2 de setembro de 2005

SETEMBRO, A INFÂNCIA DO TEMPO

O inverno é feito de dois irmãos incompatíveis: Julho, mês de frio, lareira, vinho e céu estrelado; e Agosto, o Caim do tempo. A ressaca das tempestades e furacões está por toda a parte. Hoje mesmo, Porto Alegre sofre black-out depois de uma investida brutal de um ciclone. Mas aqui, neste pedaço de terra, o início de setembro parece ser a infância de Abel, o favorito de Deus. O dia translúcido, de um azul de seda, o sol como pincelada de artista diante da paisagem, a grama irradiando a manhã, tudo traz de volta alguma esperança e expulsa o medo guardado no bolso dos ventos. Pode ser que a harmonia não dure, mas o oásis do clima nos lembra para que vivemos e dá vontade caminhar pela tarde em direção a uma praia ou uma livraria.

CAOS - À noite, na véspera deste dia perfeito, depois de um calor estranho, as árvores começaram a balançar. Mas era alarme falso. Talvez a respiração de Agosto antes de dormir, exausto de sua faina de destruição. Era uma vez a época em que perdíamos celebridades nesse mês de agonias. Agora perdemos multidões. Centenas de milhares de pessoas são tragadas em poucos minutos. Os olhos esbugalhados dos sobreviventes nos advertem: pode chegar aí, cuidado, éramos como vocês, assistindo televisão, e agora estamos neste estádio, mortos de medo, na mão de gangs, tiros e falta de água e comida. Estamos à mercê dos ventos. Não há previsões, apenas prenúncios sinistros. Massas gigantescas de ar chocam-se com temperaturas opostas e geram a espiral cavernosa. O que há com o clima? perguntam. Há que vivemos numa fração mínima de tempo, mínima em relação aos bilhões de anos da terra. Esse intervalinho de cinco mil anos não é nada. Tudo pode acontecer na criatura que bóia no espaço em direção a alguma coisa que jamais descobriremos. Jamais iremos interferir neste ambiente. Somos apenas parvos iludidos de que temos poder. A devastação de Nova Orleans nos devolve Hobbes e seu Leviatã. Onde não há Estado, o caos se instala. De repente, nos lembramos para que serve o Exército: para impor a ordem na cidade saqueada. De repente, nos lembramos para existe nação: para que não fiquemos á mercê do instinto assassino de seres na sombra. Em 2004, nos lembra Luis Mir, 41 mil pessoas morreram sob o efeito de armas de fogo no Brasil. Não temos nação. Somos um amontoado de indivíduos.

USA - Toda vez que algum evento nos obriga a prestar atenção nos Estados Unidos (furacão, Copa do Mundo), descobrimos que grande porcaria é o grande irmão do Norte. Nova Orleans sofre com a incúria e a incompetência dos poderes públicos, que armaram uma arapuca em terras mais baixas do que o nível do mar. Para piorar, havia gigantescos armazenamentos de gasolina, que foram para os ares. Falta combustível para a fuga. A população pobre se desespera diante das câmaras. O mundo real irrompe na televisão e toda a mitologia sobre o berço do jazz perde o sentido. Há miséria, há luta de classes, há racismo, há violência. A América é um país pôdre fundado numa doença, o dinheiro, que exporta o próprio inferno para o resto do mundo. Clinton queria que invadíssemos a Colômbia, confidencia FHC. Querem criar um enclave militar no Paraguai. Levaram do Brasil um trilhão de dólares em juros da dívida em onze anos, ou seja, levaram tudo isso e o buraco continua intacto, e está crescendo.

DANÇA - Enquanto isso, dezenas de milhares de brasileiros atravessam o deserto para serem capturados pela polícia americana. Eles têm um sonho: trabalhar como escravo. É a única chance de sobreviver. Na terra natal, nem isso lhes é permitido. É preciso cuidar da inflação, manter arrocho no crescimento, gastar quase cinco bilhões de reais por ano na Câmara e no Senado. Nossas obras de engenharia caem: edifícios despencam, pontes são levadas pelas águas ou desmoronam. Não se aprende mais cálculo infinitesimal na nossa educação sucateada. Os jovens formados em Direito são reprovados em massa no exame que dá direito a exercer o ofício. Médicos cada vez mais incompetentes. Uma dentista colocou a broca num nervo inflamado e depois tapou tudo com massinha, deixando a coisa latejar. Era dentista de convênio. Foi preciso que pagar duzentão para reaver o dente. Na novela América, todos dançam.

TRAVO - Mas eu ia falar de setembro. Deve ser Agosto: o travo amargo na boca, o medo e a perspectiva terrível de que no ano que vem tem mais. Se é que já acabou a fase atual de desastre naturais e sociais.

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