30 de abril de 2005

A SOCIEDADE DOS BRASILEIROS MORTOS




Afora o massacre nacional (45 mil assassinatos/ano, 50 mil vítimas fatais de trânsito/ano, crescimento negativo da população masculina e 18 a 24 anos devido aos homicídios) temos, dentro de cada um de nós, um brasileiro morto. Para quem é antigo, ele é visível a olho nu. Proteína na primeira infância, estudo puxado por quase duas décadas, família estável, formação religiosa e cívica predominam nos que nasceram antes de 1964, incluindo aí as classes menos favorecidas economicamente, já que o emprego público existia em rede, havia estabilidade no trabalho e o país não devia os tubos, ou seja, estava liberado para crescer, portanto sempre havia algum, apesar da escassez. Havia miséria, havia pobreza, mas nada comparável ao que temos hoje. Para quem nasceu depois de 64, o brasileiro morto é virtual, potencial ou simplesmente uma presença incômoda. Duzentas pessoas presas de uma só vez na fronteira do México com os Estados Unidos: se isso não é fuga em massa da condição de ser brasileiro, não sei o que é.

VIAGEM - Manter um brasileiro morto dentro de si dá trabalho. Eu estava na linha direta do ônibus ante-ontem, que funciona assim: você fica na fila do terminal e esperar encostar o verdão (oposto ao amarelinho, executivo). Consegue um lugar sentado, mas sempre tem gente em pé, pois há pouco veículo para tanta demanda. Eu espero pacientemente a minha vez. Consigo o lugar. Chega a família despencando de filhos. Penso: sobrará para mim. Ninguém arreda do lugar, claro, pois se quiser sentar, que espere na fila, lá fora. A viagem transcorre com a gurizada ao lado de mim naquela energia própria da idade, enquanto os pais olham ao redor, pesarosos. De repente, o loirinho mais velho começa a passar mal. Senta nas escadas da porta e vomita. A mãe acode com um perigoso saco plástico. Há tumulto familiar. Ninguém se mexe. O grandalhão pesado, pré-64, levanta-se imediatamente, enquanto a juventude ao redor moita (vício nacional). Cedo o lugar para a mãe que coloca o filhão mal-passante no colo. O maridão nem sequer me olha. Para ele, eu tinha a obrigação de me levantar, talvez. Ou talvez seja o brasileiro morto que carrega dentro de si. Assim como os demais passageiros, ele moita total. Eu fazia parte da cena, estava sentado confortavelmente enquanto a família se desesperava de pé. Mas de repente o brasileiro ressuscita e dá um safanão. Passo o resto da viagem de pé. Que coisa chata ser civilizado! Como há injustiça nesse mundo.

CORRENTE - Olho ao redor. Todos mudos, mirando o vazio. Estão mortos e não sabem disso. Ninguém parte em direção ao Outro, ninguém recebe o Outro em sua morada. Guardamos o melhor de nós para nosso próprio usufruto, o que significa estar preso a uma pesada corrente de ignomínia. O país despenca e continuamos assim. Estamos exaustos do Mal que nos governa. Somos sobreviventes e não criaturas ruins. Nosso traseiro vive ao ar, por isso em qualquer oportunidades nos grudamos à cadeira. É difícil sentar a bunda no país. Não há bancos de praça, não há cadeiras suficientes nas empresas que cada vez mais diminuem os espaços para manter o lucro da sobrevivência. Caímos no chão quando chegamos em casa. Aí ligamos a TV e lá está o novo milionário, bem fornido, instalado na cadeira monárquica, gargalhando de nós e nos chamando de lerdos. Não somos comodistas, temos um país morto dentro de nós, é diferente. Guardamos algo insepulto, o brasileiro que desperta tanta desconfiança. Ele se levanta de vez em quando, na Copa do Mundo, ou quando há esperança de mudança política, quando recebemos um elogio. Mas o resto do tempo é esse clima de Paris-Texas, o filme do ermo total e da loucura, que Wim Wenders fez para nos assustar. Procuramos a pé pelo deserto o amor que fugiu de nós. Quando o encontramos, ele está corrompido. Somos esse blues que ecoa no mato ralo, no território explorado até o mais fundo poço. Carregamos um fardo no coração pesado. De vez em quando ele se mexe. É quando acordamos, com um grito, no meio da noite.

RETORNO - O Segundo Caderno da Zero Hora (Zero Hora é feminino, é a Zero Hora, porque Hora é feminino, assim como a Folha e a Tribuna) deste sábado sobre Érico Veríssimo está primoroso. Ler é saber. Luiz Antonio Assis Brasil, Sergio Faraco, Regina Zilbermann, Flavio Aguiar, Flavio Loureiro Chavez, Sandra Pasavento: escritores, historiadores, críticos se debruçam sobre nosso escritor maior com grandeza e sabedoria. Totalmente obrigatório. É o Brasil que nos desperta.

28 de abril de 2005

O BRASIL DÁ ADEUS COM ROMÁRIO




O Brasil soberano despediu-se ontem no Pacaembu quando Romário deu a volta olímpica chorando, enquanto o público aplaudia friamente. São Paulo não sintetiza o Brasil, mas o Rio sim. Deveria ter sido no Maracanã, mas esvaziar a verdadeira capital do país faz parte do sucateamento da soberania. O estádio transformou-se num imenso programa de auditório manipulado pela Globo (40 anos de ditadura). Na IstoÉ desta semana, há uma denúncia de Diogo, irmão do diretor do BBB, Boninho, ambos filhos do papa da manipulação das consciências a serviço da entrega do país, o Boni. Diogo entrega que o BBB5 foi uma Operação Fantoche, que Jean já sabia que iria vencer e que fazia parte da oficina dos atores da Globo desde 2002 e que tivera um caso com o diretor Wolf Maia. A Globo precisa de oposição. Sua holding, a Globopar, segundo Ana Paula Padrão no JG, deve 1 bilhão e 300 milhões de reais. A Globo precisa ser libertada de seu autismo, de sua própria armadilha. Os globais pagando mico em frente às câmaras, pulando como escravos para agradar os patrões, é o retrato do Brasil à mercê da ausência de estado, em que a privatização se faz na vida pública, na História, na mídia. É um Deus nos acuda de horrores que precisa acabar.

HINO - Escolher a Guatemala como adversária faz parte da manipulação. Deveria ser a Holanda, onde Romário começou sua carreira no Exterior e que tem uma cisma conosco. No mínimo seria um jogaço. Ou a Espanha, onde ficou tantos anos. Assim mesmo, foi bom escutar o hino da Guatemala, que fala de soberania, de expulsar os inimigos que tentam invadir o país, e de derrubar os tiranos. É um hino absolutamente guerreiro. Escutando o nosso hino, descubro tardiamente que há uma ambigüidade: o poeta Osório fala em teus risonhos lindos campos, e logo depois em nossos bosques. Ou seja, trata o Brasil como algo fora do narrador do poema e depois assume, coletivamente, o mesmo sujeito que estava fora do tratamento. Significa que temos uma relação complicada com o nosso país, que o vemos fora de nós e ao mesmo tempo dentro de nós? Talvez esse seja um sinal do hábito que temos de nos referir aos nascidos no Brasil como gente fora de nós. O brasileiro, disse Lula recentemente na sua desastrada fala sobre os juros. O brasileiro são os outros, o País está aí para ser usufruído por estrangeiros, é por isso que somos japoneses, alemães, italianos, espanhóis, portugueses, chineses, catarinas, gaúchos, paulistas, baianos, nordestinos, mas jamais brasileiros. Os teus bosques têm mais vida?

CONTRATO - O bom foi ver jogadores diferentes na seleção. É um alívio sonhar por noventa minutos que o contrato vigente entre Roberto Carlos e a CBF ficou de lado. O contrato reza que ele ganhará pela quantidade de chutes na barreira, é por isso que ele sempre chuta as faltas e sempre acerta a barreira (e sai com aquela pose de grande jogador). Livrar-nos de Cafu (são inúmeros Cafus, eles se revezam e ficarão no poder mil anos), do Roque Junior, do Emerson, é uma utopia. A seleção deve ter craques revelados nos campeonatos estaduais, na Copa do Brasil e no Brasileirão. Não pode ter cadeira cativa ocupada por estrangeiros que não estão mais acostumados a jogar no calor. Lembra a piada do rastilho. O guri do interior foi finalmente para a capital, depois de muito insistir e lá ficou por um ano. Voltou e desconhecia tudo. O que é isso? dizia, esnobe, apontando o rastilho. Ao pisar sem querer na ferramenta, que veio com tudo na sua cara, gritou: Ô rastilho filho da puta! É a mesma coisa. Só jogam no frio? Parem com isso.

VÔO- Romário despediu-se dos jogos no Exterior, e da seleção, mas não dos gramados. Jamais se aposentará. Ficará para sempre, fazendo gols até não poder mais. Vai ultrapassar Pelé. Jogará até os cem anos. O dia está glorioso, dirá, caquético. Vamos jogar futebol. E lá vai ele com as pernas tortas, diante de uma platéia pasma, ele, o imortal craque do Brasil soberano, o cara que veio de longe nos salvar nas eliminatórias de 93 e nos devolveu a Copa do Mundo (e a auto-estima) no ano seguinte, conforme profetizou. Mas quando Romário tiver cem anos, não existirá mais o Brasil. Ele será a memória do país que se foi e que se despediu uma bela noite, em que o estádio virou um programa de auditório. A soberania foi para baixo do tapete, mas Romário foi lá embaixo e pegou-a com a mão como se pega uma pomba. Voa, meu país querido, disse ele, e o Brasil voou para a eternidade.

27 de abril de 2005

QUANDO MEU PAI MUDOU O DESTINO



Nei Duclós

Ele sabia se vestir. Ou melhor, sabia que seu terno, seu cabelo bem puxado para trás, seu bigode fino, seu sapato de verniz, seu corpo magro e firme tinham aquela postura que agradava às mulheres. Recém saído da Brigada Militar, de onde se retirou depois de sofrer uma injustiça (não foi condecorado por bravura na guerra de 1932, quando prendeu um oficial inimigo), ele abraçou a carreira de inspetor sanitarista, naquela época em que havia investimentos nessa área no Brasil. Lá conheceu a moça magra e também elegante, de passo miúdo e sorriso sedutor, com olhinhos puxados de índia, cabelo preto e pele morena. Vinda de uma família de proprietários de terra que perderam as posses com a morte do pai, ela tinha formação: fora professora primária e além disso passara uma temporada de estudos na capital. Muito religiosa, entrou em acordo antes de casar com aquele moço bonito, ateu, charmoso e um apaixonado pela caça e a pesca. Poderia freqüentar a igreja e encaminhar os filhos para a religião, que ele não colocaria nenhum obstáculo. Ele seguiu à risca seu acordo, mas surpreendeu em outros itens. Decidiu, por exemplo, um belo dia, que não queria mais a carreira pública. Havia muito conflito por pouco dinheiro. Além disso, era uma rotina muito monótona. O que fazer, se já tinham três crianças em casa? Resolveu então juntar os cacarecos, colocar mulher e filhos na casa de um parente e partir para uma longa pescaria.

BRILHO - Lá no meio do mato ele achava a si mesmo, o homem perdido na cidade. Sentia-se aliviado e tornava-se humano, fora da carcaça que precisou inventar para sobreviver. Pertenceu também a uma família órfã de pai. O velho, tenor de circo, daqueles que cantavam árias no final dos espetáculos mambembes das periferias, abandonou mulher com oito filhos e saiu pelo mundo para nunca mais voltar. Seu ímpeto, talvez, fosse fazer o mesmo, mas ele não repetiria o erro. Era um homem de palavra. Mas primeiro deixou-se levar, dias e dias pescando, vivendo do peixe, que ele fritava com a maior tranqüilidade na beira de um arroio farto e generoso, em terras pertencentes a um estancieiro amigo seu. Tivera uma infância pobre e lutou bravamente todos os dias. Com nove anos de idade, de pé no chão, vendia pastel . Um dia levou um relhaço de um carroceiro, que o atingiu por pura maldade. Não teve dúvida: jogou uma pedrada nas costas do agressor. Na escola, fizera tão bem o primeiro ano primário, que passou imediatamente para o terceiro. Espírito livre, caiu no erro de espreguiçar-se, uma vez só, em aula. Levou uma reguada da professora naquela época da palmatória. Levantou-se, pegou seu boné e não voltou mais. Tornou-se um devorador de livros, jornais e revistas. Lia tudo, até classificados. Queria que os filhos fossem longe, fizessem faculdade e doutorado, e tivessem a iniciativa de adiantar-se aos professores. Não poderia, portanto, voltar atrás. Levantou-se na beira do arroio, viu as bóias do seu espinhel, sentou-se no seu banco e decidiu: vou montar um negócio, sair dessa vida precária. Tinham já se passado 15 dias. Voltou sujo, barbudo, mas com um estranho brilho no olhar ardosiado.

NEGÓCIOS - Montou então uma lenheira, depois um armazém, depois uma loja de brinquedos com uma barbearia ao fundo e prosperou. Tonou-se o único rico entre os irmãos. Um deles era pescador, dois aposentados, uma irmã viúva, numa sucessão de pessoas que costumavam passar o verão naquela esquina generosa, onde a todos acolhia com seu charme de anfitrião. Dizia-se feliz, pois um belo dia mudara o destino. Gostava de iniciativas, de pessoas se virando, de sucesso. Mas jamais fez amizade na elite, com algumas exceções, pessoas que o admiravam e aceitavam como era: um homem franco, independente e que às vezes poderia ser confundido com uma pessoa hostil. Era sócio de todos os clubes, os dos ricos e os da classe média. Não freqüentava nenhum. Por um tempo, gostou de jogar. Sentia-se seguro, com sorte. Mas nem sempre teve sorte. Caiu, mas levantou-se. Montou numa garagem na saída da ponte internacional uma pequena casa de casa e pesca que se transformou num comércio de variedades, desde garrafa térmica até cadeira desmontável. Nessa casa estreei minha primeira ocupação profissional.

EXEMPLO - Quinto filho daquele casal, eu vivia no mundo da lua. Nada sabia da história que os dois criavam ao redor de si. Sem enxergar, eu fazia parte daquele enredo. E dali saí para o mundo, equipado com o que tinha de melhor: o rompante do meu pai voluntarioso e livre, a concentração e a verve da minha mãe. Minha literatura tem essa origem: o pai que enfrentava a correnteza, a mãe que abençoava a partida. E a possibilidade, pelo exemplo, de um belo dia mudar o destino.

RETORNO - 1. Imagem desta edição: Rosa e Elo no final dos anos 30, antes da filharada. 2. Recebo mensagens emocionadas e encorajadoras do meu amigo de décadas Clovis Heberle e do meu irmão Luiz Carlos, sobre a crônica A volta na quadra, publicada no domingo passado no Diário Catarinense. E recebo notícias entusiasmadas de Marco Celso Viola, que enfim localizou nosso grande líder das passeatas de 1968, o cara que, em plena ditadura civil-militar, colocou 30 mil pessoas na rua em Porto Alegre confrontando o regime. Trata-se do ético, corajoso e intelectual dialético José Loguércio, meu candidato à presidência da República nas próximas eleições.

26 de abril de 2005

O CARGO PÚBLICO NOBILITA



A ascensão para a nobreza, na América Portuguesa, se fazia pelo exercício do poder público. O caminho não era tanto o cargo, mas o dinheiro a que o cargo tinha acesso. Tomar posse, segundo pesquisador americano, é uma expressão tipicamente brasileira. Vimos ontem como um ex-operário, ex-dirigente sindical, ex-presidente de partido, ex-deputado e agora presidente da República se coloca no papel de nobre ao falar sobre essa figura tão execrada que é o chamado brasileiro. Do alto da sua posição que detém a chave do cofre, o que lhe dá poder para torrar 56 milhões de dólares num avião fabricado no Exterior (quando temos aqui uma fábrica competitiva do mesmo ramo), Lula disse que o brasileiro que toma chopinho na sexta-feira e fala mal dos juros é incapaz de levantar o traseiro para ir buscar juros menores. Trata-se de uma fala que justifica o impeachment, não só pelo absurdo técnico em termos de conteúdo e linguagem (o que prova seu despreparo), como pelo sinal evidente de que o presidente afastou-se de suas obrigações e hoje vive num paraíso proporcionado pelo dinheiro da nação que ele emprega tão mal e porcamente.

BUSANFAN- Lembro de uma palavra ótima muito repetida na fronteira e não sei se está em desuso. Trata-se de tarrasqueta, que pelo que lembro, quer dizer mais ou menos traseiro, ou melhor, o ponto focal do traseiro, segundo rápida pesquisa no Google. Vai tomar na tarrasqueta é um xingamento apropriado para quem trata a população como algo fora de si, como se o imbecil que nos governa não tivesse saído do ventre da nação soberana, aquinhoado que foi pela formação profissional no Senai, uma instituição da era Vargas, e pela carreira no sindicato, outro produto da época getulista que, segundo Brizola, foi garantido pela presença da polícia para existir. Quando Lula chegou no ABC o sindicato estava lá, lembrou um dia Brizola. Pois esse sujeito falou ontem que o brasileiro fica bebendo na sexta-feira falando mal dos juros e no dia seguinte (sábado, portanto) é incapaz e levantar a bunda para ver onde tem juro menor. Na lata, Joelmir Beting provou, no jornal da Band, que isso não existe, não há concorrência de juros no sistema bancário, eles se equivalem em qualquer banco. No mesmo instante em que proferia a besteira (sob o riso alvar dos puxa-sacos), Lula tentou corrigir dizendo que até pelo computador o cara poderia ir atrás de juro menor. Ou seja, nem precisaria levantar o busanfan da cadeira, não é mesmo? já que ninguém fica diante de um computador de pé. Aliás, tenho certeza que Lula jamais ficou diante da tela de um computador. Analfabeto funcional, deve ser incapaz de dar qualquer comando, como fazem milhões desses seres horríveis que são os brasileiros. O desprezo à população que o sustenta numa vida palaciana é motivo suficiente para apeá-lo do poder. Ele precisa voltar à planície e sentir na pele, como seu adversário clone, Collor, o que significa perder a cabeça quando se assume a presidência da República.

SANCHO PANÇA - Não temos mais estadistas, temos gentinha no poder. Juscelino Kubistchek, a quem não canso de criticar, era filho pobre de mãe professora, veio do nada e deslumbrou os franceses com seu francês castiço, impressionou a todos com sua coragem ao empreender a nova capital, teve grandeza ao anistiar os revoltosos que tentaram impedir sua posse. Vargas era advogado e filho de estancieiros e sua obra continua firme apesar do sucateamento sem dó que lhe dedicam os inimigos. Agora temos Collor, Sarney, Itamar, FHC e Lula, que ainda ameaçam virar senadores biônicos, invenção do Geisel e mais uma prova de que continuamos na ditadura. O pior é que tanta brutalidade nos desvia dos temas que realmente interessam e que deveriam ocupar este espaço, que é a poesia, a filosofia, a história, a crônica, a literatura. Passamos em vão por esta vida suprimida por traidores como este Sancho Pança, que nos despreza e que deve imediatamente sair do Palácio que ocupa e deixar vago o cargo para que o Brasil possa recuperar seu destino.

25 de abril de 2005

O ALIMENTO DO ESPÍRITO




Não podemos ser um cemitério de livros, um armário de idéias, um baú de culturas. Precisamos da reflexão, que é o toque do espírito no barro em que nos transformamos. Refletir é o levanta-te e anda do que colocamos embaixo da cama. Ver é pouco, o importante é rever. Ler é insuficiente, o fundamental é reler, repassar na memória o que foi retido e retribuir o pensamento consumido com um novo pensamento, criar por meio da concentração, da conversa, do debate ou do silêncio. É hora de voltar a estudar, descobrir o que pega na teologia, na filosofia, na história, na arqueologia, no cinema, na arte, na literatura, na poesia, no teatro, na televisão, no rádio e na cabeça alheia. Interagir e evitar o momento catatônico em que nos sentimos desabitados, sem merecer o que a vida nos oferece. No deserto, o falcão sabe enxergar a presa que vai lhe salvar. Onde fica a saída? Em você, sala de janelas abertas para o infinito.

CARDÁPIO - No debate com Habermas em 2004 e reproduzido no Mais!, da Folha, deste domingo, Ratzinger fala da razão como instrumento de depuração da fé, que sem esse intercurso pode partir para o fundamentalismo. E a fé como ligação direta com a divindade, o que abre um claro no império da secularização a que estamos condenados. Depois de Marx, a razão ficou muito mais radical e exigente, mas não podemos usar o velho barbudo para justificar nossa pobreza de espírito. Marx é pura transcendência, conseguida arduamente pelo estudo e a reflexão e a lucidez sobre um fenômeno colhido em seu estado primal, o capitalismo velho de guerra. Ignorá-lo e à sua dialética, ou, pior, reduzi-lo à miséria da reflexão e da ação, é um crime contra a inteligência. O império do relativismo de que nos fala Bento XVI não é, imagino, um ataque ao relativismo que a ciência nos proporciona por meio da diversidade de paradigmas, da experiência de povos diferentes, dos enfoques opostos. Tanto é que na sua fala no debate pela Universidade da Baviera, reproduzido em parte na Folha, o cardeal Ratzinger coloca como imposição ética o diálogo com manifestações culturais fora das arcadas da fé e da razão ocidentais. O império do relativismo é outro: é aquele que usa como álibi o alargamento das perspectivas, confundindo com afrouxamento da reflexão. As expressões mais nefastas disso são repetidas a toda hora: normal, diz o marido que precisa gostar da esposa posando nua para uma revista de sacanagens; não tem nenhuma, costumam dizer quando o bicho pega na anti-ética (roubar a namorada do alheio, por exemplo).

EQUADOR - Fantasiaram o ex-presidente equatoriano deposto de militar e o tiraram de lá, junto com a família, rompendo o cerco dos manifestantes que queriam o seu couro. Triste fim do governo Lula, que foi eleito pelo povo para mudar e que acaba sendo mandalhete da Condolleeza Rice. Usa, para seus torpes fins, as Forças Armadas (como faz no Haiti), aumentando assim o acervo de argumentos contra o sistema de eleição popular para presidente. A população está até aqui de políticos corruptos e de governo incompetente. Como pode cada deputado gastar, oficialmente, 90 mil reais por mês? O serviço público deveria ser não remunerado, para espantar as moscas. Os impostos deveriam acabar, com exceção de um por cento sobre qualquer atividade de consumo. Os ministros deveriam ser no máximo seis e não 30 como são atualmente. No primeiro caderno da Folha de domingo, na página três, Marcos Villaça traça um perfil assustador do modo Lula de governar, fundado na preguiça e na inconseqüência. Ministérios imprescindíveis: 1. Indústria e Comércio, 2. Infraestrutura e Transportes, 3. Educação e Cultura, 4. Fazenda, 5. Exterior e 6. Alimentação e Saúde. O resto é papo furado. Ministério de Cidades? Dá um tempo.

24 de abril de 2005

UMA CRÔNICA E SUAS LEITURAS




Neste domingo o Diário Catarinense, no caderno Donna, publica mais uma das minhas crônicas favoritas, transcrita abaixo. Ao vê-la impressa, caiu minha ficha em relação a uma série de leituras sugeridas pelo texto e que fazem parte da estrutura da narrativa ou expressam algo que, a partir das palavras, transcendem o que aparentemente querem dizer. Primeiro, a ligação entre a lógica e a geometria tem um adendo: a solução, que à primeira vista parece ser apenas o ângulo reto, é também o círculo, a volta, a curva ao redor do quadrado. Há também a oposição entre a sanidade e a loucura: os garotos enlouquecidos por uma tarefa nefasta precisam apoiar-se no bom senso para escapar; o homem que dedicou sua vida à rigidez e à retidão dos quartéis e amarga exílio com a mente perturbada adota postura ensandecida contra a travessura. A busca do equilíbrio, colocada como o encontro com as curvas de uma outra cidade, tem a ver com a nossa fuga de um país desvirtuado pela ditadura da lógica reacionária. E é preciso avisar aos conterrâneos que a lógica do quadrado em Uruguaiana vai até a beira do rio, porque lá quem manda é a curva, apesar da flecha que é aquela maravilhosa ponte. Há ainda uma imprecisão histórica: o Morocho que está citado não era violinista, mas tocador de violão. Ou melhor, de banjolão, instrumento misto entre o banjo e o violão que ele próprio inventou. Mas essa já é outra história. Vamos à crônica, que é o resultado de um trabalho feito a partir de outra, que os leitores do DF já conhecem. Ao invés de ser um episódio qualquer da memória, é o resgate psicanalítico de várias ameaças, entre elas a a castração, que acabou se materializando na esfera política anos mais tarde, e a insuportável convivência com os vizinhos, que deixou de ser apenas uma relação de conflitos episódicos para transformar-se num ambiente de franca hostilidade. Não resisto a mais uma observação: o menino vocacionado para a engenharia, que a partir do quadrado encontrou a saída pela volta, a curvatura, foi pioneiro na busca de um lugar que tivesse outra base de apoio, que abrisse caminho em meio à fúria corretiva da lógica desconstruída pela obsessão.

A VOLTA NA QUADRA

Nei Duclós

Quarteirões em quadrados perfeitos, ruas e calçadas largas: a engenharia militar da República do Piratini engendrou a lógica na geografia urbana da minha cidade. Foi essa lógica que me salvou numa tarde sinistra, quando eu e meu irmão Luiz Carlos enfrentamos a fúria de um morador da nossa rua, aposentado compulsoriamente devido aos nervos, e que repousava em casa saído de uma corporação das Forças Armadas, acredito que tenha sido a Marinha. Nós dois não devíamos ultrapassar os cinco anos de idade. Até hoje esse acontecimento mostra-se nítido em minha memória, já que foi minha primeira experiência com o horror.

Morávamos na esquina generosa de uma grande casa. Fomos até o meio da quadra para visitar dois moleques impossíveis, famosos por suas artimanhas e possuídos pelas mais loucas idéias predatórias. Talvez nossa visita tivesse sido incentivada por alguém que ficara encarregado de cuidar de nós (o que era sempre um transtorno) e estava com outros planos. Fomos sós até os garotos e lá ficamos a tarde toda. A ocupação não era bem uma brincadeira. Os anfitriões, tão minúsculos quanto nós, nos convenceram que as grandes pedras do quintal, as quais conseguíamos levantar só em duplas, deveriam ir direto para ao pátio do vizinho, o perturbado militar aposentado. O muro que separava as casas era alto e exigia um esforço tremendo dos pirralhos, completamente motivados com aquilo que parecia uma travessura, mas que nos foi sugerido quase como uma obrigação. Do lado de lá, havia alarido de grande passarinhada, pois esse era o hobby do senhor imerso no seu recolhimento doentio, já que jamais ficava sossegado, estava sempre fazendo algo, vestindo calções com camiseta branca regata, dessas que se usam em quartéis.

Não éramos flor que se cheire. Não poderíamos recuar. Ficamos nessa faina por horas a fio. Quando já estava escurando (verbo que meu medo ágrafo inventou naquela época) ouvimos a voz da vítima, visivelmente contrariado com nosso abnegado trabalho. O cara era forte e postou-se na calçada com um grande facão a tiracolo, ameaçando arrancar com sua espada de São Jorge nossos trêmulos passarinhos que guardávamos em calções precários. Ele falava à meia voz, para ouvirmos, e para que ninguém mais ouvisse, pois poderia chamar a atenção pela barbaridade que cometia logo contra nós, pirralhos absolutos de cabelo raspado e olhar arregalado de um medo que jamais senti mais intenso. Em meio ao susto e ao espanto, ficamos a confabular. Foi quando Luiz Carlos, futuro engenheiro e empresário precoce (organizava todas as quermesses inventadas para arranjarmos dinheiro) teve a mais brilhante das idéias:
- Vamos dar a volta na quadra! - disse ele, e isso me encheu de pavor.

Dar a volta na quadra, coisa que nunca fizéramos antes, era a aventura mais louca que se poderia imaginar. Para mim, mas não para a lógica certeira do meu irmão, que baseava-se no princípio universal do quadrado. Ele sabia que se fôssemos em direção oposta à nossa casa, dobrando todas as esquinas, daríamos nela inapelavelmente. Para Luiz Carlos, isso era de uma transparência absoluta, tudo fazia sentido. Fugiríamos do algoz que obstava nosso passo em direção ao refúgio familiar, pois ele ficava exatamente no caminho, de plantão na calçada, andando de um lado para o outro, certo de que em algum momento (antes do pôr-do-sol!) teríamos de passar por ele.

Luiz Carlos preparou meu espírito, pois eu nunca acreditei em lógicas matemáticas nem em geometrias. Ele tinha tudo isso no DNA e na vocação e por isso tomou a dianteira. Segui meu irmão de língua de fora, segurando o choro, pois não poderia explodir antes que o plano desse certo. O algoz não foi atrás de nós e se foi, desistiu, pois, pirralhos inclementes, éramos azougues na corrida e chegamos fácil até o primeiro round, a mansão da Generina, milionária excêntrica e de mão fechada. A próxima esquina estava, para nosso tamanho de pulgas, quilômetros à frente. Nessa altura o bairro perdia seu status de classe média-média e descia um degrau da escala social. Tudo era desconhecido. Estranhos passavam indiferentes. Mas avançamos decididos até a terceira dobra, quando desembocaríamos na rua de pedra, o último round. Sorte que aquela quadra era mais conhecida. No fim dela, onde nos encontrávamos, morava o Morocho, exímio violinista e seus dois filhos, amigos nossos. Depois, o temível Walfrido, o perigoso Rato. Em frente ao Rato havia a pacata Dona Noêmia, com chão batido na frente, onde morava a família dos Da Nova, exímios sambistas da escola supercampeã Os Rouxinóis. Quando passamos zunindo pelos Da Nova, palmilhamos o milagre: já era a nossa calçada! O ângulo reto foi a solução encontrada pelo irmão iluminista, enquanto o emocionado barroco destruidor de aves engaioladas amargou o maior susto da sua vida.

Ter nascido em Uruguaiana, RS, numa cidade fundada na régua T, foi um estímulo para buscar o equilíbrio na diferença. Descobri as curvas de Florianópolis em 1971, e no ano seguinte vim morar pela primeira vez aqui, mais precisamente em Itaguaçu, ao lado da casa de Luiz Henrique Rosa, onde ele ensaiava o som da sua banda. Esse foi o vizinho que o destino escolheu para me recuperar, naquela época braba, do medo que sentíamos em cada esquina do país brutalizado. Luiz Carlos, formado engenheiro, chegou aqui antes. Foi ele que me apresentou a cidade.

23 de abril de 2005

O ABISMO ENCONTRA UM ROSTO




Um recado importante do novo Papa (que apareceu vestido de nazista em fotopotocas da execrável imprensa inglesa) é sobre a infantilidade da fé, fonte de inúmeras seitas. O estudo teológico, o debate aprofundado e conseqüente sobre a fé, deverá ocupar lugar de destaque nesta fase de Bento XVI. Numa recente polêmica, deixei claro que ser católico não significa pagar mico para o conservadorismo, para a babaquice, para a inocência útil e outras bobagens. Sempre é bom lembrar que os historiadores que sepultaram a idéia da Idade Média como sendo Idade das Trevas colocaram a escolástica, a concentração intelectual dos monges, na raiz do Renascimento. O exemplo mais gritante, que perdura até hoje, é a estruturação dos livros, em capítulos precedidos de uma apresentação, uma metodologia que deu grande impulso ao pensamento humano. Cada um de nós é fruto da fé, já que somos criaturas misteriosas que acreditamos piamente ser este o nosso nome, ser esta a nossa origem e ser esta a nossa cultura. Somos no fundo animações biológicas que se formataram em seres culturais. Somos o abismo que encontraram um rosto.

AMIGOS - A foto em destaque neste sábado, na página C3 do Caderno Cotidiano, da Folha de S. Paulo, traz a mão adulta de uma mulher sendo agarrada pela mão da setemesinha Dandara, filha que nasceu depois que a mãe foi assassinada. A tragédia está estampada nos jornais e aconteceu na minha terra, Uruguaiana. A imagem, belíssima, é do meu amigo Anderson Petroceli, um dos maiores fotógrafos do país, um apaixonado pela própria cidade onde nasceu e cresceu e onde vive com a esposa e cria o filho. As fotos que Anderson faz de toda a região da fronteira são absolutamente antológicas. Sobre várias delas fiz poemas exclusivos, que um dia serão publicados em forma de livro. A meu pedido, ele fotografou o interior da Catedral de Santana, levou-me para visitar a velha estação ferroviária da cidade, foi o primeiro a me reconduzir à rua da minha infância. Uma pessoa especial, que merece ser reconhecido como um dos grandes do Brasil. Não por acaso, Anderson Petroceli figurou na minha lista dos melhores de 2004.Outro destaque da lista foi Miguel Ramos, que tornou-se o mais popular ator do festival de Recife, que encerrou-se dia 19 de abril, tenho recebido o prêmio de melhor ator coadjuvante. Sempre tive fé em Anderson e Miguel. Era só uma questão de tempo. Outro amigo que entra em ebulição e está a mil é Marco Celso Viola, mas este ainda vai dar muito o que falar. Quando explodir, lembrem-se aqui do Diário da Fonte, o jornal do Brasil soberano.

REVIRAVOLTA - Tenho ocupado mensalmente um espaço de crônicas no Diário Catarinense. Este domingo é dia de texto meu, ilustrada por este magnífico artista que é o Samuel Casal. A crônica é a ampla janela onde nosso texto se debruça para o infinito. Gosto quando acerto o tom de uma crônica clássica, com personagens bem definidos, situações claras e encadeadas, com uma riqueza de cruzamentos de leitura que levam a inúmeras paisagens. O espaço generoso que me concede o DC está sendo, segundo soube, bem recebido pela comunidade literária local. E recebo carta de leitores que se entusiasmam com os temas enfocados e dão sua contribuição. Meu objetivo, claro, é ter um espaço diário na mídia impressa, a exemplo do que tenho aqui no blog Outubro. Há três anos escrevo praticamente todos os dias aqui. Já escrevi uma montanha de livros neste espaço. Um dia sai a coleção completa. Enquanto isso, vejo fotos ensaiadas mostrando escritores sentados de maneira cool em suas enormes e amplas bibliotecas, sendo badalados pelos amigos editores em jornais de grande circulação. Está na hora de virar o jogo. Está na hora de acabar com a ditadura. Está na hora do talento oculto escancarar as portas da mídia oficial. É o que já está acontecendo.

PERDÃO - A Igreja precisa ser perdoada pela Inquisição, já que pediu perdão pelos crimes que cometeu. Quando Ratzinger assumiu a Congregação da Fé, exerceu o cargo, zelou pela doutrina. Agora o cargo é outro. Você, gerente, você, chefe de equipe, você trabalhador da Abril ou do Estadão, quando trabalha, exerce funções e cargos à altura da sua investidura. É o que acontece em qualquer atividade humana. Todos estão na contingência dos seus espaços. Se a Igreja liberar o aborto, Ratzinger deixará de ser nazista? É preciso ter fé, esperança e caridade. E cerveja ao cair da tarde.

PECADOS NA LINHA DO EQUADOR





Nada sei sobre a crise em Quito, por isso lanço mão de dois textos, nesta edição matinal provisória de sábado do Diário da Fonte. Um é das agências internacionais sobre o sufoco do embaixador brasileiro por lá, já que representamos a desastrada política externa pró- Conselho de Segurança da ONU do presidente Lula. O outro é um artigo que foi publicado pela Folha, coisa que nunca faço, mas desta vez vale a pena.

QUITO (das agências internacionais) - Centenas de manifestantes cercaram e desferiram golpes contra o carro do embaixador brasileiro no Equador, Sérgio Florencio Sobrinho, quando ele tentava deixar a embaixada, onde está refugiado o presidente deposto do país, Lucio Gutiérrez. Segundo informações das agências internacionais, o embaixador se mostrou muito assustado, mas não houve danos pessoais. O automóvel foi cercado, assim que ultrapassou o portão da embaixada, por numerosas pessoas que golpearam a carroceria e os vidros. Diante da fúria da multidão, Florencio, acompanhado de outro funcionário diplomático, desistiu de seguir adiante e ordenou ao motorista que retornasse. A agressão aconteceu apesar de uma dezena de policiais ter rodeado o carro tentando conter os manifestantes, que faziam gestos obscenos e xingavam o embaixador e o presidente Lula pelo fato de o Brasil ter dado asilo a Gutiérrez.

ARTIGO - O EQUADOR E A CRISE SEM FIM
Luiz Alberto Moniz Bandeira (*)

Em 1961, o embaixador do Brasil em Quito, José Jobim, percebeu que existiam no Equador condições propícias para a eclosão de uma revolução, como ocorrera na Bolívia (1952) e em Cuba (1959). A massa do povo equatoriano, composta de índios, cujo status social era o de pária, vivia em "níveis de pauperismo aterradores" e, sem qualquer perspectiva de progresso, não encontraria saída para sua miséria "fora da subversão social", uma vez que a elite demonstrava "impermeabilidade" para compreender que uma situação como aquela não mais podia manter-se. Com efeito, um amplo movimento popular irrompeu, provocando a queda do José Maria Velasco Ibarra, que resistia às pressões dos EUA para romper as relações diplomáticas com Cuba.
A evolução dos acontecimentos no Equador assemelhou-se, de certo modo, ao que ocorrera no Brasil, dois meses antes, agosto de 1961, com a renúncia de Jânio Quadros. A fim de forçar o Equador a romper relações com Cuba, a CIA fomentara a agitação, para desestabilizar o governo de Velasco Ibarra, embora o governo pudesse cair nas mãos do vice-presidente Carlos Arosemena, cujas ligações com a esquerda o tornavam tão indesejável para os EUA quanto João Goulart no Brasil.
Com efeito, foi o que aconteceu. Velasco Ibarra caiu e quando o Congresso confrontou-se com os chefes militares, que queriam impedir que Arosemena assumisse o governo, as forças de esquerda mobilizaram-se e ganharam as ruas em defesa da legalidade. As Forças Armadas cindiram-se. E o resultado não foi o que a CIA e o Pentágono desejavam. Arosemena foi empossado na Presidência.
O encarregado de negócios do Brasil, Lindolfo Leopoldo Collor, em informe ao Itamaraty, comentou que era "flagrante a dívida contraída" pelo governo de Arosemena "com a conspiração castrista e a rebelião esquerdista, que ajudaram a levá-lo ao poder, a preço de sangue". E acrescentou que ele herdara "uma estrutura feudal, um país de riqueza agropecuária presa das flutuações dos preços internacionais, uma sociedade cheia de preconceitos contra a maioria da população de origem indígena, um sistema de trabalho semi-escravo, uma história responsável pela psicologia amargurada e descrente do povo", tornando o Equador um "exemplo de processo econômico e social", que parecia "feito sob receita para ilustrar uma ocasional perfeição de análise marxista".
Arosemena também recalcitrou, para não romper relações com Cuba, e foi deposto pelas Forças Armadas, em 1963. Uma Junta Militar governou o Equador, sem conseguir estabilizar a situação, até 1968, ano em que Velasco Ibarra outra vez se elegeu e conseguiu completar o mandato em 1972. A situação econômica e social do Equador, porém, não mudou muito, desde então. Pelo contrário, agravou-se. O Equador tornou-se mais e mais dependente dos EUA.
Abdala Bucaram, político de Guayaquil, foi eleito presidente pelo Partido Roldosista Ecuatoriano (PRE), em 1996, prometendo reformas econômicas e sociais para romper o poder da oligarquia. Líder populista, personalidade excêntrica, vangloriava-se de ser chamado "El Loco", provocou, no entanto, enorme descontentamento e desencadeou uma onda de protestos, após seis meses de governo, ao anunciar em 1º de dezembro de 1996 o aumento dos preços da água, do gás, da luz e dos telefones. O Congresso, cerca de dois meses depois, aprovou sua destituição por "incapacidade mental", e seu presidente, Fabian Alarcón Rivera, assumiu interinamente o governo. Jamil Mahuad, do Partido da Democracia Popular, e Gustavo Noboa, do Partido Social Cristão, foram eleitos pelo Congresso, em 1998.
Mahuad também não governou muito tempo. Assessorado por economistas argentinos, tratou de dolarizar a economia. Teve então de decretar estado de emergência e mobilizar o Exército a fim de reprimir as intensas manifestações da oposição, apoiadas pelos sindicatos e pela Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador. O Banco Central do Equador aprovou o plano de dolarização em 10 de janeiro 2000, e Mahuad, no dia 15, apresentou-se ao Congresso para defender as leis necessárias à sua implementação. O estado de emergência, contudo, não pôde conter a insurreição dos indígenas (4,2 milhões em uma população de 12 milhões), à qual aderiram os sindicatos e partidos políticos, que exigiam a renúncia de Mahuad, dos deputados e do Judiciário. E, em 21 de janeiro, um grupo de coronéis, liderados por Lucio Gutiérrez, levantou o Exército, em apoio às comunidades indígenas. Mahuad, ao perceber que não mais tinha condições, refugiou-se em uma base militar, embora declarasse que não renunciaria. Os indígenas e os militares ocuparam os edifícios públicos, as sede dos três Poderes em Quito, e Antonio Vargas, líder indígena, proclamou a dissolução do Congresso, bem como da Suprema Corte, anunciou a remoção de Mahuad da Presidência, a formação de um "parlamento popular", e instituiu uma Junta de Salvação Nacional, com a participação de Gutiérrez.
O Conselho Permanente da OEA logo se reuniu para a aplicar sanções previstas pela na cláusula democrática, e os EUA ameaçaram cessar toda a assistência econômica e militar, caso um regime inconstitucional fosse instalado no Equador. A Junta de Salvação Nacional não pôde resistir. Os EUA, o maior parceiro comercial do Equador, absorviam cerca de 39% de suas exportações e forneciam pelo menos um terço de suas importações.
Em tais circunstâncias, os militares sublevados recuaram. A pressão dos EUA compeliu a Junta de Salvação Nacional a dissolver-se e, após intensas negociações entre indígenas, militares e líderes políticos, com a participação dos americanos, o Congresso, em 22 de janeiro, reuniu-se em Guayaquil e reconheceu o vice-presidente Gustavo Noboa como sucessor de Mahuad.
Mais de 30.000 indígenas, que entraram em Quito para reclamar a destituição de Mahuad, voltaram aos seus povoados, nas montanhas, com as mãos vazias. Perderam na mesa das negociações o que haviam ganho nas ruas. Noboa confirmou o projeto de privatizações e efetivou a dolarização da economia, em março de 2000. E o Equador, com a economia dolarizada e o aeroporto de Manta elevado à condição de importante base militar, tornou-se o centro das operações militares dos Estados Unidos na Amazônia. Porém, como o general Charles E. Wilhelm, comandante-em-chefe do Southern Command dos EUA, reconhecera no Senado americano, no Equador como em outras nações situadas na sua área de responsabilidade, a América do Sul, "a democracia e as reformas de livre mercado não trouxeram resultados tangíveis para o povo".
A eleição do coronel Lúcio Gutiérrez para a Presidência havia acendido a esperança de que ele realizasse um governo como Chávez na Venezuela. Ele, porém, acomodou-se. Manteve a mesma política de seus antecessores, e caiu. Haverá outros capítulos.

(*) O cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira é professor emérito da Universidade de Brasília e autor dos livros "As Relações Perigosas: Brasil-Estados Unidos de Collor a Lula, 1990-2004", "Brasil, Argentina e Estados Unidos" e "De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina".

22 de abril de 2005

EVOLUCIONISMO, DO DOGMA À IDIOTIA


A rica linhagem científica do evolucionismo, filho dileto do Iluminismo, caiu na vala comum da imbecilidade geral, ampla e irrestrita, graças ao tom dogmático que adquiriu na universidade e na mídia. No imaginário geral, há uma certeza granítica de que cada um de nós é uma pessoa evoluída, e portanto sofisticada, justa, progressista e culta (o resto, claro, não passa de uns idiotas) . Isso deságua na grande modorra dos falsos bons sentimentos que nos assola por meio do pensamento dito politicamente correto (já que sou o máximo, vou civilizar os boçais), contra o qual alguns se insurgem. Um deles é o mestre Moacir Japiassu, que deu seu recado numa revista virtual, num texto que merece um tira-gosto aqui. Outra conseqüência da praga é achar que no passado tudo era uma grande porcaria e que as coisas evoluíram até a beleza onde nos encontramos (esse equívoco tem seu reverso: no passado reside todas as virtudes, o que nos enreda em mais uma mitologia). Cada momento é único e específico e as épocas, mesmo podendo ser comparadas, são incomensuráveis entre si. Para ilustrar essa evidência, coloco um texto de memórias do meu co-autor do Universo Baldio, meu irmão Elo Ortiz Duclós, que comigo está concorrendo ao Prêmio Jabuti deste ano. As memórias do Elo, que inauguram sua caprichada home-page, têm aquela brisa do acontecido agora e já fazem parte da literatura brasileira (no meu romance, tudo o que está itálico é de autoria do Elo, apresentado como "irmão mais velho do Luís" pelo narrador no miolo do livro). Vamos então aos dois textos, de duas pessoas que pertencem à mesma gloriosa geração e que merecem ser lidos pelo talento e a coragem com que dizem o que pensam e sentem.

ULISSES VILLAR - MAJOR - PCB
Elo Duclós
(http://eloduclos.multiply.com/)

Gosto da bravata da última carga de cavalaria a lança, tropa contra tropa, no comando de um lado estava um dândi, Oswaldo Aranha e o comandante geral, em 1923, Flores da Cunha. Iam à frente com lanças apontadas para as tropas do Onório Lemes tropeiro transformado em General revoltoso e guerrilheiro. Herói dos pampas. "Luto por leis que comandem homens e não por homens que comandem leis..."

A cidade não é a mesma, mas vi o Gregório amparando o Getúlio, amparando não, protegendo, se colocava por trás do baixinho, com os braços abertos, em cima de um Ford preto, de capota aberta, passou em frente de casa na Santana. Getúlio de Trajo, gravata, chapéu panamá eu acho e acenando para a multidão. sim meu irmão, multidão naquele deserto. Não dava para chegar na calçada. Vi o cara da janela de casa, que até a calçada tinha uns 4 metros de "jardim".

Vi o Dutra e o Perón e a Evita, inaugurando a ponte, e a praça Argentina. Sabe onde é?
Vi gente ser baleada no centro da cidade. Ouvi as histórias do Tano Rosa, bandido, negão que matou uma família inteira numa estância, a mando, nunca disse de quem. Matou até o papagaio, para não falar. Vi o Coronel Foldoardo Silva, chegar de trem, Deputado, e a sua peonada dando tiro pra cima, pra festejar a chegada de seu chefe. Daí uma historinha da mãe. Dizia que o Flodoardo mandava um telegrama de Porto Alegre, quando voltava a Uruguaiana: Tal dia aí, na estação, façam festa, despesa por minha conta.

Fui na estação com o Pai e a Mãe, recepcionar o Ulisses Villar, devia ser 1948 ou 49 quando chegou de Porto Alegre, quando soltaram os presos comunistas. Era uma temeridade ter ido. Ele era o líder do Partido Comunista em Uruguaiana, Estava jurado de morte. Foi major dos provisórios que avançaram em 1930 e 1932. Mas nosso Pai e Mãe eram amigos, e estavam lá e me levou. Uma grande emoção tomou conta da estação quando a brigada correu para dar guarda ao Ulisses, pensavam que iriam matar ali.

Eles foram amigos de pescaria muitos e muitos anos. Esse cara merecia uma biografia. Gaúcho, de gaúcho mesmo. Comunista, teórico. Um gozador, um sério, um amigaço de pescaria, um dos poucos que dava atenção ao pirralho que ousava ir junto. muito me ensinou de atirar as linhadas, e não enroscar.

Estávamos no Arroio Garupá, perto do Cerro do Jarau, a noite, e o pai levava o Zenith a pilha ou bateria, não sei. E vi o sorriso disfarçado, o brilho no olhar iluminado pela fogueira pouca, depois da janta, os dois gozaram, foi um orgasmo mal disfarçado: Ouvimos que a Rússia tinha lançado o Sputnik. Gol pra eles. Foi uma comemoração silenciosa e cúmplice. Estavam vingados.

ESTUPIDAMENTE CORRETOS
Moacir Japiassu
http://argumento.bigblogger.com.br/

É impossível sabermos hoje quem ou o que inaugurou este circo de horrores. Não importa, todavia, porque a idéia original foi rebordada inúmeras vezes e, na multiplicação do monstruoso festival de besteiras, recebeu os vidrilhos, paetês e miçangas de uma verdadeira plêiade de cretinos espalhada pelo mundo afora. O comportamento estupidamente correto é, na verdade, uma tentativa de desumanizar as pessoas, porque o considerado e bem informado leitor há de concordar com o articulista: existem características mais humanas do que a violência, a falta de respeito, a sacanagem, a traição, a mentira, o crime em todas as suas formas, o racismo deslavado, o preconceito mais arraigado? Pois querem nos "purificar" à força, por intermédio do patrulhamento de que a classe média é useira e vezeira, além de medidas antidemocráticas promovidas por um governo caolho.

Tudo é preconceito neste miserável país que também acredita na "inclusão social" mediante cotas para as "minorias". Não se pode mais rir, nem mesmo de si próprio. Eliminamos de nossa paisagem as mulheres feias, das quais não se pode mais falar; as gordas viraram "fofinhas"; não existem débeis mentais, nem mesmo os que nos governam, porque estes, ao lado de cegos e aleijados, são agora "portadores de necessidades especiais".

Ao mesmo tempo, ninguém dá a mínima para os velhos que também são gordos, carecas e baixinhos. Esta é a dolorosa porém real descrição do articulista, que pretende iniciar um movimento de desagravo à desprezada "categoria"; afinal, não existe, em nenhum anúncio de televisão, aquela jovem e maravilhosa mulher que nos seduz para uma noitada regada à bebida da moda e mais as fantasias sexuais deixadas en passant. Isso é preconceito ou não é? Cadê a cota televisiva para nós da geração Viagra?!?!?!

21 de abril de 2005

O NECESSÁRIO EXERCÍCIO DA DIALÉTICA




Volto ao tema da dialética, aproveitando o fato de que as provocações do Diário da Fonte estão dando resultado. Dialética, a filosofia do conflito, é como aquela tela do hospital: enquanto houver vida, o pingo de luz pula, quando nada mais há para fazer, o traço se impõe. A morte do pensamento é acomodar-se. Todos viraram modernos e progressistas. Arre, não existe ninguém mais que pense diferente? Não se trata de dividir as pessoas entre conservadores e progressistas, como faz a mídia, tão vendida e tão metida a vanguardista. A diferença principal está entre os que se acomodam a idéias fixas (principalmente as tidas como muito modernas) e as que não se submetem a uma camisa de força filosófica. Ainda há a velha briga entre a metafísica e a dialética. Depois do modernismo veio o pós-modernismo, depois do pós-pós modernismo virá o quê? Como ficou chato ser moderno, disse Drummond de Andrade. Como ficou chato manter a velha metafísica travestida de roupa futurista, quis dizer o poeta. É preciso arriscar, jogar-se no abismo das possibilidades.

PRÊMIO - Inovoco o exemplo de Miguel Ramos, atual secretário de Cultura de Uruguaiana e meu amigo desde a infância, que foi descrito aqui no DF, mais de uma vez, como o maior ator do Brasil (junto com Othon Bastos). O próprio Miguel me dizia: menos, Nei, menos. Pois no dia 19 de abril ele ganhou o prêmio de melhor ator coadjuvante em Recife e foi eleito o ator mais popular do festival. Agora pode? É preciso dizer com todas as letras o que vai no teu espírito. Não tema ser rotulado disso ou daquilo. Voe. Pergunte: o que existe em comum entre Marx e Bento XVI? Nenhum dos dois é marxista. Marx odiava os marxistas, tanto que foi inventado o termo marxiano para definir os pensadores que não se alinham com a ortodoxia marxista. Qual o perigo do relativismo? Tudo vira relativo, acabou a dialética. Por que o aborto não pode ser considerado crime? É proibido? Encapsular o bicho com borracha também é algo definitivo? Claro que não. Só uma coisa é certa: o padre Marcelo Rossi tem que parar com os showmissas. Também precisa parar (acho até que já parou) de usar a concentração existente no mercado fonográfico e ficar lançando fogos de palha, sucessos religiosos duvidosos, inundando a paciência com seus cds. E de aparecer na Xuxa e outros programas de auditório com sua coreografia. Os verdadeiros artistas precisam ter vez na TV. Espero que tenha acabado a fase de reservar papéis coadjuvantes a Miguel Ramos. Papel principal para ele, em filme e em novela. Sorte nossa que ele se destacou em Cerro do Jarau, do excelente Beto Souza (que dividiu com Tabajara Ruas o roteiro deste filme e a direção do clássico Netto perde sua alma, filme que traz, por cinco minutos, a performance genial do nosso ator maior, fruto da fronteira, mas talento universal).

GUERRA - Ida Duclós me informa que Ratzinger foi o responsável pelo evento de reconciliação dos 60 anos da invasão da Normandia em 2004. Ou seja, confirma o que foi escrito ontem aqui, de que Bento XVI poderá ser fundamental para encerrar o ciclo de ressentimento e ódio provocado pela Segunda Guerra. O Brasil é um caso típico de conflagração sem nunca haver perdão. Duvidam? O desconhecimento das guerras internas, das unidades federativas que se enfrentaram em campo minado e na base do tiroteio, é a gigantesca pedra que tenta enterrar as diferenças. Mas a ferida está lá, jamais fechada. O Diário Catarinense colocou na manchete de que Alemão é o novo papa. O recado é explícito: os gaúchos queriam que o Papa fosse gaúcho, mas o Papa é catarina, ou seja, alemão, tem até parentes em Criciúma. Jamais houve um evento de reconciliação entre gaúchos e paulistas devido à guerra de 1932. Tudo isso parece bobagem, delírio de quem leu demais sobre as revoluções brasileiras, mas vejo o espírito de União (federal) completamente dominado pela divisão interna, federativa. O que impera são as bandeiras estaduais. A comunidade desperta paixão, o país continental leva ao bocejo. É preciso resgatar a memória, entender os processos, tocar na ferida, agir dialeticamente, na base da convivência democrática.

BENEDITOS - Não confundir São Benedito ou São Bento, do século VI, fundador da ordem dos beneditinos e um dos evangelizadores da Europa (que, sob o domínio árabe, precisava de resistência e união) com o São Benedito, negro, mouro, do século XVI, protetor dos negros. E devemos lembrar (como fez o Diário Catarinense) que Bento XV foi o Papa da Primeira Guerra, tendo em vão tentado entrar no esforço de pacificação. Na hora do armistício, deixaram o Papa Bento XV de lado. Fizeram um acordo cheio de ódio, os célebres Tratados de Versalhes. Se tivessem escutado aquele Bento, não teríamos o nazismo.

RETORNO - Desculpe, Tailor Diniz, não quis ofender Astor Piazzola, mas que o cara é um chato, é, apesar da magnífica Balada para um loco. Pode não ter nada a ver com a repressão da época da ditadura, mas houve uma coincidência aí. Não, Regina Agrella, jamais assistirei a uma missa do Padre Marcelo Rossi. Não tenho resistência cardiovascular para esse esforço dantesco. Sou do tempo da missa em latim com o padre de costas. Fui salvo pela revolução dialética de João 23. Preciso de avanço, preciso de repouso: o pingo de luz pula na tela e volta ao normal. Como digo no poema-bandeira Outubro, escrito em 1969: Posso voltar ao ponto de partida, mas luto.

20 de abril de 2005

DOIS PAPAS E UMA GUERRA




Há 60 anos vivemos sob a influência e o estigma da Segunda Guerra. A hegemonia americana, o fruto mais evidente e perene do conflito, mais a vingança contra o nazismo, o mais longo tribunal da História, resultam, entre mil eventos, na invasão e assassinato em massa no Iraque. O terrorismo árabe veio da geopolítica (definida no pós guerra) mal resolvida do Oriente Médio, em que se erradicou uma nação, a Palestina (que só agora volta precariamente à tona) em nome de uma revanche que parece não ter fim. Karol Woytila e Joseph Ratzinger estiveram, por contingência, em lados opostos e foram suas vítimas. A partir do seu sofrimento, da exclusão que sofreu e da experiência dolorosa na Polônia invadida, Woytila, como João Paulo II, levou o perdão aos confins da terra. A partir do seu engajamento compulsório nas hostes hitleristas, da sua experiência como prisioneiro do lado dos vilões, Bento XVI pode ser o sinal de que a Segunda Guerra enfim poderá encerrar seu ciclo de ressentimentos. Crer nisso não significa ser crédulo, mas sim colocar a fé no território sagrado do Espírito Santo. O que parece ser um retrocesso ao conservadorismo da Igreja, poderá ser um avanço para que se encerrem de uma vez as justificativas para a mortandade sem fim.

ÓDIO - Nunca é demais lembrar que o nazismo não é resultado da maldade intrínseca dos alemães, povo admirável em todos os sentidos. Mas sim do espírito revanchista dos aliados, que impuseram a humilhação dos tratados de Versalhes, insumo para a fogueira acendida por Hitler. A exclusão da Alemanha no jogo das potências resultou no conflito. Não perdoaram a Alemanha por ter entrado na Primeira Guerra e por isso levaram o troco. Como também não perdoam o nazismo, o neonazismo volta com tudo, pois ele é alimentado pela revanche sem limites. Ontem, vi uma cerimônia em que se homenageava um diplomata brasileiro do tempo do Estado Novo (ué, Getúlio não era anti-semita, como repetem alguns scholars?) que tinha salvo vários judeus, enviando-os para o Brasil e retirando-os da conflagração. Os parentes idosos do herói receberam a comenda. Não podemos esquecer, disse o responsável pela cerimônia. Vejo também que estão construindo gigantesco mausoléu sobre o Holocausto. Há também as dependências intactas de Auschwitz, troço que já deveria ter sido derrubado há tempos. Tudo isso alimenta o ódio. Os alemães jamais serão perdoados? Já que não tem saída, qual o resultado? Mais ódio. Como diz a tradução do aramaico do Pai Nosso: Desfaz os laços dos erros que nos prendem, assim como nós soltamos as amarras com que aprisionamos a culpa dos nossos irmãos.

BÊNÇÃO - Um papa alemão poderá ser a solução: exorcizar os maus espíritos herdados do morticínio, dar por encerrado o longo processo de vingança e finalmente apostar na paz entre os povos. Ter seis milhões de irmãos eliminados covardemente, por mais doloroso que seja, não justifica a presença militarista e ostensiva de um estado belicoso na Terra Santa. Paz com Bento XVI, que veio para jogar água benta na ferida que não cicatriza. Paz para a continuidade da obra de João Paulo II, que fez seu sucessor. E paz nas missas: acabar com os shows do padre Marcelo Rossi e os exageros carismáticos será uma bênção para católicos como eu que não agüentam tanta falta de sobriedade no ritual. Estive numa missa em que o padre fazia os idosos pagarem o maior mico apresentado-se na frente do altar com suas cabecinhas brancas. Como sou da área, fui me retirando. Era o que me faltava, assumir o papel de Terceira Idade num ritual religioso. Dêem um tempo!

MAU GOSTO - O desafio é lutar pela paz apostando na tradição doutrinária, é manter equilíbrio no trato com as teologias emergentes, é não escorregar em momentos políticos importantes, em que é preciso tomar decisões (como a acertada condenação de João Paulo II em relação ao Iraque). O que tem me irritado é a mesmice conceitual da mídia, que fica falando sem parar em Papa da transição, como se a História evoluísse racionalmente de uma coisa para outra. Thomas Kuhn já provou a irracionalidade que existe nas mudanças de paradigmas das revoluções científicas, imagina no resto da História humana. Não existe nada em transição. Todo o tempo é completo em sua redoma específica. O que falta nas redações são bibliotecas, com bibliotecária responsável cobrando leituras e criação de papers. Os jornalistas dispõem de uma exposição múltipla e exagerada em relação ao seu preparo intelectual. O famigerado Cony, por exemplo, comparou a Igreja a uma associação de filatelia ou numismática. Não há limites para o mau gosto intelectual.

19 de abril de 2005

TANGO, O ARGENTINO NEGRO E RADICAL




Não vou deitar falação sobre o tango (debater Carlos Gardel, como disse Raul Seixas), apenas chamar a atenção para o célebre Negro Cele, Celedonio Flores, autor, entre muitas obras-primas, de Mano a Mano, o maior poema de amor do tango e um dos maiores de todos os tempos. Negro aqui não apenas como tratamento carinhoso que lhe dão os argentinos (ou uma parte deles), mas da raça negra mesmo, poetaço de onde jorra fontes generosas de inspiração para outros autores. Desconfio que o longo poema que Chico Buarque fez sobre a mulher que abandona o sambista para ficar na galeria é filho dileto dessa letra. O tango é pura radicalidade, pois introduziu na cultura da nação uma linguagem popular, um universo maldito e marginal e jamais fez concessão para a babaquice dos bons sentimentos e as boas intenções. O tango trabalha pelo avesso, negando o que quer expressar, típico de gente pobre que resiste e que sabe, no fundo, do que somos feitos: de uma vida datada e precária, que nem a arte consola.

CONTUNDÊNCIA - Como não acredito em evolução, nego veementemente que evoluímos do hominídio para o Brad Pitt. Não acho, portanto, que o tango seja algo superado. Ele continua firme e forte, pico de pelo menos duas gerações de gênios, que sintonizaram-se com o seu tempo de forma integral e de lá trouxeram uma obra única e imortal. Astor Piazzola, aquele profundo chato de um só fraseado musical, achou que poderia fazer evoluir o tango. Caiu assim no mesmo erro do ditador Perón, que proibiu o tango e fez com que as letras de Cele fossem desvirtuadas, amenizadas, retiradas de sua contundência. Dizem que o poeta morreu desse desgosto, com apenas 51 anos. Sorte que não precisou ver o que fizeram os evolucionistas do tango, chatos como eles só e que por um tempo viraram moda no eixo Buenos Aires-Paris (não por coincidência, época da ditadura militar braba na Argentina, ou seja, o piazzolismo expressa o que a cultura argentina, modificada e aniquilada, gerou nessa época de trevas). Agora que temos a internet e amigos como Paulo Paiva, que me envia os principais tangos em MP3 e traduzidos para o português, tomo contato com o que diziam realmente as letras do tango. Fui criado escutando Gardel e Luiz Gonzaga, mas só agora descubro a profundidade de uma letra como a de Mano a mano.

MERGULHO - Para começar, jamais soube o que queria dizer Rechiflao (mergulhado) en mi tristeza. De onde vem a tristeza verdadeira, e não melancolia ou banzo, do personagem criado pelo poeta como o narrador do drama? Veio da visão que esse personagem teve da ex-amada, decadente. Esse vislumbre o tortura: hoy te evoco y veo que has sido, en mi pobre vida paria, sólo una buena mujer. Negar o amor, colocar a mulher apenas como algo sem paixão, é uma forma de extrair da situação o profundo fosso em que o poema mergulha, onde o passado é visto com amarga condescendência. O amado evoca como algo perdido o poder que a amante tinha de amar. Atribui tudo ao dinheiro, causa da aproximação (quando eram pobres) e do afastamento (quando ela enriqueceu, ou preferiu os magnatas) entre os dois: Tu presencia de bacana puso calor en mi nido, fuiste buena, consecuente. Yo sé que me has querido como no quisiste a nadie, como no podrás querer. O poema todo desumaniza o objeto de desejo para assim poder consolar-se, mas em vão, o amor é mais forte. São versos demolidores: Se dio el juego de remanche,(houve uma reviravolta) cuando vos, pobre percanta (quando tu, pobre puta) gambeteabas la pobreza(curtias a pobreza ) en la casa de pensión. Hoy sos toda una bacana, la vida te ríe y canta, los morlacos (esmolas) del otario los tirás a la marchanta (jogas na calçada) como juega el gato maula con el mísero ratón.

FINAL - A partir dessa negação, a letra descreve o momento dramático do presente, visto de forma debochada e brutal: Hoy tenés el mate lleno de infelices ilusiones, te engrupieron los otarios, las amigas, el gavión (o espertalhão). La milonga entre magnates (milionários) con sus locas tentaciones donde triunfan y claudican milongueras pretensiones se te ha entrao muy adentro en el pobre corazón. Nada debo agradecerte, mano a mano hemos quedado, no me importa lo que has hecho, lo que hacés, ni lo que harás. Los favores recibidos creo habértelos pagado y si alguna deuda chica (dívida pqequena) sin querer se me ha olvidado, en la cuenta del otario que tenés se la cargás. O jogo de gato e rato expresso na estrofe anterior a esta e o menosprezo sobre o rescaldo do amor são momentos alto da anti-lira. Vamos continuar: Mientras tanto, que tus triunfos, pobres triunfos pasajeros, sean una larga fila de riquezas y placer. Que el bacán que te acamala (o bacana que te sustenta) tenga pesos duraderos, que te abrás de las paradas (que te sustente nas paradas ) con caficios milongueros (com coisas boas), y que digan los muchachos:es una buena mujer. Chegamos então ao grande final, aquele estrofe que faz deste poema o maior de todos: Y mañana cuando seas descolado mueble viejo y no tengas esperanzas en tu pobre corazón; si precisás una ayuda, si te hace falta un consejo, acordate de este amigo que ha de jugarse el pellejo (que vai tirar a própria pele) pa' ayudarte en lo que pueda, cuando llegue la ocasión. Não há perdão, há apenas o amor jamais resolvido. Quem poderá com essa força? Carlos Gardel descobriu o poeta num concurso de poesia. Musicou Mano a mano em parceria com José Razzano em 1918. Uma letra dessas, cantada ainda por cima por Gardel, aí já é covardia. Água, hermanos.

RETORNO - Há uma percepção debochada do racismo na cultura portenha. Parece que não levam a sério chamarem-se uns aos outros de negrito e negrón. O problema é quando a cultura nacional é apropriada pela direita, como aconteceu com o nazismo em relação à inigualável cultura alemã. Do negrito para o macaco é um pulo, mas esse risco todos devem arrostar, senão viraremos todos uns babacas metidos a virtuosos. Agora entendo porque os jogadores do Quilmes caíram para trás quando ouviram a acusação de racista no final do jogo contra o São Paulo. Racismo, fala sério! Acho que temos aí uma nuance complicada que ainda vai ter desdobramentos. Ou nos entendemos com os argentinos, ou a coisa poderá feder. A solução está na fronteira: convivência pacífica, respeitando as diferenças. Estamos todos no fundo do poço. Mano a mano.

18 de abril de 2005

TENSÃO NARRATIVA NO ABISMO





O Programador do Traço é aquele cinéfilo aposentado que escolhe os grandes filmes da madrugada e que só tem vez na rede quando todos vão dormir, quando os telespectadores, esses coitados, exaustos de tanto esperar, desistem e assim são abandonados pelos vis comerciantes do Mal, que se dedicam a entupir o horário nobre de produtos intragáveis. Podemos imaginá-lo chegando na Rede Globo nos anos 70, contemporâneo de Sinistrus Joe, e sendo admitido para atender a obsessão do Paulo Perdigão, que exigia a transmissão diária de Shane, o faroeste imortal de George Stevens. Como foi obediente, ficou lá e hoje praticamente vive nos corredores vazios, só como um túnel, como diria Neruda. Mas ele não se atém aos filmes que todos consideram Arte. Sabe escolher, pela milésima vez, um clássico da aventura e suspense, o magnífico Cliffhanger (ou Risco Total), de Renny Harlin, roteiro de Michael France, de 1993, com Sylvester Stallone, John Lithgow, Michael Rooker e Janine Turner. É um clássico porque merece ser estudado em classe como um modelo de narrativa e uma saída para a atual exaustão do folhetim da teledramaturgia.

ROCHA - A confluência dramática é sintetizada no título, que significa um monte de coisas desaguando no mesmo estuário de revelações. O inglês, língua pragmática, tem dessas coisas. Vamos primeiro retaliar a palavra composta, só para atender a natureza da nossa própria língua. Em geografia, cliff é a rocha que, ao resistir à erosão provocado pelo clima, faz face a um abismo. E hanger é um membro sob tensão que mantém suspenso um outro membro. É exatamente o começo do filme: Stallone (esse Bruce Willis de rosto imutável, essa persona que misteriosamente funciona na tela) está suspenso no abismo formado pela rocha diante do nada e logo em seguida está tentando manter grudada na sua mão a mulher do amigo que inapelavelmente cai, enchendo-o de culpa. Agora vamos pegar a palavra toda, que nos remete a um conceito cultural: cliffhanger é um gênero de filme com cenas de grande tensão, aventura, suspense ou alto drama, com um clímax no final. Esse clímax pode ser alcançado no desfecho de uma seqüência. Era o que chamávamos, quando víamos os seriados nos anos 50, de episódio, ou seja, aquele momento em que tudo parece estar perdido para o mocinho, mas que sempre acaba bem. Vejam que maravilha, que achado o título do filme. De que trata o roteiro? Da segunda chance, claro, o tema recorrente do cinema americano e favorito de Stallone (basta ver as séries Rambo e Rocky). O cenário são um microcosmo da América hostil, as montanhas Rochosas geladas e sob intensa tempestade.

GANGORRA - O plot (o gancho, o elo narrativo) é o roubo milionário do Tesouro. Traidores da pátria tentam alcançar 100 milhões de dólares perdidos na neve depois de espetacular assalto seguido de acidente de avião. O anti-herói, que fracassou na cena inicial, está tentando fugir, mas é convocado pelo destino (a Mulher). Consegue assim sua segunda chance para conseguir provar que não teve culpa. A luta entre o Bem (os salvadores não ligam para o dinheiro roubado) contra o Mal (uma das maiores encarnações do nefasto, na pele do comediante Lithgow) desenvolve-se no território da insânia total. Talvez nunca o cinema tenha reproduzido tanta maldade, especialmente quando o vilão mata sua companheira (Janine Turner , excelente) a sangue frio. A queda dos protagonistas funciona como uma gangorra. Os bandidos caem para tentar subir até a Fortuna. Os mocinhos sobem para descer ao inferno da tortura. É um filme sobre profissões com espírito público: o agente que tenta impedir o roubo, realizado por ex-servidores do Estado; os profissionais do resgate que arriscam a vida salvando os outros; o veterano piloto que é pintor amador de quadros e não entende como pode o bem que faz ser retribuído pela extrema vilania. Mas o principal é que jamais, em momento algum, o exagero das ligações narrativas dão bandeira de que estejam fora de lugar. Tudo funciona maravilhosamente. Qual é o segredo?

RECOMPENSA - Tudo vem do roteiro (que teve também a mão de Stallone, segundo os créditos do filme). O herói que tenta fugir, o vilão que quer vingar-se do país, o agente que troca vinte anos de carreira por uma chance de enriquecer, as três malas de dinheiro que são localizadas e perdidas ao longo da trama. Há também as tensões paralelas, que ajudam a inflamar o filme: o companheiro de Stallone (Michael Rooker) que o culpa por ter deixado sua namorada escorregar para a morte, a companheira que cobra atitude, a relação doentia entre a bandida piloto e o chefe dos ladrões, os garotos montanhistas cabeças de vento que são flagrados pelo drama. Nada se perde, nenhuma cena é em vão. Tudo conflui como um delta pelo avesso, que vem do mar, passa pelas inúmeras raízes e vai correnteza acima até a fonte no alto da montanha. A maioria morre. Fica apenas o trio: o herói, recompensado pela sua atitude, a mulher, recompensada por ter seu homem de volta, o amigo, recompensado por ter a vida e a amizade de volta. É um final feliz, cheio de cicatrizes.

DESAFIO - Acaba a sessão, o Programador do Traço apaga a luz da sua sala. Lá fora, o dia está clareando. Ele assume o volante do seu Challenger, idêntico ao carro de Corrida contra o Destino (Vanishing Point), de Richard Sarafian, obra-prima absoluta que estaria nas mãos da Band. Ele quer aquele filme. Como consegui-lo?

17 de abril de 2005

O FOLHETIM ESTÁ EM CRISE




A overdose da literatura popular de massa na televisão via teledramaturgia deu sinais de cansaço no seu ponto mais sensível: o dinheiro que pode arrecadar pelo patrocínio que se orienta pelos níveis de audiência. Quando a novela América, de Gloria Perez, perde mais de dez pontos porque a personagem principal sussurra e todo o resto berra, segundo o diagnóstico que está na mídia, fica evidente que o folhetim está em crise e o motivo é um só: falta percepção do que ele deva ser depois de décadas de saturação. Pode-se argumentar que todos concordam num aspecto: o folhetim não deve ter qualidade, porque isso afastaria o povo de frente do vídeo. Acho que qualidade (música incidental, belíssimas tomadas da paisagem, diálogo perfeitos) só soma para o folhetim, mas não é aí que o bicho pega. O que vale é a intensidade da trama e seu encadeamento. Quando há intensidade, até música sertaneja ao fundo fica suportável, pelo menos para a maioria. Mas se houver bossa nova, fica muito melhor. O problema é que nenhum Tom Jobim segura um Começar de Novo , de Antonio Calmon, que acabou miseravelmente, ou uma cena com o Tião Boiadeiro, que Murilo Benício trouxe com tudo e acabou se perdendo com a crise.

RUMO - Uma novela perde a guerra quando não tem algo que a sustente (como a clássica situação do bebê perdido ou trocado, como aconteceu em Senhora do Destino, que tinha ainda de lambuja um exemplo real no caso Carlinhos) e um objetivo (achar o bebê perdido). A novela de Aguinaldo Silva ainda contava com um elenco primoroso de atores, como Raul Cortez, Renata Sorrah e José Wilker, que tornaram seus personagens inesquecíveis. Eles contrabalançavam a presença de atores e atrizes ruins, como Suzana Vieira, Carolina Dieckmann, José Mayer e Marilia Gabriela. América só tem bomba. E a culpa não é do diretor demitido, Jayme Monjardim, é da própria autora, que jogou no ar uma coisa sem prumo nem rumo. A crise de América não faz de Senhora do Destino uma maravilha. Aliás, na novela anterior houve uma profunda encheção de lingüiça inaturável, além do afastamento de Raul Cortez, o que acabou prejudicando tudo. Sem falar que Renata Sorrah ficou praticamente sozinha em cena e exagerou na sua performance, completamente tomada pelo sucesso, que virou-se contra sua personagem. A literatura popular não precisa obrigatoriamente ser ruim para fazer sucesso. Tem que ter algo que fisgue e encante. Normalmente os autores seguem as águas tradicionais ( a separação do casal que se ama, a vilã ou vilão explícito que encarna o mal para o Bem triunfar). A partir delas, é possível inventar (mudar o casal, como aconteceu com Suzana/Meyer, graças ao charme do ex-vilão Giovanni Prota, de Wilker; perdoar o vilão e assim por diante). Mas não é obrigatório seguir fórmulas consagradas, como por exemplo um crime misterioso que precisa ser desvendado. Pode-se criar algo novo para segurar a narrativa. América tem o quê? Uma viagem aos Estados Unidos que não ata nem desata, grupos de mulheres jovens atrás de machos, peruas enfastiadas fazendo compras e a ameaça de mais cenas do novo papa-anjo, o Edson Sempre ao Celular. O que se salva são os personagens cegos e a dupla de investigadores/mídia (Walter Breda e o filho do comediante Mussum, ambos ótimos). É pouco para agüentar o tranco.

MAU GOSTO - Ferreira Gullar decepciona novamente. Na Folha deste domingo, na sua coluna, ele tenta ser engraçado, talvez para compensar o excelente artigo da semana passada, em que denuncia o sistema de achaques da PM carioca. As piadas são sofríveis, fazem parte daqueles caras que se achavam o máximo por morar em Ipanema. Mas o que realmente choca não é a falta de humor, é o mau gosto. Chamar Doris Day, uma das mais belas vozes da música romântica e uma atriz razoável (bem melhor do que Madona, por exemplo, tanto na atuação quando na voz) de canastrona e que fazia papéis de solteirona é de uma injustiça sem fim. As comédias românticas da velha Hollywood são maravilhosas e dão de dez no folhetim execrável que a TV brasileira costuma difundir. Na época achávamos alienantes e ruins, mas secretamente víamos todas. Doris Day tinha talento, basta ver um dos filmes em que contracenou com James Cagney, Love me or leave me, de Charles Vidor, que eu vi numa alta madrugada graças ao Programador do Traço. E dava banho em qualquer Débora Secco diante da sua rosebud de camelô sussurrando asneiras. Ferreira Gullar é um tremendo poeta, um dos melhores que existe no Brasil. Por que diz tanta bobagem? Ok, é um direito seu. O que não dá para perdoar é Boris Fausto, que para variar investe contra Getulio Vargas no seu artigo no Mais! sobre a relação entre Igreja e o Estado no Brasil e na Argentina. Boris Fausto fala no primeiro longo governo de Getulio, de 1930 e 1945, o que não é apenas imprecisão histórica, é sacanagem. Houve três governos no período citado: de 1930 a 1933, Governo Provisório; 1934-1937, governo eleito pela Assembléia Constituinte, por parlamentares escolhidos pelo voto direto, sendo que pela primeira vez as mulheres também votaram; e 1937-1945, regime do Estado Novo, de exceção, que coincidiu com a grande crise da guerra mundial.

RIO ANTIGO - Boris Fausto tem algo em comum com a Veja: não reconhece em Getúlio Vargas nosso estadista maior. A capa da Veja é sobre o Rio antigo, esplendoroso. Faltou dizer: o Brasil da era Vargas. Isso eles não dizem. Tudo o que o Brasil teve de bom de 1930 a 1954 (Gustavo Capanema, Heitor Villa Lobos, Radio Nacional, literatura de primeira água, música que fez História etc.) não é atribuído a Getúlio. É atribuído a quem? Ao imponderável. No fundo dizem: a era Vargas foi genial, mas Getúlio não prestava. Então, tá.

16 de abril de 2005

A GEOGRAFIA DA MEMÓRIA



O dia claro de abril, cheio de contrastes de cores, luz e sombra, com vento temperado a velocidade amena, me levam, pela lembrança, rua abaixo até o rio, o pampa, a estrada. As pedras sendo esmagadas pelo tênis, o pé descalço, o sapato velho. A companhia dos camaradas, junto aos quais nada podemos temer, nem os caras da outra zona, nem os cachorros, os loucos, as velhas, os muros. Íamos em direção ao grupo de umbus, árvore de madeira mole e farta sombra, refresco no deserto da fronteira. Agora, rodeado de montanhas e rente ao mar, revejo a sensação daquela vida que continua lá, gravada para sempre na geografia da memória, arquivo vivo de uma esperança que nos liga em algo maior, porque a paz de espírito é a certeza na vida eterna. Dia bom para passeio, para ler na rede, para sonhar e dizer, como Churchill em plena Segunda Guerra, antes de dormir: ora, danem-se todos. O mundo vai mal? O universo não se importa. O que é uma canelada diante da fornalha das estrelas? Filosofia barata, dirão, mas são esses pensamentos, embalados por leituras melhores do que conseguimos produzir, que fazem nosso dia e nos levam para longe, aqui mesmo, onde escolhemos viver.

DESPEDIDAS - Alguém nos leva até a plataforma. Damos um longo abraço e subimos no ônibus. Da janela, vemos a pessoa acenando enquanto damos ré até a reta que nos leva dali para nunca mais voltar. Lindolf Bell pega a pedra pintada de muitas cores, dá um suspiro e diz: Essa é a pedra Açu-açu, ela vai te acompanhar, vai te dar sorte. Estávamos em Blumenau, onde lançamos (ninguém mais lembra isso oficialmente) o Jornal de Santa Catarina. Decidi que era um escândalo que um jornal local não fizesse uma ponte com o grande poeta dos versos ditos na praça, na rua e que vivia de sua galeria de arte junto à esposa Elke Hering Bell. Convidei-o para visitar a redação e a escrever para o jornal. Ele ficou entusiasmado, generoso como era. Conseguiu trazer Hair para a conservadoríssima cidade em 1971 e quando todo mundo surgiu nu no palco foi o primeiro a levantar-se e a aplaudir. Lindolf Bell é inventor de uma modernidade que ainda nos faz falta. Nunca mais vi o poeta depois que ele me presenteou com aquela pedra da sorte. Morreu na década seguinte e hoje é lembrado pelos seus conterrâneos com carinho e admiração. Convivi com as melhores cabeças, porque tive sorte nesta minha passagem pela terra. Tarso de Castro me encontra na rua e eu abraço seu corpo muito magro. Senti seus ossos quando apertei-o, ele outrora tão influente e temido e agora ali, exangue, sofrendo longo martírio de saúde. Vi seu rosto encolhido depois, no velório, antes de partir para ser enterrado em Passo Fundo. Quando vivemos um dia claro de outono, devemos lembrar o que nos brindaram com sua presença e nos fizeram melhores do que somos. As pedras do rio ringem quando colocamos nela nossos sapatos de jornada. É dia de pescar.

CULTURA - O caderno cultural do Diário Catarinense, editado por Dorva Rezende, está magnífico neste sábado. Traz, entre várias preciosidades, uma resenha sobre os lançamentos de literatura japonesa, assinada pelo escritor Carlos Henrique Schroeder, que é um primor de resenha. Pois bate sem dó no que ele acha sem qualidade, destaca as obras-primas, pontua o texto com humor, dá um panorama completo. Diz o jornal que Schroeder é dramaturgo, está lançando seu sétimo romance (A rosa verde, EdUFSC/ Unerj) e vive em Jaraguá do Sul. Brasil, terra de escritores. Pouco conhecidos, que cruzam décadas à sombra de árvores centenárias do seu talento e que pouco chegam ao público. Como Sonia Coutinho, da qual estou lendo seu Atire em Sofia (Rocco), livro de 1989 que é uma sucessão de surpresas e invenções literárias. Marco Celso Viola me avisa que terminou seu segundo romance, com um título de arrepiar que não vou dizer só para depois, quando for editado, curtirmos o impacto desse fazedor de gestos e de palavras. A literatura, oculta ou não, nos leva de volta para o dia perfeito, dia da grande corrida aqui na ilha em que quase três mil atletas vão palmilhar 150 quilômetros, o que acho um exagero, mas tem força para tudo. Ler, escrever, viver. Tudo tão pouco, tão passageiro. Há uma estrela em fogo que se aproxima. Venha, constelação divina, nos abrase com sua grandeza, para que tudo na terra seja vista por nossos olhos cheios de fé, que inventamos com nossa teimosa alegria.

AMAZÔNIA - Médicos cubanos são expulsos de Tocantins, mas médicos do Arizona estão na Amazônia fazendo turismo social. Aparece na TV o americaninho politicamente correto abraçando a criança pobre que será operada por ele. Os americanos nos extorquem os tubos em juros da dívida externa, obrigam nosso governo paga-pau a desviar dinheiro do social para encher as burras dos banqueiros, e depois envia os mimosos sentimentais que nos enxergam como macacos incompetentes. Ao mesmo tempo, querem transformar a Amazônia em território de interesse internacional, fora da jurisdição brasileira. Nosso governo já deu a bandeira branca ao transformar nosso território na fronteira com a Venezuela e a Guiana em nação indígena, portanto, nação estrangeira. Sou lembrado que um míssil tem muito menos resistência se for disparado do Equador. Faz sentido? Com toda a civilidade: por que não vão fazer turismo social na véia, peçam desculpas aos cubanos e nos devolvam a fronteira perdida?

15 de abril de 2005

A ORIGEM DAS ESPÉCIES



Fiquei chocado com um repórter de TV que desconhecia a origem do tratamento de macaquitos, com o qual somos brindados pelos argentinos. O jornalista confessou que as fontes consultadas, o próprio jogador vítima da manifestação racista do adversário do Quilmes, entre outras, todas ligados ao futebol, não sabiam. A solução era ir atrás, pesquisar. Macaquitos eram os brasileiros negros que formavam os batalhões dos Voluntários da Pátria na guerra do Paraguai, numa época que coincidiu com o branqueamento da nação Argentina, um processo, digamos, bem sucedido, já que desconheço argentino negro, a não ser os morochos, morenos cruzados com índio, como o Passarola. Falando nisso, o Ministério Público desconfia que Kia e cia, que dominam o Corinthians, se apóiam no dinheiro da máfia russa que financia o MSI. Cianorte um, Corinthians cinco? Então, tá.

GRAFITE - O apelido do jogador vítima de racismo é puro racismo. O cara é conhecido como Grafite, assim como o Edílson é chamado de Capetinha por parte da crônica esportiva. Ser negro não ofende ninguém, avisa Galvão Bueno, totalmente morocho, ou seja, moreno, explicitamente com ascendência negra (ele fala como se não fosse negro). O grande problema do racismo é que os racistas se acham brancos. Vejam os nazistas de São Paulo: são todos, tecnicamente, negros, mas se acham sangue-bom, essa expressão esdrúxula que tomou conta das galés. O que me surpreendeu (e não deveria) é que numa enquete do jornal Olé, de Buenos Aires, 60% dos entrevistados apoiaram a prisão do argentino que xingou Grafite de negro. Sinal que o país vizinho não é o que imaginamos dele. Há diversidade de opinião, existe ética, nem todos assumem aquele ethos arrogante insuportável a que estamos acostumados. No fundo, o racismo é um assunto complicado. Chamar os negros daqui de afro-brasileiros é de uma infelicidade única, já que 500 anos de Brasil não transforma ninguém em africano. O negro brasileiro é fruto de mestiçagem de etnias africanas, indígenas, caboclas e tudo o mais. É brasileiro e não afro. O problema é que a escravidão negra é reiterada pela mídia todos os dias. Existem duas novelas, Escrava Isaura, na Record, e Xica da Silva, no SBT, que mostram negros sendo açoitados, negras indo para cama com brancos, prepotência de senhores de escravos. Isso chama-se reiteração de papéis sociais e jamais denúncia. Quem faz denúncia é o cineasta Gillo Pontecorvo em Queimada, com Marlon Brando e Evaristo Márquez, um filme criado sob a ótica do marxismo clássico e que mostra, didaticamente, como se faz a dominação sobre os negros. Exagerar nas cenas de atrizes negras se refestelando na cama com senhores brancos não denuncia nada, ao contrário, põe lenha no fogo do racismo. Visitar, com cara de boi compungido, os lugares onde eram traficados os negros, como faz Lula na sua viagem à África, é apenas marketing, não refresca o racismo para este lado do Atlântico.

EMBATE - O futebol tem natureza quântica, ou seja, é feito de probabilidades. A lei do impedimento é a regra mais sofisticada do esporte mundial. Há uma tendência, por isso mesmo, de eliminá-la. No futsal, claro, não existe. Os americanos, com seu execrável soccer, não entendem nada de impedimento, é só ver os filmes que eles fazem: colocam os jogadores em linha avançando impetuosamente sobre o adversário, como fazem no assball lá deles, o jogo que dizem ser futebol americano, mas no fundo é exposição impoluta de rabos que disputam um troço oval que nem bola é. Tecnicamente o futebol é democrático, pois pode colocar o principado de Mônaco enfrentando a Rússia que são onze contras onze. Mas a camisa, a tradição, a cultura acumulada, pesam. No caso dos embates entre Brasil e Argentina, como aconteceu entre Quilmes e São Paulo, há sempre a determinação adversária de não dar o braço a torcer, já que somos países vizinhos. Os argentinos (ou melhor, uma parte deles) babam com o Brasil, adoram isso aqui e sentem a maior inveja misturada com desprezo. No fundo os racistas de lá não admitem a superioridade pelo que eles entendem de negros de segunda categoria (como vi num filme portenho, em que uma mulher fazia comparações entre os negros daqui e os africanos, esses sim verdadeiramente negros). Lembro uma vez em que entrei, barbudo e cabeludo, numa lanchonete no Rio de Janeiro junto com meus companheiros de estrada, todos muito anos 60 e um garoto disse para a família reunida ao redor dele: mira, papá, los negros. Eles se acham europeus. Ok. Macaquitos três, blanquitos uno e solamente uno.

RETORNO - Enquanto Lula (que é negro, como todos nós) pedia perdão pela escravidão no Senegal (e ao mesmo tempo continua nos deixando escravos do sistema) 90 médicos cubanos eram expulsos do estado de Tocantins pela confraria dos médicos locais. A justificativa é que não são reconhecidos oficialmente no Brasil como médicos e que isso abriria um precedente para os curandeiros . A medicina cubana é modelo de medicina pública e não curandeirismo. O embaixador cubano explicou a diferença com um ar irônico. É duro falar para países atrasados como o nosso. Fidel Castro colocou uma vião à disposição para levar de volta seus compatriotas. Uns trinta ficaram porque casaram com brasileiras.

14 de abril de 2005

AS FRASES INESQUECÍVEIS DO CINEMA




As frases inesquecíveis do cinema não são exatamente do jeito que você conhece. A tradução pode ser outra e existem algumas que pouca gente se lembra. É sobre esse diferencial que resolvi fazer novo ranking, desta vez só com palavras ditas em cena. É claro que algumas frases, por eserem imprescindíveis em qualquer ranking, precisam entrar obrigatoriamente na versão mais conhecida. E tambérm que, sendo uma lista completamente pessoal e aleatória, está aberta para todas as contribuições. Participe.

Eu vou estar voltando!
Versão atualizada, bem ao gosto do telemarketing, da famosa I´ll be back, dita pelo atual governador da Califórnia no filme O Exterminador do Futuro.

Eu poderia subir na vida, eu poderia ser competitivo.
Daqui a pouco lançam o clássico Sindicato dos ladrões, de Elia Kazan, com novas legendas e esta versão para a fala imortal de Marlon Brando (I could had been a contender) poderá ser adotada para ficar sintonizada com os novos tempos.

Falando na lata, minha querida, eu estou pouco me fodendo.
Tradução livre para a fala de Clark Gable em E o vento levou ( Frankly my dear, I don't give a damn), para Vivien Leigh, a maior atriz do mundo (junto com Geraldine Page).

Ei, eu estava blefando!
Grito desesperado de Eddie Murphy no final do magnífico 48 horas para Nick Nolte, armado, que um segundo antes tinha sido estimulado pelo próprio Murphy a atirar no bandido que fazia dele um escudo.

Pode beber!
Réplica de John Wayne, em filme que eu esqueci, para alguém que o ameaçara dizendo que ia tacar fogo em tudo porque tinha querosene.

Não terá tanta sorte!
John Wayne para o garoto que esperneava antes de ser jogado ao rio gritando que iria morrer.

Precisamos nos comunicar um pouco mais por aqui!
Fala do asqueroso e talentosíssimo Strother Martin, em Cool Hand Luke, para os prisioneiros que estavam sendo massacrados no presídio onde ele faz o papel de Capitão. A palavra comunicar foi usado neste filme de 1967 na época áurea de Marsahall McLuhan e suas teorias da comunicação. Neste filme maior, a morte de Paul Newman, representada pela roda de carro que quebra os óculos escuros do vigia da prisão, é antológica.

Milhões de biroscas em todo mundo e ela veio entrar exatamente na minha.
Nova versão para a fala de Humphrey Bogard, em Casablanca.

Aquilo era meu amigo.
Peter O´Toole, em Lawrence da Arábia, para Omar Sharif, apontando para o companheiro de jornada morto com um tiro de espingarda.

Houston, temos um problema aqui.
Só para lembrar que, antes de Tom Hanks no filme sobre o desastre do Columbia, o ator Keir Dullea disse esta frase fundamental, que entrou para a vida real, no clássico 2001, uma odisséia no espaço.

Vamos embora para casa, Debbie.
Qualquer ranking de frases precisa ter esta: John Wayne em Rastros de Ódio, para Natalie Wood

RETORNO - O número 19 da melhor revista cultural brasileira, a Sagarana, que é totalmente em italiano, já está no ar. Julio Monteiro Martins, que vive há muitos anos em Lucca, e além da revista dirige a escola de narrativa do mesmo nome, anuncia na língua de Dante: "Cari amici di Sagarana, siamo lieti di annunciarvi che, a partire da oggi, potrete consultare il numero 19 della Rivista Sagarana all'indirizzo www.sagarana.net. A questo stesso indirizzo troverete anche gli aggiornamenti della sezione Il Direttore, col racconto inedito "A ovest di niente". Questo numero offre ai suoi lettori una speciale anteprima: alcuni estratti del Diario scritti in manicomio dal più importante scrittore brasiliano del primo Novecento Lima Barreto, oltre a un saggio di Mario Vargas Llosa, a racconti inediti di Alice Walker, Dalton Trevisan, Eugenia Rico e poesie di Augusto dos Anjos, Wanda Coleman e Carlos Drummond de Andrade. Ci auguriamo che i saggi, i racconti e le poesie da noi selezionati possano offrirvi ore di piacevole lettura. I più cari saluti Julio Monteiro Martins."

ENTREVISTA PARA O DIÁRIO DA FRONTEIRA




Queria comentar o jogo do Quilmes contra o São Paulo ontem, em que nações diferentes se defrontam no espaço democrático do gramado, traído pela natureza quântica do jogo. Ou da viagem de Fred Flintstone à África, como representação do continuísmo da política exterior pragmática do regime de 64, ferido por uma distensão lenta e gradual, mas decidi me recompor. Vamos deixar os argentinos e o governo em paz e visitar essa terra grandiosa que é a fronteira brasileira lá no extremo oeste do Rio Grande do Sul, onde, entre os jornais locais, existe do Diário da Fronteira. Nele foi publicado uma entrevista com o locutor que vos fala, feita pelo conterrâneo, escritor e amigo Ricardo Peró Job. A foto escolhida foi a que o Anderson Petroceli fez na minha mais recente viagem a Uruguaiana (os créditos não estão lá, não é sr. editor?) . Essa entrevista, que reproduzo abaixo, comemora o fato de o Diário da Fonte ter alcançado ontem sua mais expressiva performance: as visitas explodiram, praticamente triplicaram em relação ao início do ano. Sinal que nosso DF está agradando e continuará assim, livre, desimpedido, metido, mas de coração aberto para os contemporâneos.

P - Teu site mostra tuas memórias de Uruguaiana, tua família, amigos. Qual é tua relação com a cidade atualmente e em que medida ela influencia tua produção literária?

R - Meu site (www.consciencia.org/neiduclos) foi criado nos final dos anos 90 para romper o cerco que a falta de divulgação impusera ao meu trabalho literário, que não encontrava respaldo nem na mídia nem nas editoras. O resultado foi a retomada das publicações e a exposição pública da gaveta acumulada em décadas e que se espraiava para muito além da poesia, na ficção, nas memórias, nos ensaios e nos trabalhos acadêmicos. O blog, criado em 2002 (http://outubro.blogspot.com/), inaugurou uma nova fase, quando assumi um compromisso pessoal de abordar os mais variados temas todos os dias. Nesse espaço inventei o Diário da Fonte, que é produto jornalístico focado na cultura, que eu defino como encontro e revelação. Meu trabalho na internet serviu para retomar contato com inúmeras pessoas com as quais tinha perdido a pista ao longo dos anos. Revisitar Uruguaiana e as outras cidades onde vivi está sendo um resgate de uma identidade, que se misturou com o tempo mas jamais perdeu sua essência. Redescobri que o que eu faço na poesia é fundamentalmente uma relação com os espaços do tempo e da geografia da minha cidade. O território limpo, sem disfarces nem obstáculos, o convívio pacífico e dinâmico com a diferença (as inúmeras fronteiras, dentro e fora da nação) e a relação telúrica com a natureza (lua, estrelas, pampa, águas) são os insumos básicos de uma poesia que sempre foi lírica, mas jamais abriu mão do seu sentido épico. A responsabilidade que temos pela vida que nos foi outorgada pela vivência e pelas heranças é o que faz de Uruguaiana o umbigo do mundo em que trafego, que é totalmente aberto para todas as influências. Minha cidade é o rosto do Brasil soberano, conceito que tenho desenvolvido a partir do que vi e vivi na infância e adolescência, quando a família, a escola e a comunidade me marcaram para sempre. Posso dizer que sou um poeta do Brasil soberano, no front cultural mais aguerrido, em busca da harmonia e da força que sempre tivemos e que hoje nos está sendo negada.

P - Tu és conhecido como poeta e jornalista. Editaste teu primeiro romance em 2004. Te sentes mais à vontade na prosa ou na poesia?

R - Até hoje tenho em cadernos de espiral meu primeiro romance, escrito ainda na adolescência, e que tratava exatamente da juventude dos anos 60. No jornalismo, sempre escrevi textos, a maioria longos, e nas gavetas acumulavam-se contos, histórias infantis, ensaios, novelas e projetos de romances. Publicar Universo Baldio em 2004 foi a ponta de um iceberg bastante profundo, que tinha ficado à deriva porque nosso país não costuma admitir que possamos desenvolver o talento em mais de uma área. Resolvi assumir publicamente o que trazia guardado e isso enriquece minha biografia. Hoje, já me arrisco em outras áreas que estavam praticamente inéditas para mim, como o teatro e o roteiro de filmes. Mas sempre me senti totalmente à vontade na poesia, vocação que despertou muito cedo, aos nove anos de idade, e que praticamente define meu perfil como escritor. A poesia tomou conta da minha vida e nela moro para sempre.

P - Qual a importância de ter um Blog na Internet?

R - O blog é uma revolução cultural, pois nele não existe censura. O que prejudica o jornalismo é o olhar alheio com poder de vetar parte ou todo o texto que você pretende publicar. Mesmo assumindo cargos importantes na imprensa, costumo despertar a censura interna, pois sei que leitores, anunciantes, diretores, patrões e colegas de trabalho gostam de colocar suas pesadas patas de urso no que faço. Assim mesmo, consegui publicar um razoável acervo de idéias e sacadas nos veículos de comunicação onde trabalhei e trabalho. O importante do blog é que deu voz a milhões de individualidades que estavam mudas. Hoje, os blogs são o ninho onde medra a literatura mais focada no nosso tempo.

P - Sabemos que já moraste em várias cidades do Brasil. Por que Florianópolis?

R - Quem leu o romance Universo Baldio, sabe. No Primeiro Tempo, que tem como título República de Itaguaçu, Florianópolis é a referência, é o lugar onde encontrei a paz na época braba da ditadura. Aqui também conheci minha mulher, Ida, com quem estou casado desde 1972. Morar aqui foi uma decisão familiar em busca de mais tranqüilidade, o que não elimina uma vida com os nós freqüentes dos conflitos. Tenho conseguido um ambiente propício para desenvolver com mais intensidade a minha literatura. Mas, como tudo no Brasil, é um lugar que também dá trabalho e sobreviver apenas com o que sabemos fazer bem é um desafio pesado, especialmente quando nosso ofício é um dos menos cotados no país em que vivemos. Mas se o Primeiro Tempo é Floripa, o Segundo Tempo, que tem como título Papel de bala, é a viagem de São Paulo a Uruguaiana. Uma viagem que desemboca, claro, na praia de mar onde agora estou. Pois a praia é o refúgio de quem viajou pelo país em busca de encrenca e sobrevivência, naquela época em que nos foi negada a vida pública plena, mas que foi marcada pelo fogo da nossa determinação.

P - Fala de teus projetos, de tuas obras inéditas.

R - Tenho um livro pronto de poesias que pretendo lançar este ano. É meu livro poético mais longo, quase o dobro do que os outros e está dividido em três partes: Liberdade, que é a poesia abrindo caminhos num tempo de guerra; Terra, onde estão meus poemas ligados à natureza; e Paz, que é uma homenagem a Sergio Vieira de Mello, o brasileiro massacrado pela barbárie. Tenho dois projetos em andamento junto com Tabajara Ruas, um que está sendo finalizado e outro que está ainda no começo. Tenho um livro de ensaios sobre cinema, que já está no blog e no site, mas que vou reunir num volume. O Diário da Fonte é um maná de novos livros que serão publicados conforme as editoras se manifestarem e se sensibilizarem.

RETRORNO - 1. Luiz Cabral chega com seu blog totalmente literário, tanto que até a autoria é de uma personagem, Kioko. 2. Sonia Coutinho me envia seu romance Atire em Sofia, editado pela Rocco. Ela é Premio Jabuti de 1979 e editora da excelente revista literária Sidarta. Obrigado, Sonia, tenho leitura para os próximos dias. 3. Ricardo Peró Job está envolvido, junto com a escritora conterrânea Vera Ione Molina, com a criação de um caderno cultural em Uruguaiana. Dá-lhe, militância!