30 de maio de 2006

CINEMA DE EXTERMÍNIO





Vejo um filme atrás do outro. A reflexão se atropela junto com as imagens de O pianista, de Roman Polanki, com Adrien Brody, que é sobre invasão e resistência na Polônia, mais do que sobre judeus (não há Bar Mitzvah, nem sabat, nem rabinos nesta obra-prima que faz chorar as pedras); de Dogville, o celebrado cult com Nicole Kidman, de Lars von Triers, que descobre a crueldade na pacata cidade imaginária de portas invisíveis do interior dos Estados Unidos; e 21 gramas, do mexicano Alejandro González-Iñárritu, com Sean Penn, Benicio Del Toro e Naomi Watts, que acompanha o destino de pessoas terminais na mais radical edição de uma obra cinematográfica, que procura enterrar para sempre a narrativa linear e bem comportada. Há outros, mas esses três definem um cinema de extermínio, que não cuida só do passado (Polanski), ou da América (von Triers) ou da vida dos outros ( Iñárruti). Mas da armadilha da vida deste início de século, em que as populações são jogadas dentro de uma favela sob os ditames da lei do cão e em que a única resistência é a arte e a chance maior de sobrevivência fica nas mãos do acaso.

ACENO - Não há pessimismo ou otimismo, apenas constatação feita com uma sobriedade que não passa para as festas de lançamento. Há duas realidades: a dos filmes e a dos eventos. A chuva de festivais e prêmios contrastam com o desespero evidente das obras, que acenam enlouquecidas para o público para chamar a atenção sobre o que se passa, mas esse gesto é soterrado pelo que chamam de glamour (a mais execrável palavra desta década). Os protagonistas morrem ou sobrevivem marcados pela barbárie , que é a vingança dos medíocres contra a civilização pautada pela paz e o conflito ordenado pela lei. O ressentimento dos bárbaros arrastam na lama ou fuzilam com um tiro na cabeça, em série, os pacatos cidadãos desarmados. Mas não há piedade no cinema de extermínio. Polanski, que supera todas suas obras anteriores com O Pianista, denuncia a omissão dos poloneses diante do invasor, a divisão interna nas comunidades e famílias, que deixam a nação à mercê da bandidagem, e a conivência dos conterrâneos que fazem o serviço sujo da polícia do gueto. Von Triers acusa a falsa aparência da cidadezinha isolada e temente a Deus, colocando os seres humanos que nela sobrevivem como os carrascos de hoje e que manifestam sua ferocidade quando encontram uma chance. E Iñhárruti reporta a indiferença assassina dos moradores das metrópoles mergulhadas no caos. Não há inocentes porque o Mal venceu graças à passividade e ao pânico da cidadania.

ROSNAR - Esses cineastas mantêm vivo o chamado cinema de autor, em plena hecatombe comercial hollywoodiana. São filmes que ficam cercados nos circuitos dos cinemas e agora dos dvds. Não chegam à TV aberta, tomada pela brutalidade audiovisual. Mas como não há inocência nos personagens, também não há entre os cineastas. Von Triers me invoca. Quer dizer que o Mal reside no ermo e o Bem vem de fora, de alguém que precisa provar que existe humanidade nas pessoas? A outsider se decepciona com a reação dos seus hospedeiros e vai até o osso da auto-punição, deixando-se torturar por idosos, idiotas, brancos ou negros, mulheres e crianças, camponeses ou aposentados. O intelectual da cidadezinha é uma síntese do escritor fundador, como Mark Twain, que inventa a nação pela literatura, mas é impotente (também por ser culpado) diante da crescente crueldade, que salta na tela depois de rosnar o filme todo. A vingança da forasteira é desejada pelos espectadores do filme, pois essa é a justiça existente hoje, quando a Lei é letra morta e as armas ditam comportamentos e destinos. O público já está domado no horror e Von Triers (talvez seja essa sua denúncia) nos faz ver o quanto somos cruéis por torcer pelos gângsters contra a representação de nós mesmos, a população sem voz na mãos dos mais variados tipos de algozes.

FOCO - Como em "Amores Perros", Iñárrúti coloca um ponto focal da narrativa, um acidente de carro. Tudo o mais gira aos pedaços, como um gigantesco quebra-cabeças, onde as relações humanas são ditadas pela carência e o medo, e a morte é a única certeza. O cinema de extermínio não nos mata, apenas nos diz que estamos agonizantes. Ou talvez estejamos já do Outro Lado, olhando catatônicos o que fizemos da vida na terra. Mas nem tudo morre, porque há autoria e cinema de primeira grandeza. A arte sobrevive e retoma a peça musical interrompida pela guerra. O marido agônico e pai de família volta para casa. A viúva espera um filho. E Dogville sucumbe para que voltemos à lucidez perdida. Estamos vivos e esta é a nossa única chance. Ainda temos 21 gramas, o peso da alma, em nossas existências escassas.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Adrien Brody no gueto de Varsóvia na obra-prima "O Pianista", de Roman Polanski. 2. O Cine Diário da Fonte é patrocinado e programado por Miguel Duclós. A seqüência de filmes obrigatórios tem sido indicação dele, participante ativo do circuito da sétima arte. Ontem, 29 de maio, Miguel completou 28 anos de vida, fato comemorado pelas suas inúmeras amizades, que enviaram votos de saúde e felicidade. O DF junta-se aos convivas e deseja longa e proveitosa vida ao Miguel, com quem tenho o privilégio de conviver neste mundo com raras pessoas que têm algo a dizer e a mostrar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário