27 de outubro de 2005

A HISTÓRIA NA RODA VIVA




Luis Fernando Veríssimo, a quem tanto admiramos, tem o direito de ficar fulo com o resultado de referendo. E também de invocar exemplos da História para lamentar a opção maciça do eleitorado no dia 23. O que nos cabe é investigar seus argumentos. Aqui mesmo invoquei algo que perpassa a História: a luta pela soberania de armas na mão. Pode ser encarado como anacronismo (adoram dizer que somos velhos quando falamos em História), o que não está correto, segundo minha visão. LFV fala que aconteceu algo idêntico na época da abolição da escravatura e na revolta da vacina. É preciso colocar o que os historiadores chamam de especificidade. Os abolicionistas que eram escravagistas (alguns deles eram realmente) trabalhavam o tema dentro dos parâmetros da época. Havia a percepção de que tinham sido importados escravos negros demais no Brasil e que era preciso acabar com a situação. Uma das soluções era selecionar os novos migrantes. Joaquim Nabuco, como escrevo num dos textos mais visitados no meu site, era contra a imigração asiática e a favor da européia. O que se discutia era quem iria substituir os escravos nas fazendas. A idéia era colocar mão-de-obra livre no lugar da escrava, gente de pele branca para branquear a raça (projeto que foi bem sucedido na Argentina, onde, antes do grande mistério do fim dos africanos naquele país, metade da população da capital Buenos Aires era negra). A libertação dos escravos não obedeceu apenas ao decreto da princesa Isabel, mas transformou-se num processo complicado, ainda atual. Não pode ser brandido de modo anacrônico, como fez LFV.

CORTIÇOS - A revolta da vacina é outra complicação. Vacinar era parte de um projeto, inspirado nas transformações de Paris e Londres (como bem abordou o livro de Marshall Berman Tudo que é sólido desmancha no ar), em que foi decidido erradicar os cortiços no centro do Rio de Janeiro para transformar a área numa imitação européia. Importaram-se até os terríveis pardais, aves adventícias que dominaram o pico em todo o país e expulsaram a diversidade da fauna aviária da mata atlântica que vivia nas cidades brasileiras. Era higienização e imposição da ditadura civil. Além disso, os funcionários que iam vacinar sentiam-se à vontade para agarrar as mulheres e aplicar injeções nas, digamos, "partes pudendas" (isso sim é anacronismo!). O corpo da população ficou à mercê do Estado, o que era comum numa época escravagista, mesmo que a escravidão estivesse fora da lei. Os erros de como foi feita a vacinação em massa cindiu a opinião pública e mobilizou a população. Não é, portanto, algo límpido e cristalino que possa ser invocado para dizer que, naquela época como agora, a massa estava contra algo que iria beneficiá-la. Até hoje existem ramos da medicina, como a Homeopatia, que é contra a vacinação em massa, imaginem na virada do século retrasado.

DIREITOS - O debate político tem sido amplo, especialmente na internet, e nos catequiza da melhor forma possível. Pessoas com posições opostas acabam juntas em episódios como o referendo (Luiz Fleury, dá licença!). Foram vários os motivos que levaram as pessoas a votar Não. Acredito num só, já citado, mas todos têm o direito (lá vem a palavrinha anatemizada de novo) de contrapor com suas próprias argumentações. O equilíbrio é difícil, pois há muita coisa envolvida. No mesmo dia em que foram reveladas as fitas do caso Celso Daniel, prefeito assassinado de Santo André, em que aparece José Dirceu em conversa com o chefe de Gabinete de Lula sobre como as testemunhas deveriam se comportar (foi isso o que se soube por parte da imprensa) um grupo de artistas e intelectuais fazia um abaixo assinado a favor de Dirceu e da democracia. Acredito que as pessoas que assinaram têm motivos diversos para participar do movimento. Mas acho precipitado apoiar alguém que ainda está na berlinda. E se for provado o contrário do que os membros da lista defendem? Eis uma nova sinuca de bico para a cultura brasileira, que representa os conflitos mais candentes da situação política.

BALCÃO - De minha parte, obedeço a um comportamento ciclotímico: serenidade sendo substituída por indignação e vice-versa. O importante é que não machuquemos o debate com acusações impróprias, nem deixemos que se alastre pela opinião pública a certeza granítica de que a democracia está só de um lado do balcão.

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