25 de janeiro de 2005

GLAUBER, A PROFECIA NO DESERTO




Nei Duclós

Glauber Rocha é o tempo presente amaldiçoado pela História. Sua pregação é feita no deserto (rural em Deus e o Diabo, urbano em Terra em transe) porque o deserto, pela ausência, destaca o humano entregue ao horror das contradições. Nele, a palavra incorpora o futuro quando é murmurada pela fúria, e elimina a esperança para repor a verdade. Não há, no cinema mundial, nada que se compare ao maremoto dessa criação sem limites, que nos abate em ondas toda vez que vemos a imagens que produziu, como se o delírio fosse nossa única realidade e a guerra nosso destino. Glauber assume o que há de pior na cordialidade brasileira, esse comportamento ciclotímico ditado pelo coração. Ele colocou a vontade no cérebro cozinhado pelo fogo e nos encara com o gênio do seu carisma.

MALDIÇÃO - Lembro a primeira das inúmeras vezes que vi Deus e o Diabo. Foi no cine-teatro Carlos Gomes, em Uruguaiana, espaço que deveria ser tombado e que foi destruído. As pessoas levantavam fazendo gestos indignados e saíam aos berros. Não havia concessões naquele filme maldito. Mas não havia como escapar de Corisco abrindo os braços e gritando num zoom demolidor: está vendo, padinho Ciço, pobre não morre mais de fome; estou matando todos eles, com meu fuzil e minha adaga de São Jorge; está aqui ela! Foi quando Othon Bastos tornou-se o maior entre seus pares e nos cuspiu fora como se fôssemos as vítimas nordestinas daquele cangaço cultural. Glauber nos transforma em formigas predadoras que precisam ser eliminadas. Ele nos tortura com o longo assassinato de uma criança nas mãos do beato negro e nos coloca sob a capa horripilante de Antonio das Mortes, aquele personagem que, quando atirava, fazia Luis Buñuel saltar da cadeira. Qual a profecia desse cinema? A de que estamos condenados pelo que somos e morreremos na guerra que nosso ódio e nossa vergonha produziu. Quando leio Ferreira Gullar na Folha confessando, candidamente, que estamos reféns dos políticos que só pensam em nos tungar, não agüento sua fé na falsa democracia em que estamos mergulhados. Ainda vai haver uma guerra grande nesse sertão, predisse Antonio das Mortes. Estamos nela. Sua irresponsabilidade política, sua irresponsabilidade política, seu anarquismo, diziam Othon e Paulo César Pereio em Terra em Transe. Glauber eliminou as ilusões no messianismo revolucionário encarnado por Jardel Filho e colocou Glauce Rocha como a percepção torturada da consciência impotente. Sabemos onde estamos metidos, mas não queremos assumir esse horror.

ESCÁRNIO - Glauber nos desperta pelo susto e corta nossas cabeças. Seu inferno é o Brasil, país que tenta decifrar filmando seu avesso. Estávamos ainda embalados pelas alegres comédias da Atlântida quando o sol tomou conta da tela e havia sangue nela. Os tiros fajutos do faroeste americano sumiram quando Glauber engatilhou o rifle de sua saga. Jamais haveria Sam Peckinpah com seus massacres em câmara lenta se antes Glauber não tivesse destruído as soluções bem comportadas da violência. Glauber bebeu em fontes diversas para compor sua trama. Reproduziu os planos das procissões de A fonte da donzela, de Ingmar Bergman, e do La Strada, de Fellini. Bebeu em A árvore dos enforcados (The hanging three, 1959), de Delmer Daves. Nesse filme, Glauber retirou o visual do seu Antonio das Mortes (a capa até o chão, o chapéu, a arma), inspirado no mendigo encarnado por George C. Scott (visual que foi chupado até o osso, não de Daves, mas de Glauber, por Sergio Leone). Glauber tinha bebido em Terra Trema, de Visconti para filmar seu Barravento. Ele não é, portanto, um cineasta de geração espontânea. Mas quando decidiu fazer um filme com a câmara que comprou por ter vendido o fusca doado pela família, resolveu ir fundo, queimou seus navios para não mais voltar. Pagou por isso e morreu de infecção generalizada no Portugal gelado de Sintra. Foi morto pela indiferença dos contemporâneos, pois tudo Glauber poderia agüentar, menos a espera ansiosa dos outros pela sua morte prematura. Então foi-se, carregado pela sua mensagem. Ainda não merecemos Glauber Rocha, a profecia que cumpriu-se no seu corpo torturado e que se cumpre agora, na guerra total do país que desistiu de ser uma nação e que empresta sua bandeira para o escárnio internacional.

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