31 de maio de 2006

UMA FRESTA PARA O SONHO





América é um sonho planetário, construído por imigrantes do mundo inteiro. No cinema, foi formatado por grandes artistas de mais de um continente, como o siciliano Frank Capra, o americano John Ford, o polonês Samuel (Billy) Wilder e o húngaro Mihaly Kertesz (Michael Curtiz). Mas, principalmente nesta época Bush, o sonho foi seqüestrado pela xenofobia, o imperialismo e a direita. Por isso ele hoje fica confinado, preso por trâmites burocráticos, por leis providenciadas em cima do joelho, manipuladas por autoridades dogmáticas. É fora de moda resgatar o sonho da nação que se reconheceu livre e acabou virando um império como qualquer outro. Se você fizer qualquer menção simpática ao velho sonho, já sabe: acaba sendo acusado do que você não é nem jamais será. Mas esse é o preço que se paga por ter o espírito livre. Não livre dessa liberdade da bandeira estrelada que sepulta soldados que morreram no estrangeiro, mas de um outro tipo de liberdade, a que se liberta dos caixões de ouro e prata em que a colocaram.

JAZZ - Hoje, o sonho sobrevive em alguns lugares especiais: clubes de jazz e filmes como O Terminal, de Steven Spielberg. O mistério é: como esse tipo de filme leve, emocionante e com sobrecarga do humano consegue funcionar depois de tantas mudanças no cinema? Qual o segredo? Não há dúvida de que duas colunas mestras sustentam esse tipo de obra: o roteiro e os atores (aqui, a palavra ator é usada na boa e antiga solução de linguagem do comum de dois, soterrada depois que o pseudo-escritor José Sarney inventou o "brasileiros e brasileiras", agarrado por unhas e dentes pelo genericamente correto). O script precisa estar vivo, apesar de obedecer a alguns princípios. Nada a ver com as fórmulas prontas, o empilhamento de tijolos da atual fase de Hollywood. E o ator principal precisa ser alguém como Tom Hanks.

MOÇO - É fato que Al Pacino é o maior ator vivo, mas Tom Hanks corre por fora, exatamente por não expressar, nas suas atuações, nenhuma pretensão quanto a isso. Seu trabalho excede a mera empatia ou o jeitão de bom moço. Ele é um comediante de primeira água, um ator dramático que nos gruda na tela e um criador de tipos inesquecíveis, raros no cinema de hoje e que nos remetem às grandes performances clássicas. Pouco ou nada fica a dever a Gary Cooper, Cary Grant ou James Stewart, esses bons sujeitos que já nos levaram para o território inesquecível da arte completa. Por ser essa obviedade mais do que explícita, muita gente esconde que admira Tom. Pois eu confesso: esse, para mim, é o cara. E Spielberg, quando não faz bobagem, acerta no veio.

ANDAR - O que há de excepcional em Tom Hanks neste filme? É que ele concretiza a imagem que os americanos fazem das pessoas do Leste europeu. É assim que eles são vistos e Tom, por ser o americano por excelência, compõe o personagem a partir do que pensa dele. Essa é a única maneira de a América perceber o Outro: por meio da caricatura, que só o espetáculo pode realizar e, quando há vontade, ser desmascarado, tornar-se humano. Tom assume esse papel e cria Viktor, o homem preso no terminal JFK, em Nova York, por meio da sua maneira de andar. Caminha de pernas abertas, jogando os pés bem para o lado, como se estivesse atirando os sapatos para longe. Curva-se um pouco para mostrar rigidez na espinha (e na própria identidade), o que coloca o peito para a frente, os joelhos dobrados, as ancas duras. A voz, claro, é gutural, pois o Outro, para a América dita civilizada, vem sempre de alguma caverna pré-histórica.

CONCESSÕES - Mas o personagem se humaniza na medida em que consegue aprender inglês, a ganhar dinheiro, fazer amizades, namorar e peitar a segurança. Ele faz todas essas concessões para poder romper o isolamento e realizar seu projeto: o de conseguir a última assinatura de um gênio do jazz que faltou à coleção do pai já falecido. O sonho assim está agora muito perto, mas a atual fase da América impede que ele chegue lá. Falta ao Estado compaixão, como disse o velho chefe de segurança do aeroporto, que está por se aposentar. A compaixão definiu o país, diz ele. O que há é exclusão, fazendo com que os foragidos do mundo em guerra, acumulados no mesmo terminal, acabem se encontrando e formando um círculo de solidariedade. Esse pacto influi no ritmo do aeroporto e acaba sendo definitivo para que o protagonista vá até o músico, ídolo do seu pai, e consiga o autógrafo que faltava.

PASSAPORTE - Mas não há mais clima para a imigração. Num recado direto, o filme coloca Viktor de volta à sua terra, que agora encontrou a paz depois de um golpe de estado. Home ( de "não há lugar melhor do que a nossa casa", de O Mágico de Oz), nesse caso, não é mais a América, mas a terra natal. Desde que, na bagagem, seja possível levar um tesouro: a identificação com o que a humanidade produz de melhor, único passaporte para uma vida verdadeira.

RETORNO - Imagem de hoje: Tom/Viktor preso no JFK - o Outro, sem passaporte, não entra em Nova York nem consegue voltar para a pátria em guerra.

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