30 de maio de 2005

AL PACINO, A ENCARNAÇÃO DO PODER SEM ROSTO

O maior ator do mundo, entre os vivos, encarna sempre algum poder oculto. O relações públicas que inventa eventos e carreiras, o produtor do programa de TV 60 Minutos que peita a poderosa indústria do tabaco, o mafioso que quer lavar sua fortuna, o migrante que pela violência tenta impor-se dentro do império, o advogado de porta de cadeia que enfrenta a corrupção dos juízes, o homossexual pobre que assalta um banco para ter acesso aos recursos da tecnologia na área da saúde para seu amante, e por aí vai. Há uma coerência nessa carreira mais do que brilhante, nessa iluminação que nos seduz pelo carisma, o talento, a técnica, a performance ou simplesmente pela presença na tela. Al Pacino mostra a cara do que ocorre nos bastidores da nossa sociedade tão metida a transparente, mas que cultiva sempre o ocultamento, a garganta profunda, para que o poder se mantenha na mão de poucos, contra as sociedades de massa, que ficam à mercê dos mais hediondos interesses e crimes.

GRITO - Começamos pelo mais importante, o Godfather III. Al Pacino é o Corleone que quer banhar-se no dinheiro legal, lavado, que faça de si e sua família uma comunidade respeitável. O chefe mafioso acredita que haja algo acima dele, o poder legalizado e dentro das normas jurídicas. Sabe que há um furo, é possível comprá-los, mas não tem noção exata da enormidade da máfia que dispõe do poder de fato, total e absoluto. Quando perde a filha nas escadarias da igreja, devido aos problemas gerados pela sua insistência em tornar-se um homem aparentemente de bem, ele dá o mais lancinante e demorado grito mudo da história do cinema. Al Pacino com as mãos na cabeça sem emitir um som e de boca escancarada por longos minutos é o momento mais terrível que um espectador pode suportar. Não gostamos daquele mafioso, não torcemos por ele, já que o filme é pura desdramatização o tempo todo, uma denúncia constante do que ocorre no grande mundo das finanças e da política. Nada queremos com ele, mas quando Al Pacino implode diante de nós temos vontade de voltar correndo para casa e nos esconder embaixo do colchão. Então é esse o mundo em que vivemos, sonhamos, nos movimentamos? Esses são os poderes ocultos que mostram apenas alguns flashes para nós e que só Coppola e seu grande e maravilhoso ator poderiam nos dizer com todas as letras, imagens e gestos? Esse é o poder oculto encarnado por Al Pacino, o maior entre seus pares que ainda estão sobre a terra (embaixo dela, há Marlon Brando, e basta).

ESTRELA - Al Pacino torna-se uma estrela por encarnar papéis que são o avesso do estrelismo. Ele não fica fazendo caras e bocas diante das câmaras, ele quer que a gente enxergue o que está perto de nós, diante de nós, e não conseguimos ver nem ouvir direito. Sua voz é contundente, sua emoção é aos trancos, sua persistência ultrapassou todos os limites. Ele está sempre um passo além do extremo. Quando grita Attica! Attica! Em Um dia de cão, ele está por conta, exausto, destruído. É nesse território sem dono, o não-lugar das criaturas que resolvem ficar de pé mesmo sabendo que já transgrediram as fronteiras de qualquer tipo de vida normal, é ali, no ninho da coruja, onde há cobras à espreita, onde há espectadores vocacionados para bocejar que ele nos coloca frente à frente com algo que não poderemos evitar. O ex-militar cego de Perfume de Mulher (apesar de eu preferir a versão italiana com Vittorio Gassmann) está morto há tempos mas não se conforma. Ele emerge com seu rosto profundo e destrata os vivos porque vivos estão. Qualquer um esqueceria esse horrendo personagem, menos Al Pacino, que vai catar nas sombras o que nos manipula. Serpico, o detetive que entrega a corrupção policial, só confirma essa natureza do trabalho de Al Pacino como ator: ele revela o que está escondido e com isso ganha a maldição. Al Pacino convence a testemunha a depor contra os industriais dos cigarros e com isso briga com o próprio repórter e apresentador do programa, com todo mundo.

SEGREDO - Ele está só. Construiu sua dignidade pelo caminho mais difícil. Por isso há uma esperança no reino do Mal: que Al Pacino desapareça de uma vez, para continuarem sem rosto. Mas teremos a nosso favor os filmes, a herança de Al Pacino, o cara que nos apontou os grandes crimes debaixo do nosso nariz e que por isso tornou-se o mais humano e completo artista que a tela do cinema conseguiu nos mostrar nestes anos de trevas e silêncio, apesar da balbúrdia geral ( o barulho é o esconderijo secreto dos vilões).

RETORNO - 1. O assustador e magnífico conto de Daniel Duclós, Fluxo Negro, está publicado na revista Bestiário, uma das mais importantes revistas culturais do país. Daniel, estudante de Letras da USP, também foi selecionado para figurar em próxima edição impressa de outro revista, que divulgaremos quando sair. daniduc rox! 2. O site, atualizado todos os dias, explode em visitas. 3. Produções literárias e trabalho jornalístico tem me tomado tempo e o Diário da Fonte continua em ritmo um pouco mais lento de atualizações. A revisita que tenho feito aos nossos arquivos me revelam a gigantesca produção dos últimos anos, quando aqui abordamos de tudo, como é de lei num jornal que se preze. A seleção dos textos agora estão editados e organizados no site. Mas ainda falta muito para colocar lá. Vamos em frente.

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