28 de fevereiro de 2006

O PAÍS EM RUÍNAS





Estou falando do Haiti, o país que usa corpos humanos para fazer barricadas de fogo ou deixa seus cadáveres na rua para o proveito dos porcos. O único país que perdeu em crescimento econômico para o Brasil em 2005. Impressionante a reportagem na Zero Hora de domingo, de autoria de Priscila Oliveira e Rodrigo Lopes, que descreve esses horrores e o sofrimento de alguns soldados brasileiros depois de terem servido no Haiti. Paranóia, delírio, depressão: os espíritos chegam em ruínas. A saúde mental foi trocada por um punhado de dólares, por obra deste governo que decide descansar numa praia da Marinha. Descansar de quê, meu Deus? De tanto gastar em marketing , como dizem as notícias sobre os recordes de inserção publicitária sustentada a peso de ouro, pelo suado esforço e trabalho do povo que o elegeu? Em decorrência dessa gastança, as pesquisas explodem em otimismo, enquanto o país travado fica à mercê do monopólio global, o que tudo provê: emoção, informação, carnaval, comunidade, tudo.

SAIA - Filas de mulheres levantam a saia e pedem para Mick Jaegger fazer um filho nelas. É o desespero total do país abandonado e entregue à sanha pirata. No concerto internacional das nações, o Brasil entra com a mulher. Uma coitada sobe no palco para beijar o Bono Vox e vira celebridade. Será este o destino do país continente, o que um dia foi soberano, o de servir de desfrute para as celebridades internacionais? E por que uma onda avassaladora de rock em pleno carnaval? Porque tem gente que não gosta de samba então o monopólio precisa ficar com toda a audiência, a população inteira na sua mão. E também não é bom arriscar: a música brasileira não é de confiança e pode trair as leis da ditadura e novamente virar-se contra ela. O importante é manter o samba eternamente pedindo passagem (não agüento mais esse refrão), e fazer da juventude gato e sapato, entupindo-a de porcarias. Ensino de música no primário (ou fundamental, vá lá), nunca mais. Você lembra a clave de sol? Nós desenhávamos esse símbolo em cadernos especiais, com linhas para que pudéssemos reproduzir as escalas e notas. Quando ligávamos o rádio, tudo se completava: todas as nações compareciam nas estações, não apenas a idiotia americana. Numa tarde dessas escutei, saindo de uma novela, o Al di lá, a clássica canção romântica italiana. Eles tiram a música de qualidade da programação e a vendem caro nas novelas. É o que fazem com a bossa em Belíssima.

RUMO - O Brasil perdeu o rumo e Marcos Sena, jogador brasileiro que jurou a bandeira espanhola (agora é moda) vai defender a seleção deles. Faz sentido. Não somos mais nada. Ligo a TV bem cedo e vejo umas tristes figuras fantasiadas de 14 Bis, o mais pesado do que ar que pela primeira vez decolou nas fuças de todo mundo. É triste ver que a invenção de um brasileiro virou alegoria enquanto os espertos gringos, que catapultaram umas madeiras, escondidos de todo mundo, tiveram a manha de registrar o feito como se fosse deles. Santos Dumont tinha outro projeto: a liberdade de cada um de ir e vir, de construir ou comprar seu próprio aparelho. Os irmãos wrong fizeram da invenção uma arma. Mas você não gosta de carnaval? Gosto. Não gosto é do que fizeram com ele. Soube uma vez que o Braguinha tinha 200 músicas na gaveta. O que fizeram? Não deram vez ao gênio, deixaram o cara com as suas clássicas composições e impediram que sua criação continuasse fluindo para o público. Depois de travarem Braguinha fizeram um concurso de marchinhas, verdadeiras porcarias que falavam em viagra e outras baixarias. É assim que eles são. Criminosos. Ninguém reclama porque eles são perigosos.

CONFRONTO - Você não concorda com o que fazem com o Brasil? Confronte os poderes. Eles estão acostumados ao nosso silêncio. Não tenha medo de ser chamado de patrioteiro, direitista, retrógrado. Cuide para não bater no peito em patriotadas. Apenas reivindique o direito de viver num país soberano. Um que não baixe as calças para o inimigo nem levante a saia para ganhar a vida.

RETORNO - Foto dos garotos excluídos na cidade milionária, de Marcelo Min.

26 de fevereiro de 2006

OMBROS DIURNOS DA LUA





Essa é a diferença entre a noite que nos revela e o dia que nos seqüestra. A civilização só existe quando há Lua. (Crônica publicada neste domingo, no caderno Donna DC, do Diário Catarinense).

Nei Duclós

A Lua flutua na manhã com sua túnica transparente caindo pelos ombros. É uma roupa formada pela neblina que o excesso de luz bordou ao redor, talvez para cobri-la diante do escândalo de aparecer assim, quando as estrelas já se despediram e o forro de veludo da noite sumiu de vista. Ela está acordada por algum motivo e pousa no algodão do ar com o rosto quase impassível. Noto que está transfigurada no céu sem nuvens.

Talvez, por ser de dia, nos ache estranhos, nós que a amamos tanto quando o denso forro da noite desce sobre os telhados. E nos enxergue andando penosamente numa civilização de metais, em meio a barulhos que jamais formam uma nota. Andamos de costas para essa presença estranha no limite do Verão inesquecível. Todos se voltam para algum objetivo, esquecidos da Lua, ainda embalada por algumas canções e seduzida pela capacidade que temos, sem o testemunho do Sol, de sermos de outra natureza, mais perto da criação.

Essa é a diferença entre a noite que nos revela e o dia que nos seqüestra. A civilização só existe quando há Lua. Ela se acostumou ao nosso lamento, ao olhar que lançamos, da varanda, para o brilho que emite. Acompanhamos seu vôo noturno, ocupados em tecer metáforas e compor memórias. Não somos nada disso quando acordamos. Ficamos dependurados em trens de carne exposta em fuligem, nos atropelamos pelas calçadas cada vez mais estreitas, avançamos sobre nossos semelhantes como se fôssemos uma tribo de bárbaros em fuga.

De costas para a Lua, nos amontoamos nos escritórios e tentamos tirar dos outros o que mais nos falta: o insumo da sobrevivência escassa, enquanto perdemos aos poucos o viço e somos acompanhados pelos moços, que olham penalizados o corpo exposto assim sem cerimônia.

Mas, trafegando pelo mundo insano, guardamos o que temos de luar. Por isso sentimos que ela vem nos visitar com imenso espanto. Ela não sabia que as criaturas poderiam um dia sair debaixo da sua saia. Que podíamos resgatar a princesa num pátio diurno e no dorso de um potro mau levá-la para o prazer que só existe nas nuvens.

Ela se diverte com isso, a Lua, mestra dos disfarces. Imaginava que tinha apenas a companhia consciente das bruxas, já que dos bêbados jamais levou a mínima fé. É fácil derrubar na calçada alguém cheio de álcool na cabeça, mas é preciso respeitar as donas dos caldeirões, as antigas senhoras com poderes sobrenaturais. No passeio no Sol a pino, a Lua disfarça a surpresa ao descobrir nas gentes o que imaginava ser apenas conversa jogada fora em serestas antigas. As pessoas são capazes de sair dos lençóis de linho para palmilhar o pó da ingratidão, nessa vida sem lua. De desviver, se é possível conjugar esse verbo, até o limite das preocupações.

Agora sabe que tudo pode acontecer na terra que ela enxerga a distância. Nesse espaço que roda diante de si, nessa terra misteriosa de olhos de água e tremores de fúria, há mais mistérios do que pode sonhar.

A aparição diurna é fruto dessa vontade de nos conhecer melhor, de decifrar nossos segredos. Mas ela é apenas a Lua, não uma divindade. É flagrada pelo impacto de um dia do Verão terminal e aparece assim, na sala de conferências, ainda tonta de sono, encantadora em magnífica vestimenta de festa que se estendeu até estrela Dalva. É a Imperatriz que irrompe nos negócios de Estado, colocando todos os homens de pé e as mulheres em breve reverência.

Ela flutua então de pés descalços, a Lua, esse soberbo encantamento que nenhuma palavra é capaz de descrever em sua totalidade. Nem mesmo a poesia, irmã gêmea, que diante dela se curva como se tivesse encontrado uma rainha, soberba em tirano esplendor. Sabemos apenas que ela, de dia, surge do nada e para o nada retorna, como se fosse mágica. Talvez, diante do susto que provoca, tenha recorrido a alguma maquiagem excessiva, que por ser feita de puro cristal, a limpou definitivamente do céu. Este, ermo de lua, volta a nos pertencer, como um presente devolvido no dia seguinte ao rompimento de um noivado.

RETORNO - 1. Marco Celso Viola me envia foto de 2004 em que aparecemos, junto com Paulo Markun, dando entrevista para a TVE do Rio Grande do Sul, na praça da Alfândega, em plena Feira do Livro. 2. Tabajara Ruas anuncia, na Zero Hora deste domingo, nossa parceria em dois livros: "Esperando John Wayne" e o primeiro volume da trilogia "Diogo e Diana na Ilha da Magia". Escrevemos essas obras em 2005, o Ano da Mudança.

25 de fevereiro de 2006

O CARNAVAL SEM SOBERANIA





O carnaval era a festa que precedia a quaresma, a data marcada para a alegria coletiva, que o povo transformou em transgressão e cultura. Num tempo de intensa sobriedade, o carnaval era a permissão antes do recolhimento, para que os atores sociais se expressassem sem as amarras que definiam identidades. A máscara é isso, uma nova identidade, que ao se produzir em massa, quando é a mesma fisionomia que faz sucesso, torna-se um ser coletivo, irmão do espírito de grupo. A troca de sexo (saída para as imposições familiares), a ocupação da rua (fim dos limites entre a passagem do séqüito real e a observação dos anônimos), a união dos blocos (representação da solidariedade perdida) e o ritmo que modifica o passo, que em dias normais é sempre igual, são as composições deste período que definiu o rosto do Brasil e cruzou todas as artes.

ENREDO - Fomos o carnaval quando havia soberania. O desfile das escolas de samba, tão estudados e criticados, foi a organização encontrada pelo Estado a partir de legítimas manifestações populares, para que o espontâneo encontrasse um lugar, a criação uma vitrina e o enredo um motivo. Até hoje essa intervenção é seguida, mas jamais da mesma forma. Vejam os sambas enredo deste ano. Com exceção do samba da Mangueira, nenhum (dos que eu vi na TV) possuem linguagem poética. São narrativas toscas, frases emendadas sem o brilho da metáfora, sem a força da originalidade, e completamente desvinculadas de suas origens. Quando haviam compositores nesse ramo, a história era outra. Por que não existem mais? Porque não existe mais o vínculo entre o povo soberano e a nação soberana. O que há são comunidades pressionadas pelos interesses mais vis, que deságuam nas estrelas da mídia ocupando a passarela que deveria pertencer aos excluídos e anônimos. O espaço do carnaval, como todo o resto, foi ocupado pelos donos do imaginário do país e o que temos é o luxo sem o berço da paz social. Há exceções. Escolas e carnavalescos conseguem, muitas vezes, mostrar algo de muito bom. Mas o que impera é a fraude e a maioria da nação bestializada diante da tela da TV.

GURU - A overdose de Ivete Sangalo ( a que investe sobre a platéia com os tratores da sua voz), o baticum sem as nuances do melhor do samba, a bateção monocórdia dos tambores, o esgoelamento dos falsos cantores, a rigidez das regras técnicas do desfile (com aqueles comentaristas!) fazem do carnaval brasileiro uma tristeza sem fim. Tem gente que se diverte e não são poucos. A juventude é imensa no país onde 27% dos jovens não trabalham nem estudam, conforme recente pesquisa, ou seja, não têm para onde voltar na quarta-feira de cinzas. Por isso a festa se estende indefinidamente, pois isso é bom para os anunciantes e para a mídia. O que se viu nesta véspera de carnaval, em que o país foi brindado com rock milionário subsidiado pelo dinheiro público, e que um vocalista se tornou uma espécie de guru das idéias prontas, é de lascar. Vi no Orkut falarem mal de Getúlio Vargas, que trouxe para cá o Orson Welles (Getúlio, claro, ditador, e Welles seria um folgado que veio zoar no Rio e acabou sendo responsável pela morte do jangadeiro; e não um dos maiores gênios do cinema em visita ao Brasil) . Pois bem, Lula apareceu ao lado do Bono Vox. Dá para comparar?

DEBATE - Tive recentemente uma experiência terrível num debate. As partes pudendas do desplante, a arrogância fundada na ignorância, o fio dental do obscurantismo investiram contra algumas palavras que eu disse. É o carnaval da ignomínia. É o retrato do país sem paradigma, solto, ao léu, como folha ao vento. É comum hoje acusarem as pessoas de velho, carrancudo e tudo o mais. Alegria se conquista. Não é uma imposição dos tempos, como se estivéssemos numa feira. Na cultura, a alegria é o prazer da criação e da recepção. Uma não existe sem a outra. Mas para que haja cultura, é preciso coragem. Se no lugar de te escutarem, te atacam, se usam tuas palavras contra ti é sinal que o país está roto e essa ruptura se espalha por todo o tecido social. Nada nos une nessa alucinação coletiva. E o que mais impressiona é a segurança com que dão conselhos, essas almas medíocres que se instalaram por todo o canto, deixando pouco espaço para quem tem algo a dizer. Quando abrem a guarda, cuidado, é apenas uma armadilha.

RETORNO - Em poucas semanas, meu trabalho acadêmico "Cultura, carnaval e cinzas", que está no meu site , teve mais de 400 acessos. O total é mais de mil acessos. É um fenômeno, pois deixou bem para trás o campeão até agora dos textos lidos, "A idéia de salvação da pátria nas memorialística militar". Ao mesmo tempo, li comentários, assinados por Raquel, sobre meus textos de homenagem a Pelé e Romário que me encheram a alma nesta épooca dura, em que estamos cercados de inimigos.

23 de fevereiro de 2006

QUANDO FALTA LUZ





A cidade fica toda escura e a casa é invadida por mãos cegas em busca de fósforos. Onde coloquei a vela? é a pergunta mais comum. Custa um pouco colocar ordem no mundo desconhecido que se instala com a escuridão completa que chega até o horizonte. Longe, atrás do monte, um clarão se vislumbra; mas para lá não fica o mar, o pampa? De onde vem a luminosidade? Será a esperança que se recolhe numa distância prudente, esperando que nós, os eternos pessimistas, possamos recuperar o que perdemos subitamente? Depois de xingarmos todas as estações de energia, todas as empresas que deveriam providenciar o que nos falta, depois de nos acostumar ao fato de que deveremos cruzar a madrugada sem poder ler um livro, ver o jogo, nos reunimos em silêncio na varanda para acumular nosso desconforto.

SURPRESA - As nuvens estão pesadas, prenunciando uma noite sem estrelas e uma lua oculta. Não perderemos muito, pois a fase é um passo além da minguante, quando a lua torta parece um pedaço de algo que foi arrancada com os dentes e jogada no cosmo sem dó. No abafo da nossa preocupação, eis que um risco de luz nos surpreende. Um vagalume! exclama alguém que estava de frente para a eternidade da noite. Há quanto tempo não vejo um? Eles estão sempre aí, nós é que não vemos devido às luz elétrica, observa outro. Vamos chegar perto do terreno baldio em frente, eles devem estar lá.

CORPO - É verdade. Coalhados como pequenos diamantes lapidados no fundo de uma cesta gigante, os vagalumes fazem sua assembléia perto do ninho dos quero-quero, os pássaros que expulsaram as corujas depois que a prefeitura multou o proprietário por não ter limpado o terreno. Raparam tudo e o resultado foi a ave sentinela se instalar, pois quero-quero é como o gaúcho: gosta de ver à distância, em território limpo, e anunciar quando chega alguém. Tu por aqui? Quando chegaste? E quando vais? Não te prenderam ainda? Mas engordaste, hem. O corpo humano é um acontecimento a ser punido nessa abertura sem fim permitida pelo descampado. Ninguém escapa do olho clínico num lugar feito para enxergar o inimigo. É por isso que a noite súbita, adensada pela falta de luz, ajuda a criar aquele ninho oculto, necessário para sobreviver. O que deslumbra é o rebanho de vagalumes voando em espiral diante de nosso rosto que fica imóvel para não assustar essas lanterninhas químicas, misteriosas por gerarem o que mais nos falta.

DESPERTAR - Levam um toco de vela para a varanda e a criança quer tocar na chama. Ela está feliz, sacudindo seu chocalho para fazer o ritmo necessário às canções que começam a brotar das gargantas. Cercada pelo escuro, seu rosto assustado aos poucos relaxa e já está sorrindo novamente, alimentando a algazarra. Mas a chama é um evento poderoso demais para ser deixado de lado. Ela pára de tocar seu instrumento e levanta um braço em direção ao fogo. Isso queima, não pode, avisam os adultos. Mas quem convence uma criança? Ela desperta o choro e só acalma quando fica bem em frente à vela acesa. As lágrimas ainda correm banhando seu novo sorriso diante de mais um acontecimento. Ela comenta tudo, com sua véspera de linguagem. Não tentem esconder a luz de quem desperta para a vida.

SOM - Não importa o black-out, há vagalumes. Não importa o horizonte incendiado, a chama está bem diante dos olhos. Não importa se a luz não voltará jamais. Temos nosso ritmo, que se manifesta junto com as canções eternas. A música está dentro de nós e em nenhum outro lugar. Basta puxar pela memória e tudo vem, aos jorros. Como podemos viver sem isso todos os dias? Como perdemos a pista da nossa sonoridade? A resposta vem quando a luz volta. Queremos ver quanto está o jogo. Perdemos o primeiro tempo, é o intervalo publicitário. Toca algo sofrível. Morre-se pelo ouvido. Tiramos o som da TV, ligamos o rádio. É pior.

SONHO - Sentimos então saudade da varanda escura, quando pudemos ver os vagalumes. A falta de energia é a nossa volta ao planeta Terra. Visita temporária, que acaba quando os carros novamente ousam ressuscitar, espantando os vagalumes reunidos em assembléia. O que há com os quero-quero? Por que não se insurgem contra essa traição? As aves do pampa estão recolhidas, atentas aos gaviões que espreitam em cima dos morros. Quando houver lua cheia novamente, será a guerra. É hora de fechar todas as janelas. E reinventar a penumbra, para que nossa alma aflore outra vez, ao som daquela canção que fala: a quietude é quase um sonho...

RETORNO - Foto das crianças em Porto da Barra, Salvador, por Helcio Toth.O artista se supera e sua imagem cabe como se fosse encomendada para o post de hoje: o humano movimento na contra-luz.

21 de fevereiro de 2006

O POVO EM SUA MAJESTADE





Povo é uma palavra-mundéu, no mesmo sentido dado por Euclides da Cunha em Os Sertões para a cidade de Canudos: toda vez que você investe na armadilha, é enredado por ela. Há várias arapucas. A primeira é erradicá-la da nossa identidade (brasileiros são os outros). A segunda é usá-la em benefício de interesses políticos e publicitários (o populismo, que é sempre de direita). A terceira é roubar seu crédito quando alguém legitimamente popular se destaca. Pelé, por exemplo, seria um ET vindo do espaço, como já foi dito pela crítica esportiva.

O povo atinge a majestade quando consegue fazer de suas origens o insumo para sua transcendência. Pelé nunca deixou de ser povo e tornou-se Rei, ungido pelo gênio de Nelson Rodrigues (em crônica selecionada na antologia de Ruy Castro, À sombra das chuteiras imortais) e a carreira inigualável. Mas toda pessoa longeva acumula esqueletos no armário. Faz parte da sobrevivência e da precariedade humana. Não se costuma perdoar a longevidade, nesta terra do eterno presente. Gênio bom é gênio morto. Mas o bom da majestade legítima é essa escassez provocada pelo humano. Torna maior aquele risco de luz que é sua vida terrena.


TALENTO - Pelé encarna o mito do Brasil soberano. Nascido e criado na Era Vargas, levou para os gramados o talento que floresceu na infância escudada em políticas públicas para a educação e o esporte. Construiu a técnica definitiva no embate físico com os adversários. E exibiu a grandeza do seu movimento, representado pelo corpo cinzelado pela perfeição. No futebol, o jogador pensa desde antes de receber a bola, disse uma vez Pelé para os americanos, ao explicar porque não poderia jogar o falso futebol deles, aquele que é um embate entre brutamontes e é interrompido em cada segundo graças à burrice da porrada. A inteligência de Pelé foi alimentada pelos olhos que saltavam das órbitas, e que lhe davam total visão de campo; a antevisão do lance, por conhecer as possibilidades permitidas e as condições dos outros jogadores e do gramado; e objetividade diante do gol, o momento supremo em que o planejamento rápido como a luz é coroado depois de um insight decisivo. Pelé alternava o levante sem bola com o toque magistral que deslocava o centro do drama. Pois não é a bola que está em destaque, mas a intenção das equipes. É o imaginário que comanda a ação e não o contrário. Por isso era imprevisível, pois assumia o risco do improviso bem plantado em sua força física e na capacidade de raciocinar. Pelé é o doutorado do futebol. Cada partida é uma tese comprovada e cada drible é um argumento sem contestação.

CHANCE - Pelé é a chance aproveitada e desenvolvida a partir de uma tragédia: a derrota do Brasil no final da Copa de 1950. Prometi dar uma campeonato do mundo para meu pai, que chorou naquele dia, disse Pelé. O anjo vingador nasceu dessa derrota e transformou o ímpeto numa vitoriosa campanha que colocou o Brasil no primeiro time da arte inventada na Inglaterra e transfigurada no Brasil. Falar de Pelé é chover no molhado, apesar de existirem dúvidas entre ele e Maradona. Este, no ranking mundial deve ocupar um lugar bem abaixo de Garrincha, Didi, Domingos da Guia, Romário e Nilton Santos. Não se trata de patriotada, mas de evidência. Hoje, até mesmo Pelé gosta de dizer que Ronaldinho Gaúcho é parecido com ele, e alguns arriscam ser o cracaço do Barcelona melhor do que o ídolo. Não é. Ronaldinho é o auge do futebol que restou depois da retirada do Rei. Talento, genialidade, sucesso, tudo isso faz parte de sua personalidade. Mas ele não tem a majestade, essa superação que uma biografia impecável revela, essa sintonia com a nação que foi grande. Pelé é o Brasil que encantou o mundo, Ronaldinho é o Brasil que mantém a tradição. Um é semente, o outro é fruto. A semente é eterna e por mais que o fruto sonhe, sempre trará dentro de si a majestade que o gerou.

SAL - Pelé é o povo que chegou à majestade. É uma criatura dialética, vinda de longe, parte de uma geração que invadiu a cidadela adversária pela primeira vez. O reino já estava posto quando vieram os outros a seguir. Mas ficou a originalidade do gesto que inventou o sonho. Não há, portanto, armadilha quando se fala de Pelé. Ele é o povo que provou ter a capacidade de gerar o mito. Por isso, por onde passa, as pessoas procuram tocá-lo. O Rei é a carne que se fez Verbo, numa inversão do ato divino da criação. Ele não é um deus, é a pessoa que, para sempre, estará de pé, suado, olhando para onde ninguém vê. Lá está a sorte que persegue, o dom de sua predestinação.

Pelé, mais de uma vez, fez a justa reverência a seus mestres, como Zizinho. Quando consegue uma bicicleta mortal, é o diamante lapidado pelo Brasil na luta que ainda não terminou: a de sermos novamente a nação que um dia construímos. Ainda melhor, carregando o sal de tantas décadas de dor.

19 de fevereiro de 2006

MEMÓRIAS DA LIBERDADE





Virou moda baixar as calças para a China. Depois de décadas sucatando indústrias de países pobres e vendendo a ilusão para os mercados subdesenvolvidos de terem acesso às grandes griffes, depois de imitar cada produto transformando tudo em quinquilharia descartável (como podemos ver em qualquer birosca), depois de invadir os países com seu gigantesco contrabando e pirataria (como não cansam de repetir os noticiários) e implantar máfias poderosas no varejo da parte indefesa do mundo (como atestam denúncias e prisões) , os chineses agora viraram coisa. Todos acham uma beleza.

O melhor da China é a oposição à ditadura, como atestam os maravilhosos filmes que a partir dos anos 90 encantaram o mundo e que produziu pelo menos uma grande estrela, a atriz Gong Li. Sua cultura antiga, seu pioneirismo em inúmeras invenções, da pólvora à impressão gráfica, são alvo de admiração. Mas isso não pode ser vir de álibi para essa contrafação que é uma ditadura que usa trabalho escravo competindo com países escravos. A última da China é que tirou do ar um blog, com a concordância do Bill Gates (é o que diz o noticiário). Vai ser assim: um dia vamos estudar esta época em que fomos livres na internet. Tudo vai virar documentário, igualzinho ao que temos hoje sobre os anos 60. Todos, claro, vão concluir que o sonho acabou. Dessa não nos livramos.

ORKUT - Entrei finalmente no Orkut e fiquei impressionado. Tirando as baixarias e idiotices, que existem em qualquer lugar, vi pelas comunidades que existe um enorme público, segmentado (como gosta a publicidade) discutindo de tudo. Em algumas entrei para aprender, como as de Pierre Bourdieu e Guy Debord. Em outras, para compartilhar informações, como as de João Gilberto, Kurosawa, David Lean e Tenentismo. E em outras por pura sintonia, como a que se dedica a curtir o Saint-Exupery. Existem espaços hilários como a que odeia o livro Vidas Secas. A meninada está com a razão. Empurrar Graciliano na flor da idade, obrigando a comer areia, é dose.

Acho Vidas Secas o máximo, mas descobri por mim mesmo, ninguém me indicou ou me obrigou a ler. É um livro para ser descoberto e não para ser imposto. Deveriam oferecer livros deliciosos de leitura, ou pelo menos oferecer um espectro mais amplo de leituras, não apenas os brasileiros. Levar pela mão os estudantes até Terra dos Homens (Saint Exupery), Moby Dick, Robinson Crusoé ou Monteiro Lobato é bem melhor do que impor pedreiras. Não se trata de facilitar a leitura, mas de jogar democraticamente com os estudantes. Eles chiam com razão e o Orkut é o fórum que precisa ser visitado pelos professores.

O que acho uma pena é que existem muitas boas idéias atiradas, sem atualização, comunidades abandonadas. Interagir é bom. O perigo é a facilidade das opiniões superficiais, das agressões. Mas no geral vejo que há um esforço para debater o que pega na cultura e no comportamento. E o que mais dá retorno são os anônimos que metem bronca contra os ídolos das comunidades, provocando reações em massa. O que não pode é resvalar para a agressão e para o perigo. Mas tenho prestado atenção no humor. A comunidade que defende o hábito que comer sanduíches antes de dormir é ótima. Serve para desintoxicar o excesso de informações metidas a corretas.

RETORNO - A foto deste post é a imagem de Gong Li. 2. A foto nova do blog foi tirada hoje, em casa. Mais apropriada à claridade do verão e às boas conversas na varanda em dia de chuva.

A CULPA GEOGRÁFICA




Funciona assim. Algo terrível acontece na tua cidade ou bairro, um assassinato, uma tragédia qualquer. Logo vem alguém e diz: viu? aconteceu lá na tua terra. És culpado por pertenceres a algum espaço geográfico. Foi lá em Ingleses (praia do norte de Floripa, onde moro), me disseram. Lá que um gaúcho fez isso ou aquilo. Conheces aquele estelionatário? Nasceu perto de onde moras. E por aí vai. Ser de algum lugar é altamente suspeito no mundo desenraizado. As pessoas se dividem entre os que são daqui (que detêm todas as virtudes) contra os que não são daqui (os que cometem todos os pecados). Isso é culpa dos turistas, costumo ouvir. Por que não vão trabalhar? Por que não voltam para lá? É um efeito bumerangue. Isso é coisa de mané da ilha, ouço seguidamente. Mão-de-obra catarina, cusp, é pior do que a potiguar.

Em Sampa, que é a mais tolerante cidade para os adventícios, o vício também se manifesta. As pessoas são de três tipos: os legítimos habitantes (italianos em sua maioria), os baianos (todos acima da divisa do estado) e os do Sul (tudo abaixo do rio Pinheiros é Porto Alegre). É a culpa geográfica. Coisa da tal federação, o país dividido em nações independentes limitados territorialmente, para melhor ser tragado pela pirataria de todas as nacionalidades.

PERDIDOS - Tentei ver Lost novamente e achei tudo uma grande bobagem. A tensão que existia entre os temas implícitos (os princípios da América) e explícitos (o tema clássico de civilizados perdidos numa ilha), escudados por bons roteiristas, foi tudo por água abaixo. Agora o que existe são falsos suspenses e me parece que os atores são bem piores do que eu imaginava. É o que dá analisar on line. Mas a visão que tive dos primeiros capítulos, positiva, permanece. Acho que a série sofre de culpa geográfica: esses americanos...

A desconfiança em relação aos que vem de fora se justifica. Morar numa cidade sem comunidade nem raízes, ficar à mercê do vento e das violências variadas, é bem pior do que tentar adaptar-se ao olho desconfiado dos nativos. No fim, é agradável ver que o motorista do caminhão de entrega é irmão da moça que está esperando o ônibus. O gesto mais comum em Floripa é um assobio de alguém dentro de um carro para outra pessoa fora dele. Seguido do assobio, vem um sinal de positivo. Bem melhor do que as caratonhas facinorosas que nos acompanham nas megalópoles, onde você não sabe de onde vem a baixaria.

CRIMES - Mas quando a dúvida se torna uma doença, fica um problemaço. Fechar-se em copas num lugar que tem tudo para se abrir em mil vetores, é uma atitude um pouco inútil. Pois um a cidade à beira mar é um convite aos migrantes. Chega gente de todo lugar. Todos querem vir para cá. Esses turistas...

O envolvimento de brasileiros com crimes no Exterior continua. Matam, morrem, vão para a cadeia. Culpa de pertencer ao país que não os absorve. Aposta numa vida melhor em outras terras, para sofrer o escárnio de não pertencer ao lugar que escolheram viver. Um país com tanta terra, dizia um uruguaio escandalizado na Uruguaiana dos anos 60. E não se entendem na reforma agrária. A freira americana assassinada a mando de grileiros é um exemplo. Ela não era daqui, era uma bisbilhoteira, se justificaram os assassinos. Por que interferir nos nossos negócios? Imaginavam que ficariam impunes, já que são virtuosos por serem daqui.

17 de fevereiro de 2006

EXCLUSÃO SEM CHORO NEM VELA





Está se formando um movimento nacional contra a exclusão das artes na mídia. No Comunique-se, a luta foi desencadeada pelo escritor e jornalista José Paulo Lanyi, que agora publica um texto meu sobre o mesmo tema. É o que reproduzo a seguir. No Comunique-se, onde o texto está na seção Em Pauta, vários colegas já se manifestaram. Para ilustrar, escolhi uma foto do Olhar Absoluto, Marcelo Min, que colocou seu talento a serviço dos excluídos.

Nei Duclós

Falar em exclusão é cair em inúmeras armadilhas. Primeiro, ceder à tentação de fazer um diagnóstico recorrente entre todos os grupos que se sentem prejudicados pela falta de atenção. Segundo, pagar o mico de se passar por uma pessoa dedicada às lamentações. Terceiro, correr o risco de cometer injustiças, atacando quem não deve ser atacado. A saída é usar um velho instrumento do jornalismo: focar o tema objetivamente, limpar a argumentação de qualquer síndrome e evitar ao máximo atirar no alvo errado. Em pratos limpos: vamos falar de exclusão, centrando fogo no boicote explícito à diversidade das manifestações do talento na mídia.

Quem trabalha em redação sabe: os veículos de comunicação, em geral, não gostam de arriscar em pessoas desconhecidas e por isso vivem ocupados com as mesmas personalidades. É um vício de marketing: você reitera o Mesmo, que pode ser rapidamente identificado. Há também um fator estratégico: destacar alguém desconhecido significa, num sistema de vasos comunicantes, insuflar o prestígio do jornalista ou do veículo em quem não tem ainda prestígio. É o famoso "colocar azeitona na empadinha alheia". E, o contrário, reportar alguém famoso é pegar carona na atenção que ele vai despertar entre os leitores. Esse é um sistema que pode ser enquadrado nos maus hábitos, mas não na falta de ética. O bicho pega quando há sistemática oposição a determinados artistas ou autores, as famosas listas negras que, como as listas que correm pelas CPIs, oficialmente não existem, mas que las hay, las hay.

O jornalismo que reporta fatos culturais costuma ocupar enormes espaços com alguns autores ou artistas eleitos. Como há um gargalo - a produção é muito maior do que o número de veículos importantes - o álibi é o chamado critério, que poderia ser sintoma de saúde se a seleção obedecesse à ética, mas torna-se doentia pelo excesso de repetição e pela má vontade mais de uma vez comprovada. O problema é que essa exclusão não se limita à mídia: num efeito dominó, os autores excluídos não são convidados para antologias, não fazem parte da percepção acadêmica e jamais são lembrados nas premiações.

Acho esse comportamento muito estranho pois, veterano na profissão, sempre me pautei pelo comportamento oposto. Um dia, na Folha de S. Paulo (final dos anos 70), descobri que os Novos Baianos estavam no Index. Resolvi perguntar: eram os proprietários da empresa, eram os jornalistas que ocupavam os cargos mais importantes, era alguém influente que interferia na pauta? Descobri que a proibição existia, mas não consegui identificar a fonte do anátema. Como ninguém vestiu a carapuça (esconderam-se diante do confronto?), fiz matéria sobre o grupo e depois mais outros textos. Lembro que acontecia o mesmo em relação ao Teatro Oficina, pelo menos naquela época logo depois da saída de Tarso de Castro. Fui num ensaio e o Zé Celso levou um susto: a Folha está aqui? Dei a matéria na primeira página da Ilustrada.

Na revista Senhor, de Mino Carta, publiquei um resenha enorme (de autoria de alguém que não lembro mais) sobre "As veias abertas da América Latina" , de Eduardo Galeano, que já era best-seller, mas não tinha merecido ainda a atenção da imprensa. Quem me sugeriu a pauta foi o Luiz Schwarz, então executivo da Brasiliense. Ainda na Ilustrada, achei estranho que ninguém entrevistava o Mario Chamie, poeta importantíssimo e intelectual de primeira linha, que tinha assumido o cargo de Secretário de Cultura do município de São Paulo. Era porque o prefeito era malufista, o Reinaldo de Barros. Dei uma capa na Ilustrada.

Hoje, tenho acesso às páginas do Diário Catarinense, onde divulguei autores como Marco Celso Viola, que publicou seu primeiro grande livro em 35 anos de ofício poético que mereceu algumas linhas de resenhistas tentando colocá-lo na gaveta dos anos 70. Em Porto Alegre, fui falar com o grande escritor J.A. Pio de Almeida, que escreveu pelo menos uma obra-prima, As Brasinas, feixe de pequenos contos sobre pessoas e vivência do pampa. Ele fez a edição do próprio bolso e jamais divulgaram o livro. Pio de Almeida, na visita que fiz à sua casa, lembrou que na época em que era secretário de redação do Correio do Povo, convivia diariamente com escritores que não saíam da sua sala. Hoje esses escritores têm fama e poder, mas esqueceram de Pio de Almeida, que é autor de poucos livros, a maioria de poesia e tem uma gaveta cheia, especialmente de suas crônicas, que por décadas publicou na imprensa gaúcha. Onde estão os editores de cultura, os repórteres, que não vão entrevistá-lo?

Como autor de quatro livros, dois deles publicados neste século por duas editoras importantes (Globo e Francis), que não mereceram nem uma nota na grande imprensa (com exceção da Istoé), me identifico plenamente com a crítica a esses maus costumes. Quando pedi para ler, no ano passado, um romance publicado em 1999 por uma pequena editora do Recife (Bagaço), fiquei abismado: o livro não tinha merecido qualquer referência na mídia. Consegui publicar a resenha no Rascunho e aproveitei a chance: como não houvera nenhuma manifestação, eu poderia afirmar que esse era o mais importante livro dos últimos vinte anos. Logo depois, foi publicado um ranking com os livros mais importantes da literatura brasileira dos últimos 15 anos. Claro, sem se referir a "Corações futuristas", de Urariano Mota, tema da minha resenha. Faz sentido. Tinham esquecido de rankear as publicações e tomaram providências antes que a exclusão fosse definitivamente rompida.

Uma das exclusões mais graníticas foi a de Tarso de Castro. Publiquei uma crônica no meu site, Cinco vezes Tarso de Castro, há alguns anos atrás. O texto emocionou o jornalista Jary Cardoso, que estava envolvido com o projeto de um livro sobre Tarso, que foi assumido de maneira brilhante por um dos seus filhos, Tom Cardoso. Tarso que é Tarso, que mudou a imprensa do país, foi jogado no limbo, o que resta para os outros? A exclusão é inumerável e tema importante para o debate.

Meu dignóstico: a fonte da exclusão são os interesses de grupos, encastelados na cultura, que é um fator de ascensão social, como lembrava diariamente o Plínio Marcos na Folha da época do Tarso; a exclusão se manifesta pela ocupação de vastos latifúndios na mídia, deixando de lado a diversidade do talento, que assim fica sufocado e não chega ao público; a exclusão cultural na mídia é uma representação de uma exclusão maior, provocado pela ditadura financeira, focada na superconcentração de renda; a situação está no limite, pois a Internet está fazendo água nesse cerco.

16 de fevereiro de 2006

PALAVRAS SÃO PEDRAS QUE ROLAM





Vi hoje matéria especial no Bom Dia, Brasil sobre os Rolling Stones. Misturava maio de 68 com a banda britânica. Os Stones são de 1966, dois anos antes. Maio de 68 é o que diz a palavra: o movimento operário (maio) foi decisivo para a paralisação de Paris. Foram dois vetores: esse, operário, sob liderança comunista, e outro, anarquista, das bandeiras negras, que veio da universidade e explodiu para as ruas, em luta frontal contra a polícia. O anarquismo sempre foi poderoso. Sua força vinha do século 19, mas tornou-se maior no século 20, especialmente nas grandes manifestações operárias (no Brasil, foi um arraso). Os comunistas foram a reboque.

O que define 68 é o movimento de massa, um evento da luta de classes, que pelas circunstâncias tornou-se o estopim de um fenômeno detectado brilhantemente por Guy Debord, o intelectual maldito que acabou se suicidando: o da sociedade do espetáculo. Diz Anselm Jappe: O " espetáculo" de que fala Debord vai muito além da onipresença dos meios de comunicação de massa, que representam somente o seu aspecto mais visível e mais superficial. Em 221 brilhantes teses de concisão aforística e com múltiplas alusões ocultas a autores conhecidos, Debord explica que o espetáculo é uma forma de sociedade em que a vida real é pobre e fragmentária, e os indivíduos são obrigados a contemplar e a consumir passivamente as imagens de tudo o que lhes falta em sua existência real.

Pixações de muro como é proibido proibir eram marginais às manifestações, mas na matéria da Globo tornou-se hegemônico. Cada um diz o que quer. Palavras são pedras que rolam.

Os anos 60 tornaram-se uma pedra no sapato das gerações seguintes. Tudo o que é importante e de vanguarda foi feito nos 60, não adianta nem chover no molhado. Com isso foi jogado na lama o espírito das novas gerações, catequizadas pela mídia obcecada (e equivocada) sobre o tema. A liberação dos costumes, que já existia desde o início do século 20, tornou-se uma espécie de Santo Graal dos textos midiáticos: tudo começou nos 60, como se aquela geração tivesse se apropriado da invenção da pólvora. Nada acontece pela movimentação dos astros. Planetas e estrelas rolam no espaço por um mistério insondável e não adianta colocar o magnetismo sideral como causa aquariana dos 60. O que houve foi uma confluência de eventos identificáveis, que geraram uma percepção diferente da História e do mundo. Uma percepção, não uma lei.

Quando escuto a meninada forçando a gíria, lembro como era confinado a pequenos grupos as palavras fora da ordem. Hoje só falam assim. Ninguém mais, das novas gerações, fala diferente, tá ligado? É impressionante. Notaram que o hahã (com agá aspirado) que segue as frases alheias como se fosse uma interjeição de concordância, ganhou nova densidade? Tem uma música própria, é uma espécie de c.q.d (como queríamos demonstrar). Serve para dizer: não só sei o que estás dizendo, como já sabia antes, só estou te dando uma chance. Hãhããmm!! (a interjeição sai pelo nariz).

15 de fevereiro de 2006

EXCLUSÃO E SEGUNDA CHANCE NA AMÉRICA




Lost é soma, assim como Married with children era confronto e Seinfeld desconstrução. Depois que Al Bundy e família destruíram a América babaca e Jerry e seus três amigos (um deles é mulher) jogaram fora os cacos do que sobrou, o doutor Jack e sua turma chegaram para trazer de volta o que mais a América precisa: seus fundamentos, princípios.

O que é um faroeste senão um personagem excluído por ter desperdiçado sua primeira chance, que chega sozinho na cidade para enfrentar seu destino? Shane, Django, Os Imperdoáveis. Exclusão e segunda chance são os temas recorrentes de Lost. Um grupo está excluído da civilização. Cada personagem é um outsider: a ex-presidiária, o golpista, o filho de pai alcoólatra, o filho de pai separado, a mãe solteira, o guitarrista fracassado, o caçador burocrata, o ex-soldado iraquiano. Este, Sayid, encontra Danielle, a francesa que está há 16 anos na ilha, também só e excluída. Ela não terá a segunda chance? A mulher que Sayid torturou e era sua colega de infância ainda está viva? Há esperança no caos?

Sim, e ela se chama espírito de grupo. E o grupo é feito do que há de mais diverso na América: negros, asiáticos, hispânicos, caucasianos, segundo a definição deles de povo, baseados na etnia do cavalo árabe. Todos precisam abrir mão de sua identidade em nome de algo maior, a sobrevivência (chama-se Estados Unidos) . Mas há uma armadilha: para romper a exclusão e ter direito a uma segunda chance, é preciso abrir mão da liberdade, do individualismo. Assim como Al Band não conseguia se desvencilhar da mulher, ou Seinfeld dos amigos, o grupo de Lost não tem outra alternativa do que compartilhar o mesmo espaço. É o retrato da era Bush, com soldado torturador iraquiano e tudo. Sabemos, pelas fotos, quem são os torturadores do Iraque, mas deixa para lá.

RETORNO - A imagem é do clássico Shane, de George Stevens, o faroeste inesquecível.

14 de fevereiro de 2006

A ÉTICA MIGRANTE EM LOST





Volto a Lost, porque a série melhora a cada capítulo. A arquitetura do roteiro, somado a interpretações convincentes, fazem com que os furos se tornem irrelevantes, ou, antes, se justapõem à trama principal sem ameaçá-la. No capítulo de ontem, ou melhor, desta madrugada, o tema foi a percepção equivocada sobre ética. Na mosca: temos hoje uma avalanche politicamente correta apropriada pelos aproveitadores de sempre, que seduzem os inocentes úteis para vilanizar pessoas que aparentam afundar-se no lodo.

CHANTAGEM - É o caso do personagem vivido pelo ator Josh Holloway, escroque convicto e suspeito de ter escondido o remédio salvador de uma sobrevivente que sofre de asma. Para confessar seu segredo, foi socado pelo pretenso herói (Matthew Fox) e torturado por um especialista da Guarda Republicana. Mas só entrega a verdade em troca de um beijo de Evangeline Lilly, que até aquele momento espera uma proposta amorosa do médico líder, enquanto é assediada pelo vilão. Mas este está amarrado a uma árvore. O que custa um beijo?

BEIJO - É talvez o pai dos beijos do novo século. Fruto inicial de uma chantagem, as bocas se aproximam pelo acordo prévio e acabam se incendiando pelo toque. A língua entra em cena como espuma resistente, feita de um estranho veludo de verão, molhado como corpo entregue à praia. Os lábios se encaixam num laboratório submerso, mas o destino, escravo do tempo, corta a cena num duelo de suspiros. O que começou como aversão evolui para a dúvida, e o que era apenas medo alcança a promessa de um prazer sobrevivente. Isso foi só o começo. Depois daquele beijo, o bandido confessa que não tem remédio nenhum, e está contando a verdade. Agüentou o espancamento e a tortura sem reagir porque não devia satisfações a ninguém e porque queria chegar no seu objeto de desejo. Sua confissão deixa o torturador ainda mais furioso. Na briga corporal, o vilão leva a pior e é ferido mortalmente. É salvo pelo doutor. Toda essa seqüência é trabalhada pelo flash back que define o personagem em foco.

GOLPE - Josh participou de um golpe contra um casal, mas desistiu na ultima hora quando descobriu que um filho de 12 anos presenciava a cena. Exatamente a sua idade no dia em que alguém idêntico destruiu sua família. Foi por isso que escreveu uma carta de vingança contra esse assassino desaparecido. Seu blefe: apresentou a carta à mulher como se fosse o destinatário da ameaça de morte, e não o autor. A mulher descobre farsa e ele então confessa: sim, escreveu aquela carta de vingança, mas acabou cometendo o mesmo erro que pretendia punir. " Eu me transformei no monstro que quis eliminar", diz, mentindo que se comportou da mesma maneira do que o seu algoz. Seu trunfo: tinha desistido do roubo, ou seja, está limpo. O capítulo assim mostra a ética de quem era considerado vilão, e o crime dos pretensos heróis que se tornaram carrascos de um inocente. A ética migra e uma sombra desce sobre a mulher fisgada pelo beijo.

RETORNO - Recebo mensagens da minha editora favorita, Helô Machado, que será personagem da série JK; do grande compositor e intérprete brasileiro, patrimônio cultural do Pará, Alcyr Guimarães (chorem com Canção Morena), que correu mundo junto com Sivuca ; e do músico portoalegrense Rogerio Ratner, que vai me entrevistar sobre os anos 70.

13 de fevereiro de 2006

A BOBAGEM SEGUNDO SINISTRUS JOE




O velho ermitão Sinistrus Joe não agüentou sua turnê pelo Brasil e voltou a morar na praia, numa tosca cabana, ao lado de um gigantesco menir, daqueles idênticos aos carregados pelo Obelix. Já está na ativa, rolando pelas ruas e atacando as caixas de lixo que contêm preciosidades como deliciosas sobras de refrigerante ou suco. Encontrei-o no seu canto favorito, em frente a um conjunto comercial e resolvi entrevistá-lo de novo.

- E aí, Joe, o que está pegando no país?
- O maior sucesso é a Daspu, diz, enquanto faz slurp numa das latas recolhidas na última meia hora.
- Por que será que todo mundo fala dessa griffe das prostitutas?
- Não sei, mas acho que o motivo é que todos decidiram gostar de uma grande bobagem. Pois o que vale não são os direitos das putas, mas o trocadilho. Desde a época do Pasquim que o trocadilho está erradicado do humor nacional, não pode mais, ou não podia. Daspu é uma libertação...
- ...dos costumes? pergunto, sério.
Joe não tem paciência com ninguém, muito menos comigo, que costumo atazaná-lo com perguntas.
- Não, a libertação da bobagem, acabo de dizer, não escutou? A bobagem é realmente libertadora. Slurp.
Olhei para ele. Esta sorvendo sofregamente, num calor ardido, véspera de chuva, um resto de coca light, que deve ser o pior purgante do mundo.
- Coca light está na moda, o Lula emagreceu dez quilos só nisso, slurp, disse Joe, adivinhando meus pensamentos (eu fazia uma cara bem explícita do meu desagrado).

- Daspu vale então porque é um trocadilho com a Daslu? Não seria apenas ressentimento contra o desperdício e a ostentação dos milionários?
- Nada disso. É só pela bobagem.
- Mas este país só tem bobagem, Joe. Acho tua explicação precária.
- É que você perdeu a capacidade de pensar. O que mais o Brasil sente falta hoje é de bobagem. O que tem é corrupção, sacanagem, violência, esperteza, mentiras, miséria. Falta o quê?
- Didi, Mocó e Zacarias?
- Não, esses já são o sintoma da decadência. Falta aquela força que fazia uma anedota ser conhecida em todo o Brasil em poucos dias, sem nunca ter sido dita na rádio ou no teatro. Falta esse rio (e quando dizia rio, Joe jogava o braço estendido com a mão espalmada) que te dava segurança de que estávamos no país certo.
- Mas Daspu é um trocadilho infame.
- Todo trocadilho é infame. Mas não defendo o trocadilho, vê se me escuta. Defendo essa permeabilidade (quando dizia essa palavra difícil, o mendigo ermitão torcia todos os dedos ao mesmo tempo), que nos identificava como nação.
- Você é saudosista, Jose?
- Não, bobalhão. Não sou saudosista. Daspu foi criado no século passado?
- Não.
- Foi uma piada do Oscarito?
- Não.
- Saiu no Reco-Reco, Bolão e Azeitona? Então não sou saudosista. Por mim, acho prostituição um crime. Falta de sexo é pura repressão. Eles reprimem o sexo para poder vendê-lo. Ou facilitam até o osso para ter todo mundo na mão. Mas que Daspu é engraçado, é. Até já bolei...
- O que tem de engraçado...
- Não interrompa minha frase no meio, mas que mania!
Deu um berro na palavra mania e me assustei. Quis ir embora, mas ele ficou me olhando daquele jeito. Jamais me perdoaria se eu o deixasse no meio de uma frase.
- O que você bolou, Joe?
Sinistrus aos poucos voltou a si. Talvez tivesse imaginado reagir de alguma forma, mas jamais soube de nada violento dele, e isso que o conheço há décadas.
- Bolei um canal pago de TV exclusivo sobre e para prostitutas.
- Qual seria o nome do canal?
- Não interessa...ou melhor, não pensei. Bolei apenas a grade de programas.
- E quais seriam?
- Programa de auditório com gincana entre as garotas, Disputa; programa de debate político, Deputando; programa de informática, Input; programa de depoimentos das presidiárias que faziam a vida, Carandipu; moda gay, Dascu; programa policial, Kaput; infantil, Histórias da Tia Putinha; teen, Putz...
- Ninguém usa mais Putz, interrompi.

Sinistrus Joe desta vez nem me olhou. Desistiu. Juntou seus cacarecos e se foi, meio curvado, a barba muito branca, ele todo muito magro. De vez em quando parava e se sacudia todo. Estava rindo. Teria encontrado o nome do canal? Ou o do programa de receitas?

12 de fevereiro de 2006

OS NENÉNS DA ERA JK




JK é um fenômeno. Foi só assumir a presidência para haver um baby bomm de gênios. Como se sabe, todos os que brilharam durante seu governo nasceram no dia da sua posse. Assim, como apenas três anos Pelé foi campeão do mundo, João Gilberto e Tom Jobim lançaram a bossa nova, engatinhando o Nelson Pereira dos Santos lançou as bases do Cinema Novo e a arquitetura moderna brasileira, que jamais começou com o prédio do Ministério do MEC da era Vargas, mas em Brasilia, foi uma explosão precoce que até hoje assombra o mundo. Todos esses incríveis eventos foram obra de JK e não, como se sabe, de Vargas, que preparou a cama para quem o sucedeu.

LOTT - A série JK da Globo é absolutamente inacreditável. Numa cena, o Marechal Lott (o militar que garantiu a posse do presdidente, colocando tropa na rua contra a direita golpista) aparece dando conselhos a JK e recebe o troco: não podemos reprimir os estudantes, diz José Wilker, com todo o jeitão de Giovanni Improta. Lott então faz algumas reverências concordando. Isso é um acinte. O marechal Lott é uma das glórias das Forças Armadas brasileiras. Foi candidato derrotado à presidência nas eleições seguintes, perdendo para o populismo de Jânio Quadros. Era um homem de brio e de honra e jamais fez salamaleques para ninguém. E colocar a advertência civil a um militar sobre os estudantes é um anacronismo, pois é como se fosse a atual ditadura civil, travestida de democrata, dando dicas aos militares para se comprortarem. É de vomitar. Quem eles pensam que são?

SOFÁ - A pior palavra da mídia hoje é " glamúr". A série JK está cheia desse glamúr, como se a política brasileira fosse uma festa de debutantes ou um pilequinho de madames. E está cheio de velho comedor de moça, como acontece sempre nas produções globais. Parece um eterno teste do sofá. Hasta quando, Catilina?

10 de fevereiro de 2006

LOST SUBVERTE O TRAÇO


A Globo ficou surpresa com o Ibope da série Lost, exibida já no território do Programador do Traço, aquele sujeito que espera todo mundo dormir para só então colocar no ar alguma coisa que preste. Desta vez o pessoal ficou de olho grudado na tela. Meu dentista diz que dorme agora só quatro horas, mas não perde um capítulo. Já vi três e achei bom. Pode piorar, mas talvez não. O tema é uma situação literária clássica, o de pessoas civilizadas repentinamente cortadas dos seus laços materiais e sociais. Tudo sob a ótica do Círculo de Giz da América, o território virtual que funciona como uma jaula mental e do qual nenhum americano consegue escapar, seja ele quem for.

LÍDER - O desastre que foca um protagonista cada vez é também algo já explorado no cinema, mas como vivemos a época de refilmagens e reprises, agradecemos o fato de uma série aproveitar pelo menos algumas boas idéias. Achei mais significativo o capítulo sobre o líder. É a velha obsessão de winners e loosers. O filho de um perdedor se recusa a assumir seu papel de líder, reivindicado pelos outros náufragos. Mas existe um guru oculto no grupo, o cara da faca, o falso coronel que precisou provar que não era uma ilusão sua vontade de viver num ambiente hostil e sair-se bem dela. Por ter sido feliz no seu rito de passagem (conseguiu matar o porco selvagem que assustava a todos e era necessário para a alimentação) ele se torna uma espécie de conselheiro que jamais reivindica o crédito. É ele quem estimula o médico a assumir a liderança e assim passar por cima das caraminholas colocadas na cabeça do filho pelo pai alcoólatra. O desfecho do episódio tem aquela filosofia barata que encanta a narrativa recorrente dos gringos: precisamos nos unir, acabou o individualismo, estamos numa situação terminal, vamos resgatar os princípios sagrados da América. Caras significativas. Olhares para o infinito. O truque sempre funciona.

CONFLITOS - A porção étnica da América é representada pelo casal coreano e os dois negros, pai e filho que viviam separados. Não é de espantar que o avião tenha caído: cada um levava uma carga pesada nos ombros. O médico carregava o caixão do pai, a coreana queria fugir do marido mas não conseguiu e por isso embarcou, o pai não conhecia o filho e viajava a primeira vez com ele, o coronel era zombado pelos colegas jovens do trabalho e assim por diante. Há um drogado, um obeso, uma grávida, um aproveitador, intensificando assim a carga de conflitos que movimentam a trama. Os temas pontuais emergem com força: a submissão da mulher (você tem certeza que quer fugir dele? pergunta a amiga) , a dependência (é melhor me devolver agora o que você tem no bolso, diz o coronel para o jovem guitarrista), o assédio (suas pernas são muito finas, diz o espertinho para a loira), a exclusão (ninguém me olha nos olhos, diz a grávida). Há decisões do roteiro providenciais: o líder encontra uma cascata de água potável, a ilha tem recursos de alimentação, há uma barreira magnética impedindo a comunicação e todos mantêm sua aparência civilizada. Essa é uma ajuda da produção, famosa nos filmes americanos, desde a época em que as estrelas cruzavam o deserto sem perder o prumo do penteado. É uma obrigação: o cidadão americano jamais pode deixar de aparentar o que é. Ele vive numa civilização de aparências, de representações.

LIMBO - "Para mim, acho todos já morreram" , diz meu dentista. "Eles estão no limbo, decidindo se vão para o céu ou inferno. Mas isso não saberemos, pois a série já está no segundo ano e nem sinal de ajuda". O que atrapalha são as coisas assombrosas sugeridas por algumas caras de espanto. É o velho medo da América diante da natureza. Por temerem as matas é que destruíram tudo o que tinham. Eles acham que monstros se escondem nas plantas. Mas a série, pelo menos, dá para ver. Já é alguma coisa, para quem gosta de TV e acaba sempre desligando quando as opções são Hebe, Galisteu, Gilberto Barros, novela e outras coisas terríveis.

8 de fevereiro de 2006

JOÃO GILBERTO, O ESPLENDOR DA FALA


Nei Duclós

Ser contemporâneo de João Gilberto é pura armadilha. Corremos o risco de nos enredar nas palavras que inventaram para ele, que todos conhecem e não é prudente lembrar. Para escapar da arapuca, é preciso vê-lo na ultra-densidade da sua transcendência. Pois não há criador mais completo na sua obra, mais coerente na sua trajetória, mais louco na sua obsessão, mais profundo na sua originalidade, mais irritante na sua teimosia.

Ele é só isso, como o baião, e exatamente por isso torna-se maior do que o universo armado pela voz e o violão. Ao mesmo tempo, a esses dois instrumentos se reporta o tempo todo, pois eles representam, encarnam e projetam a verdade que deveria nos acompanhar sempre: a de que somos eternos, conscientes desde o início dos tempos e temos sempre a chance de voltar a esse brilho, que ao escutar, conhece.

João Gilberto se presta ao exagero: a única coisa que lhe faz sombra é o silêncio, chão que palmilha devagar, com o passo que inventou nesta terra sem sentido e neste país assassinado. E se temos hoje uma língua, é porque João Gilberto resgatou-a, reinventando cada sílaba, pronunciando cada palavra, como um instaurador de milagres, e um fundador que não se contenta em apenas descobrir, mas cavar e levantar a estrutura completa de uma nação que hoje mora dentro de nós.

Por isso é insuportável, pois para existirmos precisamos nos calar diante dele. Não podemos nos dar o luxo de emitir qualquer ruído, vício que hoje nos corrompe e mata. João Gilberto exige o silêncio para que possamos notar não a música, nem suas vestimentas, como harmonia ou ritmo. Notar no sentido de reconhecer a nota, saber onde ela se encontra, o que ela faz, a quem se refere e porque existe por si só, vibrando por ser filha do infinito. Se notarmos, estaremos salvos porque aprenderemos a existir fora da brutalidade sonora que são as barras da jaula. Seremos livres, não porque veio o salvador, mas porque notamos o que nos falta. Assim, podemos chegar ao outro lado do rio da morte sem pagar tributo para o barqueiro sinistro.

É crime, portanto, achar que você pode fazer ruído quando João Gilberto está em ação, emitindo o caldo original de uma cultura, a expressão mais elevada desta meta-raça brasileira, como queria Gilberto Freyre, definida pela vivência, a geografia, a mistura, a diversidade. Não se põe João Gilberto ao entardecer para ver o tempo passar, mas para vislumbrar essa porta entre os mundos, como queria Juan Mattus, em que temos um pé na miséria e outro no mistério.

O que ele faz não precisa de nada, nem do estalar de dedos, nem dos conceitos sobre jazz ou samba. Não tilinte copos ou bata caixa de fósforos, nem pertença a qualquer religião sonora conhecida. Por se vergar ao alicerce, por se dedicar à coluna mestra, por se circunscrever ao quintal, João Gilberto atingiu a essência. Desse pequeno asteróide armou a flor da sua conversa.

Ao nos calar, descobrimos o anjo inventado pelo ouvido absoluto. Há um silencioso ruflar de asas por trás de cada fala dita pelo criador. Esse esplendor toma conta de um espaço concreto, como uma abóbada, como se a arquitetura se revoltasse contra as formas e decidisse viver apenas desse banquete mínimo, que vem de uma fonte infinita e parte para outra, idêntica, como pássaros tontos salvos pela busca do Eldorado.

Devemos sair desse recinto sem mexer a cadeira, para não despertar o escândalo. Devemos sumir de vista, para que só exista esse escutar contínuo. Que de repente se fecha como um casulo, se recolhe como um rochedo na gruta. É enfim o silêncio, mas modificado: agora, depois de ouvir João Gilberto, sabemos quem somos e podemos contemplar a quietude sem nos desesperar. Não precisamos de barulho para dizer a que viemos. Temos João Gilberto, que está entre nós, como um irmão poderoso, uma visita noturna, uma refeição vespertina. De manhã, dormimos o sono solto da boa aventurança, pois há um sino modificado em cada momento, que desfez o metal reiventando a pomba.

Somos o país articulado pelo esplendor da fala de João Gilberto, que dispensa palavras, por tê-las sempre ao redor como um coro de crianças.

TODOS OS DIAS EU DIGO

















Nei Duclós

Todos os dias eu digo:
escreverei um poema
Todos os dias eu falho
escrevo acontecimentos

O poema é a notícia
que não veio
que ficou no meio
censurada pelo tempo
(pela caneta
de um funcionário alheio)

Pois o tempo é exigente
e exerce o medo
como um cão no jardim
de olho azedo

Todos os dias eu pulo
no quintal seco
e sou mordido no ventre
(lugar onde o vento
não chega)

De mim nascerá um filho
talvez eu mesmo
que não morrerá tão cedo

Até lá
mil gerações
tombarão antes do tempo
(a eternidade não tem
a pressa que eu tenho)

RETORNO - 1. Poema publicado no meu livro Outubro (IEL/A Nação, 1975). O original foi escrito numa máquina Reminghton, numa lauda de jornal, numa redação, bem no início do expediente.2. A imagem é a de um anúncio publicitário do artista completo Fulvio Pennacchi.

5 de fevereiro de 2006

QUEREMOS O BRASIL SOBERANO




Lula lança o slogan "o biodiesel é nosso", clonado da memorável campanha popular e vitoriosa dos anos 50 a favor do petróleo. Alguns de seus adeptos arriscam reviver o queremismo, como se Lula estivesse se comportando como Vargas, que teria uma relação dúbia diante da sua possibilidade de candidatar-se em 1945. Toda ação do grande estadista é vestida de roupas sinistras pelos capachos da atual ditadura. Destruíram o trabalhismo em décadas de calúnias, destacando a esperteza em detrimento da genialidade política. Agora clonam a imagem que fazem do presidente maior. Como tudo o que dizem de Vargas é mentira, é preciso revisitar o queremismo, que tem dois momentos: um, na fonte, na campanha de 1929, e outro, oficial, em 1945/6, depois que derrubaram Getúlio com um golpe de estado para começar a entregar o país que tinha zerado sua dívida externa na Segunda Guerra.

HISTÓRIA - Você não pode tomar partido se não estudar História. O grande estadista candidatou-se à presidência da República em 1929, levado pela Aliança Liberal, uma união de forças que tentava reverter, pelo voto, o estado ditatorial da República Velha. Getúlio rompeu o acordo de cavalheiros que existia até então. Era o seguinte. Nenhum candidato poderia fazer campanha no território do adversário. A Federação, a divisão do país em estados-nação independentes (cada um com sua bandeira) obra do reino de Portugal, especialmente depois da revolução do Porto de 1820, não permitia. Nas suas "Memórias de Um Burguês Progressista", Paulo Nogueira Filho mostra como foi a chegada de Getúlio em São Paulo, nicho do seu adversário, Julio Prestes. "Queremos Getúlio", gritava a multidão. Getúlio também inovou ao falar para o povo em praça pública, ao contrário da prática de ler textos burocráticos em ágapes partidários organizados por uma elite vestida à européia. Seu discurso foi um assombro, mas a manipulação do voto derrotou-os nas eleições. Ou seja, a democracia fajuta dos donos do poder não permitia que uma dissidência vencesse e isso foi sua ruína. O povo encheu a praça para aclamar seu candidato, e depois, o revolucionário vitorioso.

RAPINA - O segundo queremismo surgiu quando Vargas foi derrubado do poder em 1945 (pela mão pesada dos americanos vitoriosos na Segunda Guerra). Foi um golpe militar, açulado pela direita que se apropriou do discurso democrático. O governo de Getúlio defendeu a democracia de armas na mão ao enviar nossos bravos para o front (não como hoje, quando enviamos nossas tropas para fazer papel de política e defender a intervenção americana no Haiti). A cobra fumou, mas a vitória brasileira foi transformada em derrota política do governo. Marcaram então as eleições. Nessas, Getúlio foi candidato a senador por vários estados e venceu. Escolheu para representar São Paulo. Foi nessa condição que ficou recolhido por cinco anos até voltar numa consagradora vitória em 1950, pelo voto direto, sem nenhum apoio da imprensa. Getúlio não foi imediatamente candidato porque era um estadista responsável, e sabia que seu nome para o cargo máximo da nação iria colocar tudo a perder. Mas foi também vitorioso pois indicou o Marechal Dutra. Pena que Dutra governou sob a guarda da reacionária UDN e aceitou o pagamento da dívida externa dos gringos (sim, os Estados Unidos, naquela época, nos deviam) com quinquilharias da pseudo modernidade que invadiram o país. O queremismo tinha ampla aceitação popular e não é como agora, em que meia dúzia de puxa-sacos, de olho no butim, pressionam Lula a aceitar a campanha da reeleição. Lula faz tudo para reeleger-se. Tem um compromisso com a gang que subiu com ele ao poder. Fará tudo para enganar o povo, especialmente tungar o patrimônio da Era Vargas, coisa que todos eles fazem, chacais que são, aves de rapina do Brasil que foi um dia soberano.

PODER - Você não peita a ditadura apenas com palavras. Ela é poderosa e está em todo lugar, roubando tudo. Se você quiser atacar um dos seus pontos, a cultura, por exemplo, precisa ver o entorno, de onde vem a violência que exclui artistas e autores. Vem da grana preta que se rouba do país.É por isso que a mídia fica à mercê dos escritores falsos, do enfoque único, da mediocridade reinante. Ou você peita os donos do dinheiro, ou deixa os bobalhões que expressam o atual estado de coisas em paz. O cara que te exclui num grande jornal faz o jogo da ditadura implantada na tunga ao tesouro nacional. Faz conscientemente ou não, mas faz. É a guerra. Quem está preparado?

ESPECIAL: O MAIS! E TUDO O MAIS

Antes de comentar artigo do caderno Mais!, da Folha, me deparei com a notícia na Folha On Line de que morreram três mulheres e 46 pessoas ficaram feridas numa sessão de autógrafos da banda mexicana RBD em São Paulo. O evento era patrocinado pelos supermercados Extra, a gravadora EMI e o SBT, que leva ao ar novela mexicana que tem os atores como integrantes da banda. A prefeitura diz que não liberou o evento (por que então foi realizado?) . São todos culpados: televisão, gravadora, supermercado, prefeitura. Jogam lixo para cima do povo, exploram sua boa fé, estimulam os hormônios da juventude com porcaria para faturar em cima e provocam uma tragédia. Chega de porcaria na TV e na música. Chega de a arte ser reduzida à expressão dos países baixos. Chega de usar a palavra liberdade para incentivar o obscurantismo.

Mas vamos ao Mais!, essa raridade na imprensa brasileira. O bom é que podemos nos banquetear com o acervo poublicado e ainda implicar com vários aspectos do seu conteúdo. O sociólogo alemão Robert Kurtz, por exemplo, desconstrói no artigo "O Triângulo de Cartas" as pretensões do côco-bicho Chavez, que estaria tentando formar aliança anti-imperialista junto com o Irã, a China e a Russia. Bobagem, diz Kurz, todos esses países estão sob a guarda da economia americana e globalizada. Kurz fala da China como o Diário da Fonte fala da China: é obra americana para inundar os países pobres da América Latina com produtos idiotas e acabar com a industrialização restante nessas nações.

Kurz erra ao achar que o problema está no nacionalismo de Chavez. Não serve para o Brasil. Nós precisamos ser nacionalistas, pois temos tudo, não precisamos de ninguém. Kurz, marxista brilhante, aposta no fim dos estados nacionais, mas está bem protegido pela sua Alemanha soberana. Ou será que ele pensa que teria a liberdade que tem se fosse apenas apoiado pelo pensamento internacionalista? Ele tem identidade, passaporte, formação alemãs. Para que falar mal de estados nacionais? Viva a nação e o nacionalismo. E abaixo o obscurantismo, o direitismo nazista e anti-semita denunciado por Kurz. Mas só o que ele escreve sobre a China já vale a leitura.

RETORNO - O Livro de Visitas do meu site está temporariamente desativado por ter ficado sob fogo cerrado dos spammers, que enviam automaticamente mensagens amigáveis para encher o saco e destruir alguma coisa tua. A liberdade da internet é usada pelos ditadores da sacanagem.

2 de fevereiro de 2006

O CACHORRO MORDE A LUA


Você se esforça, mas não consegue evitar. O ruído das bandas nacionais pop/rock chegam até a sua paciência. Mão para cima! grita um vocalista. Agora aquela banda do norte, diz o apresentador. E esta então aqui do centro. E vamos à do sul. É tudo o mesmo som. Passei em frente ao terreno baldio, chamado de parque, do Planeta Atlântida aqui em Floripa, que juntou todas essas nulidades que, por motivos misteriosos, fazem multidões ficarem de mãos ao alto. Tem lixo até hoje lá, ainda não recolhido. Um ciclista pobre solitário percorria os sacos reservados para a coleta. Dias e dias dois pobres xirus ficaram juntando quantidades de porcarias acumuladas no berreiro cacifado por grandes anunciantes. Tento achar normal, mas não consigo. A idiotia é o cachorro mordendo a lua. Não deveria alcançar, mas consegue fazer um estrago medonho.

BRASIL GRANDE - O governo cumpre o que prometeu: está gastando como nunca. Acabou o arrocho. Recebo encarte colorido sobre os feitos de Lula. Pela Internet, pps ufanista libera a porção meu Brasil eu te amo pela rede. Vai ver estão com a razão. O Brasil é mesmo o máximo. Tornou-se o Brasil Grande. Ninguém segura este país. Ame-o ou deixe-o. Nossa democracia é imbatível. Nossa Petrobrás é integralmente brasileira. Nossa tecnologia é de ponta de faca. Nossos craques vão detonar na Alemanha. Já detonam (em campanha bilionária) no banco, imaginem em campo. Quase cem por cento da meninada está nas escolas. O que vemos nas ruas é pura ilusão. Todo mundo está empregado e quem não está tem negócio próprio. Mercadoria chinesa é que não falta. É moda baixar as calças para a China. A ditadura chinesa tirou um blog do ar e Bill Gates aceitou. Liberdade na rede é o sonho que vai acabar? Ou já está acabando e não sabemos ainda?

COOL - Aos poucos, as novas safras de pseudo escritores, exaustos de tanto aparecer na mídia que entroniza o Mesmo, assestam suas baterias contra os grandes escritores do passado. É moda achar que Machado de Assis, bem, nem foi tão bom quando inventou Capitu, entre outras coisas. Funciona assim: eles enchem o saco com a Capitu, como se fosse a única personagem da obra de Machado e depois começam a cagar em cima. Duas armas são infalíveis: o ressentimento da mediocridade, que não consegue criar algo que preste, e o espaço disponível. Érico Verissimo já está no papo: é apenas um contador de histórias. Ter escrito algumas obras primas não vale. Ele sabia contar uma história, vejam que fenômeno. O Rio Grande do Sul foi erradicado pelo bom mocismo dos provincianos das cidades maiores (as cagalópoles) que nos chamam de regionais. Assim como os americanos vêem os brasileiros como macacos, a cultura bem fornida enxerga o Rio Grande como algo xucro, confinado em suas estepes pampeiras. Sorte que temos por aqui alemães e italianos, que assim fornecem boas pautas para a mídia viciada no Mesmo.

BRASINAS - Meu filho não era americano, chora a mãe, tardiamente, que perdeu o filho brasileiro no Iraque. Era mariner, ganhava em dólar. O Império compra a tua vida. Te paga por mês. Te envia para a morte. Te manda de volta num saco plástico. É como negro ou chicano em filme gringo: bom para morrer. Acaba sempre morrendo. É o destino dos coadjuvantes. Gaúcho escreve? Deve ser alguma história de bárbaros. Aí você pega As Brasinas, obra prima de J. A. Pio de Almeida, que existe numa edição sumida do autor, e vê lá os espíritos, os sumidouros, a grandeza do humano no ermo absoluto, como toda grande literatura universal que se preze. Alguém vai lá entrevistá-lo? Não, preferem dar páginas e páginas de sub-escritores cool, sentadinhos em seus pisos encerados de suas bibliotecas herdadas do papai. Ou então sentam no colo de escritores de mentira, inventados para satisfazer a sede da idiotia, como denuncia Urariano Mota no La Insígnia. Cachorros mordem a lua. A cultura minguante do país exangue.

RETORNO - O barco detonado acompanha a margem da Argentina, em mais outra foto sobre o rio Uruguai de Anderson Petroceli.