2 de agosto de 2005

A DESPEDIDA DE SINISTRUS JOE

Depois de dormir em frente à caixa rápida, esperando o pagamento de um conto que vendeu para uma revista espanhola, Sinistrus Joe achou a grana tão boa que decidiu ir embora de Florianópolis. Por isso me convidou para uma visita ao seu refúgio, que fica ao lado de um grande menir numa das inúmeras praias da ilha. Fui vê-lo porque o veranico deste inverno nos permite chegar perto das ondas . E também porque essa era a grande oportunidade de fazer perguntas definitivas sobre uma personalidade que rolou vestido de roupa preta apertada, um lenço na cabeça e uma mochila velha, ciscando latas usadas de refrigerante para sorver o resto do caldo que se acumulava em lixeiras do centro da cidade. Encontrei-o com os olhos rútilos, que focava um granito à sua frente. Aproveitei para perguntar:

- Sinistrus, por que você vai embora?
- Porque esta é uma ilha hostil.
- Mas ela tem fama de cordial.
- É para atrair turistas. Fique depois do feriadão para ver.
- Não está exagerando? Você mesmo ficou aqui por décadas.
-As pessoas ficam aqui porque não conseguem sair. O dinheiro não circula e todo mundo fica confinado, sem poder comprar a passagem.
- Mas não pára de chegar gente. Todos querem viver em Floripa.
- Boa sorte para todos. Verão que o mau humor, quando quer ser engraçado, torna-se deboche. O cinismo é a alegria da crueldade. E se a esperteza é a inteligência dos burros, como já disseram, a burrice é a ética dos inteligentes. Estou burro. Vou-me embora.
- Vais deixar de morar na praia?
- O mar, no Brasil, é uma ilusão. É só chegar na beira do mar para ficar completamente duro. E ainda tem que agüentar os canalhas que passam o ano poluindo e chegam aqui carregados de dinheiro. Não sei de onde tiram tanta grana. Todo mundo abre a carteira e saltam notas de dez e cinqüenta. Só eu conto moedas, e quando encontro nem dá para um pãozinho.

Sinistrus me enxergou finalmente. Tinha detectado um sorrisinho na minha maneira disfarçada de escutá-lo falar sobre pobreza.
- Isso o que você está fazendo é o que mais me irrita nesta ilha.
- Isso o quê?
- Não se faça de inocente. Foi só falar de dureza que você já me enxerga como um morto de fome, um perdedor. Não gosto que me enquadrem.
E aproximando o rosto bem perto do meu:
- Você se sente superior, senhor jornalista? Porque tem um salarinho acha que pode me esnobar?
- Longe de mim. Tenho a maior consideração por você.
Conversa, disse ele. E virou o corpo todo para o horizonte. Tentei dar uma relaxada na conversa:
- Este ano não teve tainha.
- Nem vai ter mais. Essas pessoas estão abaixo do caipira. Caipira ainda tem cultura. Eles estão na fase vegetal do pensamento. Se pegam tainhas ovadas todos os anos, às toneladas, há centenas de anos, como podem querer que elas se reproduzam? No fundo, a pesca de tainha aqui é um crime ecológico. Os peixes sobem para desovar mais para o norte e são interceptadas aqui. Cada ano ficaram em menor número e os pescadores foram se acostumando. Agora elas escassearam. Puseram culpa no clima, mas este fez uma friaca braba, como nos outros. O problema é que o inverno não deixa resíduos.
- Como assim?
- O frio não faz parte da civilização portuguesa. Não vê o Glauber? Morreu de septecemia em Cintra, no alto da serra em Portugal, terra fria pra dedéu, onde não existe uma lareira. Aqui morre-se de frio, mas basta a temperatura subir para todo mundo dizer que não houve inverno. Conheci um potiguar que ficava em mangas de camisa no inverno. Ele dizia: Mas eu não sinto frio! Depois descobri que ele queria dizer exatamente isto: Eu não sinto frio porque sou macho! Sentir frio é para criançcas, mulheres e gente velha. Valha-me Deus.

-Você vai para onde, Joe?
- Não sei ainda. Primeiro vou dar um pulo em Sampa, comprar uns livros antigos de literatura da Civilização Brasileira nos sebos que tem lá. Vendem a três centavos a página. Aqui, ninguém lê. Quando alguém no ônibus senta ao meu lado com um livro, é sempre o Paulo Coelho.
- O que você tem contra o Paulo Coelho?
- Ele foi a Seleções do pensamento esotérico. Ninguém lia nada dos grandes autores, como Gurdjieff, Castaneda, Madame Blavatski, Krishnamurti. Então ele apareceu com sua auto-ajuda colocando à disposição do grande público algumas sacadas.
- Ué, mas Castaneda é best-seller.
- As pessoas leram um outro livro dele, não a obra toda, que é em espiral. A leitura deve ser completa para a gente entender do que se trata. Paulo Coelho leu, mas diluiu. Agora é romancista. Não gosto.
- Implicância sua, Sinistrus,. Não será um pouco de inveja?
- Não sinto inveja, meu caro escritor. Sinto fome.
- É o que estou dizendo.
- Você não entendeu. Sinto fome de cultura. Sinto fome de paisagem. Por isso vim para cá. Pela paisagem. Os catarinenses acham que é pelos seus belos olhos azuis. Estou me lixando. Sempre quis a montanha, o céu, a lua e as águas.
-E agora ficarás longe disso.
Sinistrus me abraçou. Estava chorando.
- Vou-me embora, cara. Essa ilha nunca me quis.
- Você vai voltar. Sei que um dia vai voltar.

Saí dali porque caía a tarde e o frio tinha começado de novo. Não olhei para trás. Sinistrus Joe assobiava Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque. Bem na batida de João. O cara adora João Gilberto.

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