8 de abril de 2005

O SANTO DESCE À TERRA NUA




O povo se despede de João Paulo II, mas a porção Brasil do noticiário internacional só tem cenas tristes, com exceção da reportagem sobre a fila do Papa, divulgada no Dia do Jornalista, 7 de abril, pela Globo e de autoria desse repórter eterno e imprescindível que é Caco Barcelos. Enquanto o santo é sepultado, imaginamos a solidão das mulheres estrangeiras chacinadas pelo psicopata Corumbá, artesão de fala mansa, que matou, por enquanto seis, e que tinha ódio de mulher por ser impotente e feio. A solidão de quem veio de longe viver de artesanato, fugindo talvez do machismo nas suas terras e que aqui encontrou o que elas achavam ser um paraíso com o povo inocente. Não somos primitivos nem inocentes. Somos doentes de Brasil, o país que gera análises como a de Arnaldo Jabor, que odiou o Papa a vida inteira e agora vem fazer crônica metida a interessante reconhecendo a grandeza do personagem colhido por Deus. Arre país, que coloca o único estadista sorridente em praça pública tomada pela sobriedade das exéquias. Sim, Lula estava rindo (sem medo de ser feliz?), isso eu vi e ninguém me contou.

ABUSO - Caco Barcelos ficou 18 horas, junto com o cinegrafista, na fila para ver o corpo do santo. Descobriu personagens, como o casal brasileiro que veio em trem lotado e ficou junto à bandeira brasileira até o chegar perto do corpo; ou a família de italianas com um pé no Brasil; ou as noviças que ensinaram a ave-maria em português para a pequena italiana. Seguindo os passos (cinco a cada quinze minutos, às vezes menos) dos fiéis que não queriam perder essa oportunidade de despedir-se do Pontífice amado, Caco nos surpreende com sua paciência, seu talento, sua grandeza. Enquanto ele vai desdobrando a matéria, nosso olho cansado e crítico pensa: e nós com isso, mas que coisa mais bruta ficar tanto tempo de pé; e veja o Caco indo atrás dessas pessoas, que monotonia. Mas a reportagem avança e temos todo o clima dos funerais. Os furões de fila, o quase tumulto, a ausência dos voluntários, que só se manifestam no final alcançando água, o cansaço dos mais velhos, a desistência de muita gente, e finalmente a chegada ao objetivo, que dura poucos segundos. A retirada cheia de alívio, a emoção da bandeira do Brasil, agora abençoada. Então, cai a nossa ficha: mas que tremenda reportagem, tão simples assim. É desse material que é feito o grande jornalista: suor, pauta original, paciência, criatividade, fôlego, amor à camisa. Caco é um abusado e merece todo o prestígio que tem. Outro destaque foi a cara encovada e barbuda de William Bonner, que veio correndo do Rio para a friaca romana em plena madrugada e parece estar transtornado. Jornalismo de rua é para quem é do ramo.

ENQUETE - O Comunique-se perguntou a alguns profissionais o que é ser jornalista. Os leitores aproveitaram para também dar sua opinião. Coloquei minha colher torta. Todos falam em ser jornalista como alguém que se opõe, que faz denúncia, que é um abnegado e tudo o mais. Coloquei que ser jornalista é exercer uma especialidade, o ofício do jornalismo. E que o maior equívoco sobre a percepção em relação a nós é sermos confundidos com os temas abordados. Ou seja, alguém que cobre economia vira economista e assim por diante. Os temas são especialidades das fontes. Mas ninguém deu bola. O Comunique-se normalmente é um conjunto de monólogos, muitas vezes agressivos. A facilidade da mensagem eletrônica libera os instintos. As pessoas se batem sem dó. Nem sempre há referências, nos comentários, ao texto em questão. É mais uma vitrine de dizidas definitivas. Nossa cultura ceva a auto-suficiência, que no fundo substitui a auto-estima perdida. Como é raro o reconhecimento público, há a tendência de introjetar posturas radicais para deixar mais explícita a imagem que queremos mostrar. Mas nossa imagem não nos pertence. Todo mundo pode nos ver, com exceção de nós mesmos. Somos o que projetamos, por isso é inútil cuidar da imagem. Você é esse cara que os outros enxergam e que você não domina. Entregue a Deus e viva. A majestade da presença vem da coragem de enfrentar o conflito e não da maquiagem.

RETORNO - Kirchner está cada vez melhor. Disse que não tinha dinheiro para ir aos funerais do Papa (lembro o americano que disse, nos anos 60, que os Estados Unidos construiriam uma Brasília quando tivessem recursos para isso). O presidente argentino dobrou a Shell, que desistiu de aumentar os preços da gasolina. Se a gente comprar quando eles aumentam, eles vão querer aumentar a toda hora, raciocinou Kirchner. Raciocínio gerado pela coragem e a independência. Isso chama-se soberania, o que mais nos falta.

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