22 de março de 2005

O JOGO ANTES DO ÚLTIMO VÔO




Escutas coisas insuportáveis. São os outros que emitem sons, na sua faina de arrebentar teu dia. És um bom carregador de lixo, dizem, falta muito para chegares a um tratorista de represa. Lave infinitamente esse canto sujo, meu caro, quem sabe desamarro essa caratonha feroz. Serás feliz por alguns segundos, te entregarás a teus devaneios? Pois então tenho algo a te dizer: aquilo que esperávamos acontecer, desaconteceu. Pior: desencadeou a fúria do tempo. Levante daí e venha repartir meu inferno, pois disso eu preciso mais do que tudo. Falas com entusiasmo de algo? Deixa que eu diga coisas no mesmo tom, ao mesmo tempo, para que sufoque teu quarto crescente, para que não chegues à lua cheia. Por que faço isso? Por prazer e medo. Não quero que vivas, poderei sucumbir se te deres bem. Vamos jogar o jogo? Fecharei a cara até caíres no chão. Tente contar as estrelas, tente. E nem pense em ficar mal. Ficarei pior, para que me atendas.

SAPATOS - Não fique tão desesperançado. Seja zen, não reclame, isso é coisa de pobre. Quem se importa? A oposição morreu. Restamos na maré alta do consumo, como vagalumes de barro, a tatear no escuro. Tudo é presente, previsível. A dor, o sofrimento, passam. Fica esse rescaldo de guarda-chuva na boca, esse porre pelo avesso, essas palavras podres. Tens tempo para ficar vendo algo que se move à tua frente? Jogarei todos os slogans do mundo, até ficares exausto. Depois, quando meus emissários souberem que estarás dormindo cheio de pesadelos, eu colocarei no vídeo morto uma obra-prima, que guardo num baú de ossos, só para te aporrinhar. Nessa faina tenho o apoio de todos os monstros existentes, que se travestiram com ternos dourados, gravatas brilhantes, cabelos salientes, óculos da moda, relógios que funcionam até em Marte, sapatos italianos, , micos de Madagascar, canetas de madrepérola. Todos estão milionários com suas satisfações em dia. Só tu desces os degraus da miséria porque foste torpe, insististe nesta doença infantil da poesia, resolveste virar o que sonhaste um dia. Que idiota. Essa performance já foi chupada pelos vampiros que aspiram a ser o que sempre foste, mas não te deixam ser. Então temos clones de ti, a pairar no ar como mariposas do mal. Quem é você? O único que jamais poderá ser, sob pena de eliminar todos os outros. Calce então teus coturnos, verifique a mochila, saia para a estrada. Veja o caminhão chegando carregado de soja. Estás com o dedo esticado, o cabelo ainda molhado do último banho. No volante, alguém mira uma espingarda. Já viste esse filme e no fim, levantas da cadeira.

BANDEIRA - Aquela pessoa faz que te escuta, mira para bem dentro dos teus olhos, chega a cruzar os braços para dar descanso ao corpo. A cabeça está fixa, toda a atenção voltada para ti. Mas ela quer falar é de suas próprias coisas, nem sabe o que estás dizendo. Basta você respirar um pouco mais fundo e ela vai retomar a conversa do ponto em que deixou. Estavas o tempo todo iludido que conversavam, mas és apenas o espectador dioturno, farto de tantas queixas, mas ainda vivo, como um tamanduá agredido no asfalto que perde a perna, o bico, mas arrasta sua bandeira até o formigueiro mais próximo. Estás em extinção, meu camarada. Ninguém mais te chama de amigo, ninguém quer te ver, ouvir, suportar. Então calças teus coturnos, apertas bem o nó que prende o couro à tua perna cheia de irritações na pele. A calça jeans voltou a ser fina, leve, grudada no corpo. Caminhas ao som de guitarras mortas, que gemem blues no Outro Lado. O mundo acabou há muito tempo e sobrevives como alguém prestes a ser enquadrado em alguma gaveta conceitual, familiar, literária. Não tens existência, meu camarada. Sabes carregar uma lata de lixo, mas não engatas a primeira no trator que procura a ametista na mina. Veja quem chega de todo o lado da estrada. São aqueles que um dia abandonaram teu sonho. Eles voltaram, fazendo rugir o horizonte. Tens companhia, meu camarada. Acabaram-se as súplicas. Engatilhas a espingarda. Nenhuma ave deixará de tremer diante da tua pontaria.

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