3 de março de 2005

O PRIVILÉGIO DO SEXO PLENO




O sexo deveria ser um assunto de foro íntimo, mas sabemos que não é bem assim. Necessidade básica, está cercada de vetores poderosos, como saúde, educação e situação financeira, estes totalmente dependentes de políticas públicas. No arrocho financeiro em que vivemos, de um país sem fundos e, portanto, com cidadãos igualmente falidos, o sexo está sob o jugo da falta de grana e isso é feito de propósito, pois assim é possível gerar uma considerável indústria que não se restringe apenas à prostituição. A publicidade, os produtos ditos culturais e a mídia em geral dispõem da cidadania mal resolvida para explorar a tesão bem remunerada. Quando o cantorzinho sacode a genitália para o auditório, e este retribui atirando calcinhas, quando a starlet faz a dança do tchan e da garrafa, para que sovacos peludos uivem e balofos apresentadores sacudam as banhas de tanta euforia, quando a top model caça um bom partido, quando a rainha da bateria ocupa o espaço da velha guarda, a situação é idêntica aos bordéis e ao entretenimento de massa. O resultado é uma tragédia: desde a gravidez precoce ao alpinismo social, desde o tráfico de mulheres e menores à exposição maciça dos traseiros, tudo passa pela exclusão da maioria a uma vida que poderia ser cheia de alegria, porque no fundo é para isso que deveríamos estar neste mundo, para nos completarmos na maravilha que é viver sem a alienação entre a fantasia e a realidade.

AMOR - Faltam parceiros que assumam a responsabilidade de uma vida a dois, falta tranqüilidade e silêncio, para que as pessoas se dediquem à libido em harmonia, sobram preocupações que impedem o orgasmo sucessivo. Fica difícil falar mais sobre isso sem cair na tentação das palavras que caem no lugar comum, já que o sexo tornou-se o alvo principal das distorções, e isso é ensinado desde a infância. Fico imaginando o que pensam as crianças sobre o mundo adulto tão explícito em cenas dantescas, e implico com os adultos que invocam a repressão milenar para garantir que tudo deve ser permitido. Uma senhora uma vez me disse uma frase lapidar, ao se referir a uma filha que fez questão de levar o namorado para dormir em casa. A senhora não permitiu (eram os anos 70) e foi submetida a uma saraivada de dizidas sobre a libertação. Os jovens acham que só eles trepam, disse ela. Hoje vemos a situação inversa: os programas da Terceira Idade, que servem para tirar a sobriedade dos mais velhos para assim submetê-los à ditadura do comportamento pretensamente liberado, exibem cenas que poderiam ser dispensadas da exposição pública. A imposição da juventude e da magreza a qualquer preço tirou da maior parte da população seu bem mais precioso: a auto-estima. Muita gente se mata na lipoaspiração, no consumo de remédios perigosos, na injeção de anabolizantes, tudo em nome da Forma, colocada como oposição frontal ao Conteúdo. Nesse ambiente, falta clima para medrar o Amor, que é fruto do sexo pleno. O sexo se serve do corpo como instrumento, mas começa na cabeça e parte para o coração. É imaginação e abandono, é confiança mútua, é sentimento e transgressão das amarras que nos impedem de viver (romper, e não ficar sob o jugo das amarras fingindo que elas não existem; os limites impostos pela ditadura e o arrocho são os mesmos que mentem sobre a liberação total; o sexo pleno é a liberdade que começa na sociedade e pousa na cama) .

ÔNIBUS - As mulheres, por destino ditado pela anatomia, estão sempre em desvantagem. Não falo contra os avanços femininos das últimas décadas, falo de contingência biológica, gravidez, por exemplo. Nunca entendo porque costumam chamar algumas celebridades de Poderosas. Poder aí só se explica se houver chantagem baseada no gênero, e isso passa longe do sexo pleno. Curvas, líquidos, fragilidade (de quem é, por natureza, receptora) estão à mercê da força bruta se não houver segurança e paz social. Li que existem dois milhões de casos/ano no Brasil de agressão às mulheres. O Brasil é uma espécie de campeão mundial do machismo prepotente. Lembro sempre Paulo Francis que matou a charada do gesto típico do machão, o de estar sempre colocando a mão nos países baixos. Um povo castrado precisa verificar se tudo continua no lugar, disse Francis, mais ou menos com essas palavras. Nos ônibus, detesto ficar ao lado dos homens. São sempre espaçosos e jamais fecham as pernas, pois acham que têm o direito de usar todo o espaço disponível. As mulheres se encolhem ao lado desses sujeitos, e eu, quando sou premiado com isso, me irrito e revido dando uns encontrões. Fecha as pernas coração, digo entre dentes. Mas se a mulher senta ao seu lado, o esforço é deixar explícito que você não é um desses assediadores, que tudo fazem para tirar uma lasca da presença feminina. Ou seja, é um angu de caroço. Fico aliviado quando chego no terminal. É por isso que no ônibus executivo os lugares mais disputados são aqueles que não possuem um banco ao lado. O isolamento necessário para enfrentar a vida diária faz parte desse pesadelo em que se transformou o sexo no Brasil, país que exibe as pudendas para o resto do mundo, como se aqui fôssemos uns folgazões incorrigíveis. A macacada gringa vem para deitar e rolar, já que vendemos essa imagem para quem quiser comprar.

PRAÇA - Uma professora minha, emérita doutora em História, nos disse em aula que o mais complicado para as brasileiras no exterior era explicar que não são as vagabundas que a indústria de turismo vende para os outros países. É brasileira? Então vai tirando a calcinha. A senhora sua mãe, ô estrangeirinho panaca, é que deveria fazer uma performance em praça pública. No fundo, o que vemos nas ruas, pessoas de cenho carregado e cara infeliz, vem da impossibilidade do sexo pleno, que fica restrito ao privilégio. O que faz sentido, no país da exclusão social.

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