2 de março de 2005

A IMPOSIÇÃO ARTIFICIAL DOS VERBOS




Costumo enfrentar oposição quando elimino o vício, muito comum hoje nas redações, de se usar quinhentas variações para substituir o verbo dizer. Soube por importante jornalista amigo meu que ele tem aturado renitente defesa por parte dos adeptos dessa bobagem, que afasta leitores e torna intragável qualquer texto. Compus então uma argumentação básica que pode ser brandida diante da mediocridade imponente que confunde babaquice com criatividade. Antes, um ataque frontal necessário à atual impunidade dos publicitários que, sem oposição, tomaram conta da mídia e precisam urgentemente levar um corretivo.

FREEZER - A publicidade é a redundância levada à exaustão, mas os publicitários ganham mais porque vendem a imagem de seres especiais criativos. Recentemente tiraram um comercial de cerveja do ar que chupava cena de uma comédia romântica americana, em que um monte de pretendentes perseguia um pobre rapaz. Substituíram o noivo por um desses biotipos garanhentos execráveis que servem de modelo para a virilidade ascendente, ou seja, barba por fazer, calça meia canela, camiseta fajuta, toca na cabeça, cara de esperto. E as noivas por senhoras da terceira idade. O cara então, para fugir ao assédio das velhinhas, se refugiava num freezer cheio da cerveja em questão, onde tomava contato com uma beldade milionária, dessas que ganham montes de dinheiro público para berrar e sacudir as carnes. Isso em lugar civilizado dá cadeia no mínimo, mas aqui é visto como uma gracinha. Tiraram tardiamente o comercial do ar, mas existem outros. As pessoas vão comprar produtos de uma marca de sorvete e vêem lá dentro do freezer algum galã ou beldade e aí se refugia no gelo para ter um pouquinho de sexo. Na ditadura em que vivemos, o sexo é vedado para ser vendido virtualmente, aos borbotões, linkados com todos os tipos de marcas, para a massa mal resolvida. Sem falar no celular que, ao ser comprado, te dá direito a uma Cicarelli ou Bunchen. Para você cair na arapuca (que custa os tubos para ser usada) é preciso que tentem te seduzir com o sexo que lhe negam. Em compensação, os reis espanhóis chegam aqui, deslumbrados com a capacidade que temos de baixar as calças para eles (já que deitam e rolam na telefonia e nem tugimos nem mugimos) e são recebidos por macumba para turista na Bahia, com o nefando Carlinhos Brown faturando diante da nobreza, para mostrar como somos nativos exóticos cheios de amor (que na linguagem publicitária, é o rabo) para dar. Esse é o ambiente da nação de escravos que tenta dourar a pílula da narrativa jornalística substituindo o verbo dizer por milhões de pretensos sinônimos.

ASPAS - Quando a pessoa diz algo, sua fala é reproduzida no texto entre aspas. Ela simplesmente diz. Se o texto se referir à fala, citar a fonte sem colocar a frase dita entre aspas, então ele pode garantir, destacar, definir, concluir. Como vivemos na época do jornalismo morto, a narrativa do repórter perdeu completamente a função. Os textos da mídia só servem como instrumentos de falas alheias, especialmente as corporativas. Os repórteres estão proibidos de compor a própria narrativa, o que sempre insuflou força ao jornalismo. Então eles terceirizam e cada matéria fica cheia de frases entre aspas. Claro que se você colocar depois de cada aspa o verbo dizer ficará redundante. O problema não é com o verbo dizer, é com a estrutura do teu texto. Você colocou tudo nos ombros da fonte, inclusive a tua função, que é escrever para jornal. É a fonte que está montado no teu cangote, dizendo sem parar. Então você tenta disfarçar e depois de fechar aspas coloca um desses milhares de verbos que pretensamente substituem o dizer. Já cortei coisas como suspira fulano. No fundo, a invenção artificial de substitutos ao verbo dizer significa, entre aspas, que os jornalistas estão sendo criativos. Não estão. São apenas redundantes. Incorporaram os vícios da publicidade: repetir as mesmas fórmulas até a o público optar pelo suicídio coletivo. Foi o que aconteceu com os incas quando viram os espanhóis chegar: se atiraram no abismo. Lá vem a telefonia castelhana! gritaram eles e se estatelaram nas pedras.

GERAÇÃO - Usufruo do privilégio de conversar, nos últimos tempos, com formandos de jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina e sempre me deslumbra a capacidade que existe no Brasil de produzir gente bem preparada e talentosa. Todos com quem falei têm noção exata da armadilha em que estamos metidos no jornalismo. Estão à cata de estágio ou simplesmente trabalho. Não conseguem ler os jornais ou revistas e apontam a bizarrice de personagens badalados da mídia. Temos gente boa para fazer jornalismo de primeira água. O problema é o poder nas redações, atualmente sob o jugo e o tacão do departamento comercial. Quando trabalhei na Record como diretor do telejornal (1992) não permitia que os pastores da igreja universal entrassem na redação. Durei apenas sete meses e o diretor de plantão, na hora da minha saída, veio me falar em vida espiritual. Quantos anos tem sua igreja? perguntei. Quinze anos, disse ele. Pois a minha tem dois mil anos. Não me venha falar em vida espiritual.

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