13 de janeiro de 2005

A SAGA DA SITUAÇÃO LIMITE

Meu tipo de filme favorito é aquele que mostra alguém enfrentando uma situação limite. Não é o caso dos que procuram forçar a barra e se metem em encrenca para provar alguma coisa. Mas de pessoas (passageiros de navios ou aviões, por exemplo) que são colhidos por tempestades, avalanches, acidentes em geral. Saber como vão se virar naquele momento e como a história vai se desdobrar é o que me prende a atenção. A origem está em Robison Crusoé, que é ficção em cima de uma história real. Alguns filmes de segunda, como O vôo da Fênix e o Destino do Poseidon, marcaram época. O exemplo mais recente foi divulgado pela televisão: o garoto colhido pelo maremoto que agarrou-se a um pedaço de pau e encontrou uma balsa vazia cheia de côcos. Essa é a saga que me interessa, quando a paisagem hostil acaba cedendo e dá uma chance para haver sobreviventes.

LAWRENCE - Nunca mais vi O vôo da Fênix. Foi dirigido por Robert Aldrich e lançado em 1966. É com James Stewart que, muito velho, faz o papel do piloto turrão que duvida do especialista em aeromodelos. Este sugere que transforme o Boeing num avião menor, para que escapassem da armadilha do deserto. A tensão entre os dois costura a narrativa. O Destino do Poseidon é mais complicado e inverossímel: um grupo de pessoas tentar sair de um grande navio emborcado. O cenário de ponta cabeça, a performance de Gene Hackman, o terror das pessoas que vão sucumbindo, tudo transforma esse filme em algo inesquecível. Algumas seqüências antológicas de Lawrence da Arábia fazem dele o maior filme de todos os tempos. A começar pela travessia do deserto do Nefu, rumo a Akaba, a cidade tomada pelos turcos que deveria ser invadida por um punhado decidido de guerreiros. Toda a seqüência em que um dos acompanhantes da caravana dorme e cai do camelo e é resgatado abaixo do solaço pelo teimoso tenente inglês, que queria provar a inexistência da fatalidade, é um dos mais emocionantes momentos do cinema. Há ainda toda a seqüencia antológica de Lawrence da Arábia cruzando o deserto do Sinai na companhia de dois garotos, que culmina com a visão impressionante de um navio trafegando pelo deserto. Lawrence adorava o deserto e jamais desprezou sua força. Era franzino e obsessivo. Foi colhido pelo destino e enlouqueceu na guerra. Li seu livro quase póstumo, de memórias da fase posterior a essa, em que alistou-se com nome falso no exército inglês e lá sofreu horrores. Os historiadores adoram desconstruir o mito, mas fico com a versão de David Lean, o gênio absoluto. Nenhum filme se compara a esse, pela intensidade da ação, pelas imagens poderosas, pela atuação de atores fundamentais como Anthony Quinn, Omar Sharif, Alec Guiness, Anthony Quayle, Jack Hawkins. É impossível deixar de lembrar a majestosa aparição de Sharif, todo de preto, apenas como um silueta no horizonte do deserto, cena sem som e absolutamente louca porque, quem vê pela primeira vez, não sabe o que está acontecendo. Funciona no cinemascope. Sou do tempo em que cinema era outra coisa. Um detalhe era absolutamente maravilhoso: ninguém mijava em cena, como acontece hoje, em TODOS os filmes. Que alívio!

TUBARÕES - O menino que se salvou com a jangada vazia já é um filme na imaginação de todos nós. Podemos ver a cena em que ele é colhido pelo mar em fúria, em que perde toda a família, e é jogado para o meio do nada, agarrado a um tronco de árvore. O desespero de quem se vê diante da morte, a esperança quando se aproximava jangada, o terror de descobri-la vazia, a abnegação pela vida no consumo dos côcos e finalmente a salvação. Soube há tempos da história de três pescadores que, depois da tempestade, perderam tudo, até os remos. Tinham apenas uma corda e um pedaço de pau. Com isso eles laçavam pequenos tubarões pelo rabo, davam uma paulada no bicho, depois retaliavam e chupavam o sangue. Tiveram a sorte de pescar com as mãos um capacete desses de operário de construção, no qual recolhiam água da chuva. Foram descobertos sete meses depois. Trata-se da mais longa permanência de náufragos perdidos no mar. Esse heroísmo me agrada. Essa situação limite me interessa. Sobrevive quem foi escolhido pelos deuses. Não obrigatoriamente os que se prepararam para isso. Na hora decisiva, todos são iguais, ninguém é imortal.

RETORNO - 1. Quando viu Lawrence pela primeira vez, ainda garoto, Steve Spielberg disse: é isso que eu quero fazer. O resultado é toda a sua carreira e uma cópia escrachada: o Império do Sol, que era um roteiro que Steve queria produzir para Lean filmar. O gênio disse para o aprendiz: faça você. Quem viu, sabe: Spielberg chupa seqüências inteiras de outra obra-prima de Lean, Doutor Jivago. Lean é o maior. Quem pode ficar ao seu lado é Akira Kurosawa, aquele que produziu maravilhas como Sonhos, acusado de ser um Kurosawa menor. Não existe Kurosawa menor, apenas críticos medíocres.2. Google informa: O Vôo da Fênix foi refilmado e está sendo lançado este janeiro. Tenho certeza que o mocinho da nova versão, o tal Denis Quaid, vai mijar em cena. Ou ele ou outro qualquer. Apostem.

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