12 de fevereiro de 2005

VIDAS SECAS, O HUMANO COMO ÚLTIMA GOTA




Nei Duclós

Não há país em Vidas Secas, há o inferno. O clima e a geografia aliam-se à opressão econômica para expulsar a família que busca a sobrevivência na fuga. O último degrau a que desce o grupo humano é representado pelo sacrifício dos animais domésticos ? o gado, primeiro, depois Baleia, a cadela vítima de um tiro de misericórdia, e finalmente o papagaio, transformado em refeição. Nada mais existe abaixo das pessoas. Elas são a última gota do deserto que não leva a nada. Nesse território varrido pela tragédia, só resta o sol, que engessa o movimento, e o chão calcinado, que tortura tanto o espaço doméstico quanto a estrada sem futuro. Metáfora da perdição dos que buscam a sobrevivência no país que não existe, a narrativa nada oferece a não ser a presença de um homem, uma mulher e uma criança, condenados por um destino que se expressa por um clarão sem tréguas.

SOPRO - Nem a noite vem ao socorro dos brasileiros perdidos na exclusão absoluta. A luz, a mais intensa que alguém pode suportar, serve então para definir o contorno de uma caminhada que não salva os protagonistas, mas produz a revelação de quem assiste. Não é um processo químico da imagem que surge de um negativo invisível, mas a inoportuna claridade que se introduz bruscamente na sala escura e queima o filme com as chamas da perdição. Vidas Secas nos escapa como um segredo que se mantém intacto, porque nos expusemos demais à Verdade, e o que ela produziu não foi assombro nem desesperança, mas a evidência de que somos feitos daquela terra que recusa o barro e, portanto, se nega a estruturar a vida para que nela encontre pouso qualquer sopro de alma imortal. O milagre é que as pessoas que são oprimidas até a redução absoluta do gesto imóvel animam a consciência como uma transfiguração. Vemos do que é capaz o que se conhece por gente, quando nada lhes assiste, nem a mais miserável das misericórdias. Eles insistem no andar, como se fossem tangidos pelo que encontraram depois que a morte lhes tolheu o passo. No cruzar desse umbral, eles chegam até nós com reservas de suor, com palavras obsessivas, com as caras retorcidas por algo que pode se confundir com determinação, mas que é apenas a coragem de quem sabe que nada possui, a não ser a vida ressecada pela vastidão da injustiça. Não se trata de um libelo ou de uma denúncia, mas da queda rumo a uma possibilidade maior do que qualquer ilusão. Nelson Pereira dos Santos queima o filme para sempre quando transforma sua saga num encontro entre o conforto do espectador e a violência do que é exposto. Isso é o que somos, nos diz o Mestre, e iremos ainda mais fundo na negação. Não há volta que nos redima, não há final de sessão que nos aliene, não há memória que se apague. Quando as imagens de Vidas Secas nos perseguem, sabemos que é lá que continuamos a existir, a desafiar o destino com nossa teimosia.

TRASTE - O filme é o olhar que não se esconde. Vidas Secas é o filme que nos recusamos a ver de frente, não porque a luz nos cegue, mas porque a luz nos flagra. Somos trespassados pelo mistério da nossa imobilidade e só o filme fala, como um eremita iluminado pela dor. Descobrimos nesse instante que nenhuma palavra irá apagar a revelação e nem mesmo se inundarmos o deserto com todas as águas que dispomos poderemos fugir do presente indissolúvel desse filme magistral: a jóia indestrutível de uma porta que se abre como um dilúvio sem água nem sangue. É quando vemos o humano reduzido à sua essência: o abandono num universo hostil, a esperança evaporada como a miragem que vira areia, o transtorno da falta de saídas, a loucura de estar vivo, mesmo que tudo conspire para o sumiço do que chamamos vida. Adeus, inocência perdida. Vidas Secas veio para ficar. Somos Baleia diante do fuzil, somos o delírio embaixo do arbusto de espinhos, somos o caminhar em direção ao nada. Nada nos livra dessa herança, a não ser a vontade de ver o que o filme nos entrega: o real como uma fantasmagoria, o pesadelo como um passeio no caos, a responsabilidade deixada para trás como um traste na poeira de um caminho sem volta. Somos a última gota, na paisagem que nos nega.

RETORNO - Nasceu ontem, dia 11, Maria Clara, minha neta, filha de Juliana e Marcos. À equipe do grande obstetra Marcos Leite dos Santos, do Hospital Universitário (HU), aqui de Floripa, a família agradece. O HU é parte indissolúvel do Brasil soberano e honra a medicina do país.

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