotada de gente, onde acontecia mais uma celebração do Nada, ele fica paralizado ao se deparar com a porta (que segurava o alvo) que se abre e dela surgir, simples, belíssima, tranqüila, Leila Diniz. A cara de espanto diante da Diferença (e da Musa que nunca mais nos abandonou), com a mão solta no ar em frente da Revelação, transforma esse instante na mais pungente cena do cinema nacional em todos os tempos. A vida fácil acabara. Surge a Encarnação, e partir dela, a Descendência.

CHOQUE - Há um detalhe revelador em outro filme inesquecível de Domingos, Edu, Coração de Ouro. . Paulo José encontra na rua alguém (desempenhado pelo próprio Domingos de Oliveira) e faz grande festa, com abraços e perguntas que sugeriam longa amizade. Depois de se despedir, perguntam: quem é? Sei lá, responde Paulo José. É a superficialidade das relações humanas, uma leveza que poderia levar ao Desencanto e ao Caos, mas que Domingos transforma em matéria-prima para histórias de amor, o amor que nasce cheio de graça, mas que cai no abismo de toda relação humana: a incompreensão mútua, a raiva, a indiferença e o arrependimento, tudo salvo mais tarde pelo amor que triunfa. Em Todas as Mulheres do MUndo, custa ao nosso herói descobrir que chegara a sua hora. Também custa entender que ele foi predestinado para aquela relação, diferente de todas as outras, baseada no encantamento total e depois, na vontade natural de ter um filho. Aquela geração estava contra a parede, transformada em painel de locuras e alegrias fajutas. O Rio dos encantos mil ainda estava de pé, mas algo muito corrupto tinha se infiltrado por todo o canto, e ninguém sabia o que realmente estava pegando. Ao resgatar uma história real, com a própria Leila Diniz, Domingos colocou a marca do seu gênio. Tudo o que era solto amarra-se na relação louca entre os dois. Surge então a verdadeira personalidade da heroína. No lugar da mulher acessível, a professora, a namorada fiel, a paixão sem resistência focada no que é duradouro. Quando Leila foi para a Índia e sumiu no ar num acidente de avião, talvez a causa tenha sido o choque entre duas culturas. Não era possível unir dois mundos paralelos que jamais se encontrariam sem uma explosão. Leila vinha de um país provisório e buscava algo na cultura milenar. Levava consigo já a semente de uma consciência maior, pois buscava inspiração não apenas no divino para enfrentar o precário, mas na profundidade que se opunha ao que é raso e passageiro. Antes de descer, ela sumiu. E para sempre ficou, imortalizada neste filme sem igual. Não vejo outro modo de me conformar com a tragédia.

BRASEIRO - Na série memorável de entrevistas com personalidades da extinta civilização brasileira, Roberto Dávila nos trouxe Domingos, Paulo José, Carlos Lira, entre muitos outros. A suave cordialidade de Roberto, o mais importante criador desta televisão que precisa demais dele, nos traz o que perdemos, as pessoas que nasceram no finíssimo azul do Rio de Janeiro ou de outras paragens semelhantes, e que aproveitaram o tempo para fundar raízes de uma arte que a todos encanta, no teatro, no cinema, na música, na interpretação. Bastaram alguns minutos de Paulo José na novela Senhora do Destino, para o chão se abrir. O homem amargurado que resgata seu inferno lembrando a vida que teve com a mulher que o destruiu é uma cena que faz chorar as pedras. Sofrendo de Parkinson (doença degenerativa e irreversível, como a vida, nota Paulo) ele consegue cruzar o umbral de todas a mesmices noveleiras e nos coloca diante da arte grandiosa desse teatro brasileiro que nos deu tantos valores e que invadiu o cinema e a TV. Essa invasão permite que tenhamos ainda esperança de continuar sendo o que sempre deveríamos ser, uma nação única, que jamais deverá voltar pó de onde veio. Extinta, mas viva, como aquele braseiro que os ventos da abertura vão reacendendo, segundo a metáfora preciosa de Leonel Brizola, o demiurgo que foi-se sem cumprir totalmente seu destino, pois era dele a posição do presidente que deveriamos ter para nos ajudar a trazer de volta o Brasil soberano.