17 de setembro de 2005

A VIAGEM DO ARTÍFICE




Nei Duclós

Um artífice cuida do seu ofício e o exerce de forma compulsiva. Não tanto para atingir a perfeição: mais para descobrir a natureza e a estrutura do que faz. Um carpinteiro não mira a casa quando participa de uma construção, mas as vigas, o lustro, o talho do formão, o resultado da sua participação no conjunto. Não que não tenha condições de saber onde está enfurnado, ou o que é, afinal, a obra, uma soma de parcerias, talentos e conhecimentos. Ele conhece o fruto de muitas mãos, mas prefere seu próprio mergulho, feito de outra intensidade. Não se trata aqui de definir hierarquias do fazer, mas de tentar entender, pela similitude, o que é a literatura que nos cabe decifrar, e definir o perfil da sua irmã de viagem, a resenha ou o ensaio. Cícero Galeno Lopes, como todo escritor de verdade, nos mostra o caminho.

Seu novo punhado de contos, batizado de A Viagem (Editora Movimento, 95 páginas), toma emprestado o título de um dos exemplares dispostos no livro. São textos que o esmero da escrita ensina o chão batido da arte. Pois a vida, ou a imaginação, se encarrega das histórias, dos conteúdos. Ao escritor resta o enredo da palavra, o caminho a percorrer, a teia que nem sempre leva ao desfecho, mas à revelação do que está sendo dito. Num romance policial, não importa quem é o assassino, mas como escritor chega à autoria do crime. Às vezes nem isso. O criminoso apontado nas primeiras páginas deixa livre o espaço para compor a confluência que realmente interessa: o percurso da letra, semente que se desdobra numa floresta que parece mato ralo, mas é como jóia guardada no mineral mais duro.

No caso de Cícero, com seus contos que abordam o povo sofrido da fronteira, do campo e da cidade, o que importa, em sua maior parte, são as armações dos que lidam profissionalmente com materiais brutos (madeira, pedra, laço, lavoura). O carpinteiro que chega à conclusão oposta a de Macunaíma, de Mario de Andrade, sobre os males do Brasil (no lugar da saúva e da pouca saúde, futebol e televisão); o picador de pedra que ao garimpar ametistas transmite o segredo para se diferenciar do pedreiro; a rezadeira que elenca as ervas advertindo que a fala é que faz a mágica e que o remédio das plantas não funcionam com ela: todos são protagonistas de uma saga oculta, misturada ao pó do esquecimento. O escritor cola sua pena ao artífice exilado na varanda, na hora da conversa, quando está longe dos seus instrumentos. E de lá escuta ao seu modo a trama que vale por uma cidade desconhecida, que surpreende os moradores depois de uma tempestade. Onde estavam aquelas ruas, pessoas, cenas antes do dilúvio? E por que se ocultavam, se são tão reais quanto uma fantasmagoria que bate o bumbo para uma comunidade inteira?

Tudo estava dormindo na mão do escritor que esculpe a tragédia por ter desconfiado, antes de saber, que algo pulsava na margem escura do riacho. O que desperta é o país confinado no seu próprio território. Não se trata de uma denúncia, pois isso seria contaminação de discursos conhecidos e gastos. Mas de uma toalha de renda, um boneco de madeira, um cadafalso, uma parede. É criação assumida como um serviço encomendado pelo espírito, arrostado por um especialista que palmilha cada frase sem se importar com o papel timbrado dos encargos. Palavras que se escuta ao vivo, como circostância, adiôs ou expressões como já viu outra coisa? vancê conjumine, hoje é do tal, ganham casa e comida na tenda que Cícero estende no deserto. É como um campo de refugiados onde o escritor se instaura como espectador participante, mas sem interferir no diálogo entre quem fala e quem deveria escutar. Palavra sem passaporte, fugida, surrada, desesperançada, vê que ali pode descansar o osso, temperar a carne, rodear o mate.

Cícero não comete esse sacrilégio para exibir artificialismos, mas para reunir o que é considerado morto, e transfigurar o material com passos miúdos (as frases curtas, representação da prudência de quem assombra o sagrado). A confusão em relação ao papel do escritor pode acontecer: nos contos O direito é torto ou Maneco Lu, é de injustiça que se fala; em Cica, Aparício, é de desperdício social; em Pó de chifre, de manipulação de consciências ; em Pau-de- Arrasto, de insubordinação; em Prenda minha, de abandono familiar; em Pantaleão, de racismo; em Arresto, de escravidão; em Engrácio, de perda de identidade, e assim por diante. Mas seria fatal para ele mudar a natureza de sua escritura. O acervo de brutalidade é apenas o resultado, o gado solto que rebenta o alambrado. Ele não cai na armadilha do engajamento, já que prefere permanecer com os pobres. Apontar erros seria apenas uma forma de mostrar-se acima do que vê. Como o autor está grudado na rede que tece, ele faz parte da paisagem e nela encontra a diversidade necessária, a sabedoria escondida, a grandeza que evita qualquer soberba.

Essa ética profundamente identificada com os objetos que usa para conhecer o próprio ofício faz de Cícero um autor raro entre os contemporâneos. Nesta época de superficialidades, maquiagem, pose, distorções, salões enfeitados, Cícero Galeno Lopes prefere o galpão. Não a senzala, prisão de idéias e experiências. Mas o galpão aberto, onde medra a brasa torrencial da população da qual faz parte. O escritor é um dos protagonistas, sem reivindicar nada, desse povo, desconhecido por ter sido erradicado do imaginário nacional, que agora anda às voltas com a entrega da soberania. Nessa posição em que escuta sem ser o personagem que ouve, que escreve sem ser o narrador com a rédea, ele encontra sua redenção. Cícero se salva pela radicalidade que assume. E, como os artesãos que o orientam na escrita, parece permanecer calado, quando, no fundo, grita. Idêntico aos seus personagens, ele se submete para revelar insurgência.

Se não o escutam, é porque a crítica está perdida em outras paragens. O analista acha que deve perseguir conteúdos e não atentar para o fato de que o escritor é o que a população consegue ser: um sobrevivente em direção ao nada, que na sua viagem, espalha a luminosidade. O trote em direção ao cemitério, como relata no conto A Viagem, não é o caminho. Este, obedece apenas ao pensamento. O andar se faz para dizer quem somos: "A viagem vai ser boa, porque vamos por bem, por não esquecer o que a gente é e pode".

RETORNO - Uma gripe, um resguardo diante da friaca e dos ventos da ilha, me colocaram a nocaute. Dois dias sem postar. Mas estamos de volta. Aproveito a concentração para estudar o gênero que exercito muito aqui. Leio Crônica: o vôo da palavra, de Walter Galvani, uma aula de história sobre literatura e sobre o ofício que abraçamos.


RETORNO - Imagem desta edição: obra de Escher.

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