28 de julho de 2006

NÃO HÁ LIMITES PARA A CARA DE PAU






Vi ontem a Condoleezza Rice sentadinha ao piano tocando algo muito triste de Brahms em homenagem aos mortos da Guerra do Líbano. Sinal de que a direita nos impõe um outro tipo de reação, pois não adianta mais a emoção, a indignação e a arte para denunciar a barbárie. Eles também usam isso e com vantagens, pois estão no centro do palco. É preciso algo mais. Política, talvez. Mas aí você se entrega à arena onde eles dominam. O fato é que a cara de pau tomou conta do mundo e parece não haver remédio.

ARTIGALHÃO - Li dias atrás o Jarbas Passarinho fazendo o balanço de um século no seu artigo da página 2 do Estado de São Paulo, lamentando a atual situação do país, que no fundo foi gerada por ele (e seus comparsas do golpe de 64) ao sucatear a educação brasileira destruindo o Primário, que nos alfabetizava de fato (hoje, 53% dos alunos da quarta série do Primeiro Grau não sabem ler e escrever), o Ginásio, que nos ensinava línguas, álgebra e alta literatura, o cientifico, que nos preparava para a matemática superior, os fundamentos da física e da biologia. Colocou no lugar essa coisa amorfa de Graus sem nenhum rito de passagem, ou seja, aparentemente sem conflitos. Você tinha que enfrentar a barra logo na quinta série: o exame de admissão ao ginásio. Hoje se passa todo mundo por decreto. Ginásio e científico se misturaram, ou seja, não existem mais. Ficaram algumas matérias, mas sem a profundidade com que eram ensinadas. Se você reprovava numa das 11 matérias, repetia todas. Quem não queria estudar saía ou era expulso. Não tinha colher de chá.

DESESPERANÇA - E temos a televisão. Ontem, o Domingos Meirelles apresentou uma reportagem sobre o massacre da Candelária, abordando o assunto como se fosse um fato em si, sem nenhuma ligação com a situação brasileira, como se fosse um acerto de contas entre policiais e menores, e não um episódio da militarização da sociedade implantada em 1964, da impunidade da ditadura civil, consolidada em 1985, da escalada da violência e da destruição do sistema de segurança, do qual o PCC é um dos resultados. Foi algo muito específico, claro. Assim fica mais fácil dar o recado no final do programa: deposite uma grana no Criança Esperança. O problema não é de caridade ou bons sentimentos, é de políticas públicas, de estratégias nacionais, de engajamento sério das lideranças, de programas efetivos de distribuição de renda, que atinja o coração do sistema econômico e não apenas sua periferia. Mas é assim: ficou assustado? Ligue, que a Globo saberá o que fazer com seu dinheiro, ou melhor, com a sua culpa ou o seu pânico.

ROTEIRO - No meu artigo sobre os roteiristas, não tinha citado o Charlie Kaufman, dos filmes Quero ser John Malkovitch e Adaptação. O primeiro eu já tinha visto e achei bizarro e uma celebração do ego desse ator asqueroso que é o Malkovitch (aquele ar esnobe, aquela boquinha túmida, aquelas frases ditas em tom de duquesa para mordomo). Mas o roteiro é criativo e até mesmo espantoso. Mas o segundo é absolutamente primoroso, pois, serpente que morde a própria cauda (imagem usada pelo próprio Kaufman), é um filme sobre roteiros e roteiristas. O próprio se divide em dois, gêmeos. Um quer fazer algo forte e importante, como os roteiros que citei no meu artigo. O outro usa uma série de clichês. O artista dividido entre a arte e o comércio se envolve numa barra pesada, no fundo fruto de sua própria rendição ao sistema. Foi-se o tempo do trabalho autoral, em que Fellini e Bergman nos deslumbravam com suas obras-primas. Agora estamos no meio do tiroteio, ao som de Brahms tocado pelos próprios algozes que decidiram tacar fogo no mundo.

DESCONFORTO - O problema é que o mundo oferece muito conforto. É muita tecnologia e alimento à disposição de quem tem alguma renda fixa. É muito acesso à cultura e à informação, basta você querer. Então ficamos sós, achando que estamos sendo acompanhados. Ninguém liga para ninguém. Não há interesse em prestar atenção nos seus pares, saber o que os outros estão fazendo. Atualmente, estou lendo um livro de poesia que é um assombro e sobre o qual farei uma resenha. É um livro poderoso, que alguns seres desumanos da direita estão usando como penduricalho, como troféu, sem ler, claro. Para ler é preciso concentração, determinação, pesquisa. Esforço árduo que o mundo de hoje, com todo o seu conforto para as minorias, não permite, por meio da política suja, da escalada da direita, do terror crescente. Como assim, destruir pessoas pacíficas no Líbano? Tudo vai ficar por isso mesmo? Deixem Brahms fora disso.

RETORNO - Imagem de hoje: Merryl Streep em cena de "Adaptação", roteirizado por Charlie Kaufman e dirigido por Spike Jonze, que tem ainda no elenco Nicolas Cage (sempre ele) e Chris Cooper, que ganhou um Oscar de melhor ator coadjuvante com este filme.

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