31 de dezembro de 2005

BUMBA MEU BOI DE MAMÃO





Estávamos perdidos, meu boi. Estávamos certos de que nada mais poderia nos atingir. Fomos testemunhas de ondas gigantes, massacres de todos os tipos, crueldades sem fim. Olhávamos o mundo já sem emoção, a não ser aquela preparada pelos narradores emplumados, investidos de bezerros de ouro. Mas eis que você morre e ressuscita na minha frente e desata essas figuras que deveriam já estar enterradas. Mas elas estão mais vivas do que em qualquer outro final de ano. (Crônica publicada hoje no caderno Donna DC, do Diário Catarinense.)

Nei Duclós

O boi desperta no Verão. Sua dança é a criatura liberta da canga, do rodeio, do laço, da vida determinada pelo destino. Ao vivo, salta sobre os espectadores. Avança e roda, porque extrapola e quer revanche pelo tempo que ficou absorto, imóvel, hibernando, sendo criado para a morte. Mas sua insurreição, feita desse pulo sobre a platéia, desse rodopio que dribla o jugo, precisa enfrentar os ciclos a que todos estão acostumados. Por isso cumpre sua sina e morre no meio do espetáculo, para desespero do narrador. Desta vez, não era para acontecer esse desenlace. Deveria sobreviver, já que do boi guardou apenas a memória, pano que não oferece carne, chifres sem faísca de perigo.

Ele cai no palco para que apareçam os urubus, que desistem, pois encontram fruta no lugar de sangue, ainda verde antes do maduro espanto. Longe do matadouro, sua morte é o desperdício de um sonho. A queda chama os ursos em preto e branco, representação do frio que esgotou a chance. O vaqueiro pede um doutor, que deve existir no meio do público. Longe do curral e das cercas, o boi é quase humano. É alegoria em busca de medicina, que o ressuscita, como se a ciência oculta em cada olhar tivesse poder de cura.

O boi então volta num pulo para que surjam os personagens dessa coreografia de temperatura cíclica, de altos e baixos. Entra em cena a Maricota, ultimato feminino aos homens que fogem do compromisso - no momento, a dança, mais tarde, o casamento. E a Bernúncia, o monstro que devora a infância, que só se manifesta quando sente a ameaça. Todos viram brincantes, para que não suma pela goela do bicho a natureza que nos fez crianças.

Descobrimos que o boi bate o bumbo no coração exausto de mundo. Ele gera vento enquanto passa e revela uma vida fora das caixas de vidro. Os aparelhos eletrônicos são o curral que aprisiona todas as paisagens. Acostumados a ver em casa, sob o comando de botões, o que é mostrado como compromisso comercial ou ideológico, a população desperta agora junto com o boi e lamenta ter ficado tanto tempo longe do que é simples (e por isso foi negado) e profundo (e por isso sempre sobe à tona).

A dança das bonecas altas de olhos arregalados e a liberdade assustadora do boi inundam o desespero de quem nunca consegue ver o que está sempre disponível. As pessoas se entregam porque são seduzidas pelo que dizem ser apenas uma brincadeira. Mas se alguém decidir chorar por ter sintonizado a lágrima no avanço do boi sobre o fim de tarde, é sinal que algo mudou para sempre. Que força é essa que sobe para a borda dos olhos como um mistério, essa falta de nome para o que deveria ser reconhecido num relance?

Estávamos perdidos, meu boi. Estávamos certos de que nada mais poderia nos atingir. Fomos testemunhas de ondas gigantes, massacres de todos os tipos, crueldades sem fim. Olhávamos o mundo já sem emoção, a não ser aquela preparada pelos narradores emplumados, investidos de bezerros de ouro. Mas eis que você morre e ressuscita na minha frente e desata essas figuras que deveriam já estar enterradas. Mas elas estão mais vivas do que em qualquer outro final de ano.

Sou de um tempo, meu boi, em que meu pai, no último dia de dezembro, quando a meia-noite aparecia como uma constelação de fogos, tirava o revólver da cintura e descarregava o tambor no céu. Ele está matando o ano velho, dizia eu. E todos riam.

O tempo estava matando o que deixamos para trás. Mas você veio, meu boi, e sem machucar ninguém, nem ameaçar, nos levou junto para essa corporificação que lava, que nos livra do Mal e nos joga no redemoinho do que sabemos ser vida, e que tantos poderes insistem em transformar no fim dos tempos.

Não há tempo final se você consegue reviver, meu boi. Não há dor que resista à tua dança. Por isso entro na roda, obediente ao teu exemplo, seguindo o clarão da voz de um narrador. Bumba meu boi de mamão. Que o Verão promete, e nossa determinação, cumpre.

RETORNO - 1. A foto de Anderson Petroceli nos revela a belíssima pintura de Fulvio Pennacchi no teto da Catedral Sant'Ana, de Uruguaiana. A imagem nada tem a ver com o tema da crônica, é apenas minnha vontade de postá-la, já que ela me viu menino e me ajudou a crescer.2. José Renato de Faria diz que a descrição do jogo de bulita no meu romance Universo Baldio, vale o livro. Walter Galvani promete encontro em breve, aqui no janeirão. Cicero Galeno Lopes diz que pode contar comigo sempre. Marlon Assef, em Livramento, num calor de 37 graus, manda felicitações de Ano Novo.Tabajara Ruias chega de Porto Alegre a sua casa na Lagoa. ERm Porto, ele acaba de filmar, a la John Houston (dirigindo a cavalo) seu novo filme "O General e o Negrinho". Miguel Ramos me liga para me incentivar a continuar escrevendo a comédia que prometi para ele.

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