22 de outubro de 2005

Confisco de direitos


Prometi que não ia entrar mais na campanha. Cumpro. E reproduzo não um texto de campanha, mas a expressão de uma lucidez casada com a experiência. Saiu hoje na Folha e fui alertado pelo Blogstraquis, do Mestre Moacir Japiassu.


Confisco de direitos
FLAVIO FLORES DA CUNHA BIERRENBACH
(In "Tendências/debates" da Folha: 22/10/2005)

Na América Latina, não faz muito tempo, cerca de 30 anos, o capitalismo selvagem precisava de uma ditadura em cada país para fazer o trabalho sujo. Hoje, não. O neoliberalismo se encarrega do serviço de uma forma "clean", com lençóis e travesseiros, com eleições e plebiscitos.
Para tornar o mundo mais seguro para as corporações transnacionais, a partir de 1977 foi gestada na famosa Comissão Trilateral a doutrina do desarmamento das populações dos países do Terceiro Mundo, agora não mais chamados de periféricos ou subdesenvolvidos, mas "em vias de desenvolvimento", eufemismo que equivale a uma promessa de eternidade.
Uma parte da esquerda engoliu a isca e o anzol. Paciência, dizem. A globalização e a interdependência são fatalidades inexoráveis e, afinal, ninguém segura este país.
À míngua de uma política consistente de segurança pública para o Brasil, alguns políticos aderiram em peso ao arrastão ideológico de ONGs que utilizam a paranóia, a propaganda e sobretudo a mentira como técnicas de profanação da vontade coletiva.
Não deu certo. A despeito da Rede Globo e de seus múltiplos instrumentos, a campanha do desarmamento -logo também encampada pelo PT- foi revelando, em retrato de corpo inteiro, sua espantosa mediocridade. Seja pela futilidade das medidas que propõe para reduzir as taxas de violência urbana, seja pela fragilidade dos dados apresentados e pela indigência dos respectivos argumentos. Confirmou-se ao longo da campanha a certeza de que a política de desarmamento proposta é inconstitucional, irrazoável, demagógica e totalitária, incompatível com o Estado democrático de Direito.
No fundo, o que eles querem mesmo é acabar com sua aposentadoria, aumentar os impostos, censurar o seu pensamento e, agora, reduzir o seu coeficiente de liberdade e suprimir o seu direito de defesa, que é o primeiro e o mais antigo de todos os direitos humanos.
Desde a célebre Declaração da Virginia, de 1776, os cidadãos tomaram consciência de que são titulares de quatro direitos fundamentais: o direito à vida, o direito à liberdade, o direito à busca da felicidade e o direito de resistência. Como pode o cidadão desarmado defender sua vida e sua liberdade? Como pode almejar a felicidade, que, para a imensa maioria dos seres humanos, significa apenas ter uma família, uma casa, um salário? Como resistir ao Estado totalitário, à opressão, à prepotência?
A primeira lei de controle total de armas de fogo surgiu na França ocupada, em 1940, logo depois da invasão alemã, no governo títere de Pétain e Laval. Se a França houvesse obedecido à lei iníqua, não teria havido a Resistência.
Custa a crer que, mais de meio século depois, o Brasil esteja correndo o risco de imitar os nazistas. E nem é para controlar a população de um país ocupado. É para dominar o próprio povo. Com uma legislação dessas, o pracinha brasileiro que morreu lá na Itália morreu mesmo em vão.
É curioso que os arautos da campanha do desarmamento não proponham um país sem crimes, mas apenas um país sem armas. Porém, não escondem suas intenções quando afirmam que "desarmar é apenas o começo". Pois bem, qual é o fim?
O fim é acabar com a segurança pública e implantar a segurança privada. É demolir a indústria nacional, que permitiu a auto-suficiência das Forças Armadas. E, em uma etapa seguinte, é o desmanche das Forças Armadas e a liquidação do Estado nacional.
Nenhum governo tem a prerrogativa de interferir na esfera privada do cidadão para transformar um direito em crime. Sobretudo ao arrepio da Constituição, dos direitos humanos e de usos e costumes milenares que asseguram o sagrado direito de defesa, a igualdade de todos perante a lei e a incolumidade da pessoa e protegem a casa como abrigo inviolável do cidadão.
O governo é apenas preposto do povo, e não o contrário. As armas que o governo tem pertencem ao povo. É o povo que dá às Forças Armadas e à polícia as armas com que devem defendê-lo e proteger a pátria. O povo é o mandante, o governo é o mandatário. O governo não tem o direito de tirar do povo as mesmas armas que o povo lhe deu. Enquanto um agente público tiver legitimidade para ter e portar armas, o cidadão comum também terá.
O primeiro passo das ditaduras para transformar um cidadão em vassalo é o confisco de suas armas de defesa. Negar o acesso legal, a posse e o porte significam formas oblíquas de confisco. Um país -qualquer país- em que todas as armas se encontram apenas nas mãos da polícia e dos criminosos não é um país democrático.
Não permita que isso aconteça no nosso país. Não abra mão de seu direito de defender sua família, sua casa, seu salário, sua vida, sua pátria.

Flavio Flores da Cunha Bierrenbach, 65, bacharel em direito pela USP, é ministro do Superior Tribunal Militar. Foi vereador, deputado estadual e deputado federal, todos pelo MDB-SP.

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