6 de fevereiro de 2005

HITCHCOCK, O TERROR DA VIDA NORMAL


Alfred Hitchcock demoliu a idéia de que existe conforto no mundo ordinário. O vizinho que esquarteja a mulher e enterra a cabeça no jardim, a tesoura que serve como arma para um crime hediondo, os pássaros inofensivos que tornam-se assassinos, o pequeno avião que pulveriza lavouras fazendo rasantes na estrada deserta para matar um inocente, todas essas situações inesquecíveis que ele inventou são recorrentes neste autor que, ao ser excluído na sua formação, por ser gordo e desajeitado com as mulheres, usou o cinema como vingança, mas de maneira tão genial que tornou-se um alerta. A partir dela, foi preciso prestar atenção nas arapucas do corriqueiro, armadilhas mortais que denunciam a loura bonita que no fundo era outra, a mãe pranteada que enlouqueceu o filho.

Ver, em Hitchcock, é pesquisar as aparências e descobrir nelas a selvageria oculta. Seu cinema formatou-se no século das grandes guerras, em que a sociedade resultante fez tudo para colocar um verniz em cima da barbárie, mas que não conseguiu esconder desse olhar atento o terror que aflora na sala, no quintal, na pequena cidade do interior.

ARDIL - A normalidade, em Hitchcock, é criminosa. O marido que vai ao clube jogar pôquer armou a lâmina nas costas da esposa e para isso usou de todos os ardis para escapar ileso. Seus filmes são o esforço que heróis solitários fazem para descobrir a verdade, remando contra a corrente das evidências e não se deixando iludir pela armação do cenário. Sua obsessão pelo esclarecimento de situações comuns que escondem um cadáver no fundo do baú chega ao extremo de colocar a narrativa a serviço do olhar ininterrupto.

As cenas não se resolvem, continuam, cada vez mais intrigantes e intensas. O suspense não cede, se aprofunda. A respiração não volta ao normal, se sufoca. O que diz com sua presença ocasional em todos seus filmes é a necessidade de prestar atenção nesse jogo de espelhos, pois quando menos se espera, sua silhueta aparece tomando um ônibus no fundo do plano, carregando um cachorro disfarçado de mero passante. A chave para entender esse seu truque é treinar o olhar do espectador para o que se esconde nas tentações da cena. Uma festa íntima pode ser apenas o álibi para cometer um crime, um passeio noturno é o carregamento de um corpo, um arrulho de pássaro esconde uma revolta animal. O herói que desvela o segredo é uma pessoa comum imersa em seu conforto que é alertado antes dos outros e é obrigado a tomar a iniciativa de encarar o terror de frente.

Seu trabalho é convencer os outros, como faz o fotógrafo James Stewart em Janela Indiscreta. A revelação que torna-se clara para um olhar solitário precisa ser compartilhada para evitar o pior. Enquanto isso não acontece, ele passa por louco, até que o desfecho coloca todo mundo contra a parede. É quando os pássaros rebentam as paredes, o corpo cai, o vizinho vem acertar contas. A maldade de Hitchcock é nos devolver o conforto no final, mas nos assombrar com suas sugestões depois da sessão, quando suas imagens nos perseguem e nos fazem ver que ao nosso redor alguém conspira para nos eliminar.

MISTÉRIO - Você não vive no melhor dos mundos e não é porque você é infeliz, ou frustrado, ou saiba que vai morrer. Você está condenado porque aceita as aparências como se fossem definitivas. Hitchcock escolhe a dedo seus atores, que sintetizam essa normalidade que ele quer denunciar. Não existe nada mais bem comportado do que Stewart, nada mais atraente do que Kim Novack, nada mais simpático do que Cary Grant. Pois eles estão dentro do enredo mortal e se debatem para nos dizer algo.

O mistério está em coisas prosaicas como um cabelo bem produzido, um rosto amigável, uma gaivota empoleirada. Ali, naquele cantinho do Falso Bem, dorme um monstro. Ele suspira de vez em quando e então trememos na cadeira. Lembro que não pude ver nenhum dos seus filmes antes dos 18 anos. Olhava os cartazes, como se dizia, e neles tentava adivinhar, em vão, alguma coisa. Vi depois, quando já não conseguia me assustar ta facilmente e já tinha lido o suficiente para me manter alerta. Assim mesmo, quando o cachorrinho que descia num cestinho de palha começava a farejar algo enterrado e esse algo é a cabeça da mulher assassinada, um calafrio quase me expulsava do cinema.

Hitchcock filmou o terror para pessoas como eu, que fogem desse tipo de tema. Vamos ver a loura, o detetive, o casal, jamais o horror. Então somos colhidos por uma tempestade e não podemos mais sair da sala. Você está frito por fugir do que o assusta, diz Hitchcock. Venha ver o que preparei para você. Sofra de vertigem e suba essas escadas até saber do que se trata, fique imobilizado diante de uma cena macabra, cruze um corredor de aves antropófagas. Venha até o meu olhar insano, nos diz Hitchcok, e descubra o que você deixou de lado como se fosse uma bobagem e nada mais é do que um plano terrível para acabar com tua raça.



RETORNO - 1.Imagem desta edição: o Mestre dirige Rod Taylor numa cena de Os Pássaros. 2. Ricardo Peró Job me envia um conto sobre uma falsa assombração, Virson Holderbaum volta de uma viagem ancestral, Urariano Mota assesta de novo as baterias com seu texto revelador, Jésus Gómez me envia uma das mais belas cartas que já recebi, José Renato Faria me pauta sobre Hitchcock, novos leitores se manifestam no site, e o recesso do Diário da Fonte acaba. Alguns dias de sufoco servem para deixar Outubro em compasso de espera, mas sempre chega o dia de retomar a palavra, como o sol que se anuncia pela barra de luz muito diáfana no leste cheio de promessas.

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