18 de dezembro de 2004

A PRIVATIZAÇÃO DA SOBERANIA



Existem dois planos de distribuição de renda em massa no Brasil: o funcionalismo público e a aposentadoria. O primeiro ainda está em fase de sucateamento e o segundo foi arrochado até o osso. A idéia é simples e eficiente: transferir em rede, para a maior parte da sociedade, o grosso do dinheiro gerado pela população ativa. Tudo o que foi dito e feito contra esses dois planos atendem aos interesses do tubaronato nacional e à estratégia estrangeira de dominação do país. O instrumento mais fundo contra essa evidência é a desmoralização e o deboche. Tudo o que é dito e feito a favor dessa mega distribuição é tratado como algo obsoleto e prejudicial ao país. Não basta privatizar, ou seja, entregar de mão beijada, a troco de uma percentagem para meia dúzia de espertalhões, tudo o que o país construiu em gerações de suor e sangue. É preciso atacar no osso, ou seja, produzir excrescências como o programa Os Aspones, da Rede Globo (logo ela!, que vive do dinheiro público e por isso tenta eliminar a concorrência).

EXCELÊNCIA - O descalabro privatizante, além de revelar alguns banqueiros emergentes envoltos em nuvens de ladroagem explícita, como atestam inúmeras reportagens da Carta Capital, cobra os tubos pelos serviços essenciais, como é o caso da telefonia (alvo de auditoria recente), ou do lixo e o transporte (fontes de corrupção permanente, em que se sobressaem os pedágios escorchantes que contrariam o livre direito de ir e vir). Em comparação a esse horror, o funcionalismo público tornou-se um ninho de excelência (as exceções, ou seja, os altos salários injustos, precisam ser combatidos, assim como a ineficiência que existe em várias repartições não deve servir de álibi para a crítica sem critério). A saúde pública, apesar de tudo, dos gargalos e da falta de verba, é uma solução muito melhor do que muitas clínicas particulares, limitadas pela sede do lucro (não falo de grandes hospitais privados, reconhecidamente eficientes). Basta ver onde os grandões se tratam: no Incor, de Sampa, claro, hospital público que salva vidas diariamente. Os funcionários públicos estão a serviço da população e fazem parte do patrimônio da nação soberana. Por isso é um crime hediondo ligar a ineficiência e o desperdício a uma repartição, como faz o programa Os Aspones, em que a maldade dos autores e atores são confundidos, na maior cara de pau, com os serviços públicos. A reclamação oficial contra o programa já foi feita pelos próprios prejudicados, mas cabe aqui ressaltar um aspecto importante: Os Aspones faz parte de uma campanha maciça contra o Brasil, capitaneado pela televisão, essa vitrine explícita da bandidagem da nossa época. Logo depois da porcaria em forma de programa, eis que o Jornal da Globo exibe uma matéria sobre os arquivos da ditadura e aproveita para desancar, claro, o governo getulista. É tudo muito simples: Getúlio Vargas transformou o Brasil de devedor internacional em credor. Participou, vitorioso, da Segunda Grande Guerra e isso foi usado contra seu grande governo. A entrega da soberania começou logo em seguida, tornou-se tendência dominante no governo JK e se consolidou em 1964, que destruiu o país.

SUCATA - O truque é conhecido: a ditadura civil/militar de 1964 a 85 sucateou grande parte dos direitos trabalhistas (estabilidade no emprego, por exemplo) e o funcionalismo público (onde estão hoje os ferroviários, vasto contingente do povo que tinha salário e dignidade, ou mesmo os trabalhadores do serviço público da limpeza?). Endividaram o o Brasil até o osso, plano bem sucedido de pessoas nocivas como Roberto Campos e Delfim Neto. Sucateou mas não conseguiu destruir de vez. Isso coube à chamada Nova República, que nada mais é do que a ditadura consolidada sob o falso aparato de uma pretensa democracia (com endividamento crescente, pobreza e violência dominantes numa economia totalmente voltada para os interesses estrangeiros). Como algo restou, é preciso completar o serviço. Primeiro, dizer que o funcionalismo público sempre foi uma vergonha para o país e a origem disso é o governo getulista. Não se leva em consideração que a ditadura feriu de morte o país e junto com ele o próprio funcionalismo público. A ditadura de 1964 é o oposto dos governos getulistas de 1930 a 1954. Quem faz parte de 64 são os que hoje denunciam Getúlio Vargas e colocam a culpa do nosso atraso naquele tempo em que havia paz no Brasil soberano.

REPARTIÇÃO - Meus pais se conheceram no Centro de Saúde de Uruguaiana. Meu pai desistiu da carreira, mas antes disso foi um fiscal de saúde eficiente, comprando briga com inúmeros transgressores. Voltou-se para a iniciativa privada e montou vários negócios. Acabou pobre, sustentado pela aposentadoria. Minha mãe trabalhou até se aposentar. Fazia parte da equipe que cuidava da saúde da população e lutou a vida inteira contra doenças endêmicas como a tuberculose (que está de volta!). No início da carreira, era visitadora pública, ia até a periferia ensinar noções de higiene, aplicar injeções e vacinas. Fazia parte do front da luta pela Higiene e Saúde, obra do governo Getúlio. Quando os negócios do meu pai iam mal, o seu pequeno salário de funcionária pública sustentava a casa. Tinha uma simpatia: guardava todo o dinheiro do mês por 24 horas. Isso lhe dava tempo para pensar em como gastar com parcimônia, apenas no que era considerado fundamental. Um dia antes de morrer, sabendo que eu estava duro e teria que pedir dinheiro emprestado para poder voltar, me abraçou e me olhou fundamente e deixou-me uma surpresa. Depois do enterro, minha irmã veio com o dinheiro da passagem e me disse: a mãe mandou te entregar. Essa era a funcionária pública que gerou sete filhos e morreu na glória de Deus, em paz com a consciência, depois de uma vida curta (62 anos) dedicada ao povo ao qual pertencia. Por isso quando fazem campanha contra o funcionalismo público estão faltando com o respeito às minhas origens e à minha formação. Aprendi a ler e escrever num colégio público, fui salvo mais de uma vez por médicos da saúde pública e tenho pelo funcionalismo nacional a mais alta consideração. Honra e glória aos heróis da pátria.

Nenhum comentário:

Postar um comentário