30 de novembro de 2004

NA TERRA DOS APELIDOS


Chulé falou sobre o Bolha (professor de Química), o Buda e o Roxo (ex-diretores), Mutuca e Bituca (alunos lendários). Colocamos na roda o Queixinho, o Pipoquinha, o Strops. Mais tarde, na mesa do café, Torico e Cabrito nos derrubaram de rir com histórias do Gaguinho. Chulé, também conhecido como Irmão Arno, faz questão do apelido, tanto que reclamou com Tabajara Ruas, presente ao encontro, por tratá-lo com o nome oficial no seu romance Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierres, que será filmado brevemente. O veterano professor nos recebeu com o entusiasmo dos seus 79 anos, o mesmo que nos encantava quando foi nosso professor de História na faixa dos 30. No pátio do Colégio Santana, que deslumbra pela beleza e a excelência das instalações, e que ainda permite belíssima vista para o rio Uruguai e sua ponte sólida, ele demonstrou ser o mesmo de sempre, e ainda de quebra nos presenteou com uma pequena e significativa placa de agradecimento à nossa contribuição a cultura, pois somos dois dos 19 escritores do Santana, colégio que neste ano celebra seu centenário.

A MEIA MARATONA - Essa só poderia acontecer em Uruguaiana. Organizaram uma meia maratona, com concorrentes intrépidos, todos loucos para ganhar a corrida. Soltaram a turma pelas ruas da cidade e, como tata-se de uma distância razoável, o percurso incluía o subúrbio, mais exatamente no cruzamento de uma linha de trem, que costuma trafegar com seus inúmeros vagões durante o dia. Pois lá estavam os primeiros da fila, certos que o troféu já estava no papo, quando foram surpreendidos por interminável comboio, que deixou todo mundo na mesma, suando de impaciência diante do imprevisto, jamais imaginado pelos organizadores. O município é uma terra de atletas. Há os míticos, como o goleiro Eurico Lara, que tem seu nome imortalizado no hino do Grêmio (com o indevassável Lara no gol, o Grêmio jamais seria rebaixado); ou o Gessy, outro craque local que brilhou nos campos de Porto Alegre. Mas há uma gigantesca massa de atletas que ficaram por lá, lutando pelas cores do Sá Vianna (verde e branco), Uruguaiana (preto e amarelo) ou o Ferrocarril (vermelho e branco). Gaguinho, muito magro, meio torto, acompanhava o Sá Vianna pelas andanças, que volta e meia enfrentavam os argentinos. Ouvir Torico narrar com detalhes um jogo memorável contra um time de Libres bom de bola é um privilégio nesta terra de narradores. Eles eram muito bons, diz Torico. Tinham os Hormiga, conhece os Hormiga? craques. E o técnico era o pai dos Hormiga, enorme, forte, muito brabo. Pois não é que o Gaguinho resolveu apostar cem pilas com os caras? O problema é que o juiz escalado não compareceu e sobrou para Gaguinho, que apitou o jogo. Foi um inferno. Os correntinos não davam refresco. O exímio jogador brasileiro da fronteira que é Pedro Barzoni fazia misérias, todas sem resultado. Gaguinho não teve dúvidas: como estava arriscando o patrimônio, apitou um penalty inexistente que, claro foi aproveitado integralmente por Barzoni. Os adversário vieram para cima do juiz, especialmente el gran Hormigón, que tinha caído na arapuca mas não podia fazer mais nada. Voltaram aliviados de cem paus para o outro lado do rio.

PAPAGAIO - O escritor Ricardo Duarte, de Uruguaiana, vai lançar um livro de História e literatura em três volumes que tem apelido no título. Trata-se do monumental Perico - A Sociedade Rural do Prata e o Mundo Desenvolvido, que reúne, no vasto período de 500 anos, a civilização do pampa. Quem somos? pergunta Ricardo. Ele procura responder nesse trabalho, que consome muito suor e pesquisa. Por que Perico? Ricardo esclarece: "Perico, em castelhano, significa papagaio, apelido aplicado a alguém muito falante. Pode ser um contador de histórias - o que pretendo aqui - e assim eram tratados os estafetas levando mensagens dos comandos das tropas, também chamados, na linguagem do pampa, de lenguarás. Mais precisamente, perico era quem comandava as quadrilhas francesas, ou as country dances inglesas nos bailes de salão do século XIX. Nesses salientou-se Pedro José Vieira, português nascido em Viamão, que em 1811 proclamou a independência da Banda Oriental. Hábil bailarino, recebeu codinome de Perico El Bailarin e se lhe atribui a autoria da dança folclórica gaúcha El Pericón. De todas as figuras analisadas neste trabalho, nenhuma mais apropriada que Perico para sintetizar a idéia da sociedade do pampa. Nele se misturam novamente na América as raízes separadas na Península Ibérica e, sem ser rico, ou poderoso, sem mesmo um grande nome - até o momento - andejou no solo americano em companhia de mais de um herói, caudilho, ou vulto histórico".

LIBRES - Anderson Petroceli ( o melhor guia e o melhor mate da cidade) faz a gentileza de estacionar em frente a grande igreja de San José, em Paso de Los Libres. Entro e dou de cara com vasta catedral, que no momento realizava um batizado. Nunca tinha entrado lá. Conheci também La Costanera, a avenida de beira-rio trabalhada para o passeio e o lazer, coisa que não há no nosso lado, pois Uruguaiana praticamente fica de costas para o Uruguai velho de guerra. Mas o melhor de Libres (de onde não se permite atualmente comprar nem carne nem queijo, que são vetados na aduana, o que é um paradoxo nesta época em que tanto se fala em Mercosul) é, sem dúvida, a vista que temos de Uruguaiana. Parece uma metrópole européia, vista assim de longe, mas é puro Brasil. A vista maravilhosa esconde o que a cidade tem de mais preocupante: muita miséria neste país sem lei, muitos mendigos, violência presente. Ando brevemente pelas ruas da minha terra. A canícula não nos permite aprofundar a caminhada. Qualquer trajeto significa baldes de suor. A cidade mantém sua grandeza, apesar dos problemas. É um Brasil que resiste. Projetada e construída pela engenharia militar e o iluminismo farroupilha, é também uma cidade de escritores. Faço parte dessa comunidade, com muita honra, que tem no topo Alceu Wamosy, Gonçalves Vianna e J.A. Pio de Almeida.

RETORNO - Começo a ler Pampa em 23 e já recomendo para os leitores do Jornal do Comércio, de Porto Alegre, graças ao colunista Jaime Cimenti. Estou ainda no ano anterior à guerra, em 1922, num bolicho perdido, ameaçado por felinos "cevados", que gostam de carne humana, como nos explica o romancista e poeta Bira Tuxo, o Ubirajara Raffo Constant.

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