13 de julho de 2006

PASSO MIÚDO





Nei Duclós

Aos poucos, Febrônio descobriu que não existiam mais velhos no país. Os que deviam ser anciãos estavam fantasiados de papagaio e dançavam a rumba em eventos de Terceira Idade. Ninguém mais usava, como ele, chapéu de feltro, ou manta para este inverno que não se instala de forma definitiva, deixando claros de veranicos a assanhar a passarinhada da praça. Havia um surto coletivo no ar. Ele sentia a vibração mesmo antes de sair, quando olhava os sapatos pretos lustrados, a calça de lã com bainha italiana, o casaco xadrez e a camisa de flanela abotoada até o pescoço. Sentia desconforto. Não dispunha de amigos para repartir as horas. E não tinha vontade de participar da arenga sobre os benefícios da qualidade de vida. Nem ficava de olho nos privilégios das pessoas que, como ele, tinham cruzado o cabo da Boa Esperança.

O mais chato era que não podia conversar sobre a morte. Talvez o fato de estar cercado pela guerra civil fosse um empecilho. Refletia sobre esse paradoxo ao não compartilhar com o entusiasmo das rodas que se formavam para comentar as últimas atrocidades. Também não engrossava o tumulto dos que acorriam para a frente do quartel da polícia, atraídos pelo som das sirenes e aos gritos de "pegaram o tarado", ou o louco, ou o bandido. Não era esse tipo de impacto que precisava desfrutar num convívio de pessoas com idade próxima do primeiro século de vida. Ele sentia falta do segredo que existia anos antes, e que costumava cercar as mortes com algum mistério. Não considerava essa falta que sentia como um desvio de conduta. Achava normal fazer a morte sentar-se ao seu lado para uma conversa. Ela sabia contar histórias.

O fato é que o excesso da morte tinha inviabilizado o suspense. Os corpos se amontoavam sem que houvesse tempo para o debate, o sussurro, o conluio entre teses, posições. Não se podia contrapor, raciocinar, investigar, procurar informações. Tudo se atropelava num clima de Juízo Final sem julgamento. Não havia tempo, nem disposição, para entender direito o que tinha acontecido. Hoje tudo parecia claro demais. O padrasto que matou mulher e enteados, a avó que enfrentou o neto drogado, todos se envolviam em coisas óbvias. Os assassinos confessavam, se entregavam ou apareciam na televisão para logo depois serem capturados. Não havia uma chave falsa, uma pista, um frasco de perfume, partido, embaixo da cama.

Tudo era decifrado pelo DNA e o que ainda permanecia oculto obedecia aos velhos ditames da política e da corrupção. Os habitantes do país se atiravam à carnificina no trânsito ou nas festas de fim de semana como se quisessem fugir definitivamente, furar a fronteira, aportar em outros territórios, que estivessem livres do astral que tomou conta de apartamentos, botecos, cinemas. Febrônio tinha perdido para sempre a nação que o criara, e passeava pelas ruas tendo de aturar os berros dos camelôs. Os bancos da praça continuavam lá, mas era temerário se aboletar em qualquer um deles. A mendicância e a loucura faziam ponto nos últimos espaços públicos e, derrotado, ele voltava para casa a pé, já que cansara de aturar desaforo de motoristas revoltados com sua condição de velho não pagador de passagem.

Chegava em casa e abria a veneziana. Morava no mesmo lugar a maior parte da vida. Lá, no pequeno quintal, protegido por alto muro que mandara construir, sentava no seu banco favorito e aguardava os pássaros migratórios que teriam de passar muito acima dos fios. No rádio já não tocavam mais música e o que havia era um discurso interminável, de religiosos, políticos, artistas, anúncios. Harmonia, melodia, letra tinham sido erradicadas, pois eram recursos que não compactuavam com o ambiente de desordem. Gostava de estar com a cabeça desocupada, para pensar nos crimes famosos, nos detetives idôneos, nas mulheres fatais que conseguiam sair ilesas, e nos velhinhos criminosos que acabavam caindo na própria armadilha.

Talvez fosse isso! Os velhos continuavam suspeitos, mas agora se faziam de vítimas para driblar as investigações. E quem disse que ainda existiam investigadores? Esses tinham se desviado de fato de suas condutas, acomodados graças à proliferação dos denunciantes. Não gostava de certas palavras como alcagüete, próstata, tripartite. Quando as ouvia, ou algo parecido, sabia que morava no pesadelo da linguagem. Fora escrivão a vida toda e as palavras eram precisas, sintonizadas com os depoentes, que eram articulados, alfabetizados em sua maioria ou pelo menos tinham o primário bem feito. Agora não entendia nada, a começar pelos nomes. Joilton, Jordinelson, Aricleide? Onde estavam as Aracis, os Gessys, as Brígidas, as Titas e até mesmo os Febrônios?

Tinham sumido pelas mãos de cartórios desonestos. Esses, aceitavam tudo porque neles trabalhavam os retardados que na época de Febrônio eram os últimos da classe. No fundo, os sujeitos reprovados tinham tomado conta da nação. Destruíram as escolas, esconderam os melhores livros, erradicaram os nomes bíblicos para que o país sumisse junto com sua população, agora batizada com nomes híbridos, massacrada e de coração seco. Tinham até acabado com os velhos, que hoje viviam a brincar de roda, fantasiados de periquita ou fazendo propaganda de estimulantes de riscos cardiovasculares.

Febrônio mantinha-se bem vestido dentro de casa e aguardava a chaleira chiar para fazer seu café. Depois, sentava no banco favorito a esperar as aves. O barulhão dos motores na avenida próxima, os gritos dos adolescentes armados, a serra elétrica em alguma construção próxima, tudo o rodeava nesse final de tarde, quando suspirava por uma boa conversa. Sim, ele estava velho. Sim, queria conversar sobre a morte. Não, não queria se iludir com a melhor idade. Febrônio era um caso sem cura, mas seu desencanto era fruto do que o mantinha intacto: uma vida plena, vivida no passo miúdo do país que um dia fora soberano e que agora se esvaía junto com as nuvens coloridas.

No lugar do arco-íris, uma grande lua suspeita mostrava o brilho da sua coroa. A noite se aproximava para que ele voltasse a sonhar.

RETORNO A - A professora Iracema Torquato escreveu o seguinte comentário sobre este conto, publicado ontem no espaço Literário do Comunique-se: "A cada imagem construída pelo narrador, vou (como leitora) também construindo mentalmente as minhas. E é como que eu pudesse sussurar: "Febrônio, você não está só"". Agradeci a sensibilidade de Iracema dizendo que a leitura viabiliza o conto e assim a literatura não fica só. Também no espaço dos comentários do Comunique-se, a jornalista Vera Lucia Felix enriquece o olhar sobre a pequena história: "Nei: O seu conto é belo e melancólico, nos faz enxergar em 'flashs', além da vida do Febrônio; bem como a Iracema o descreveu."

RETORNO B - 1.Imagem de hoje: foto de Regina Agrella. 2. Recebo o livro descrito a seguir pela assessoria de imprensa. Tive o privilégio de conhecer Jakzam e Werner pessoalmente:
"Aventura, viagem, emoções...No dia 13 de julho, ocorrerá o lançamento do livro Aventura no Caminho dos Tropeiros - A cavalo, da Lagoa dos Patos a Sorocaba. A publicação, de autoria de Jakzam Kaiser, com fotos de Werner Zotz, faz parte da Coleção Expedições, da Editora Letras Brasileiras.Um dos diferenciais da coleção é que as aventuras realizadas podem ser repetidas pelos leitores. O livro traz serviços com contatos, roteiros, indicações de hotéis e dicas. Mais do que uma obra de aventura, é uma narrativa literária que transcende o simples relato da viagem.
Para escrever e fotografar, Jakzam e Werner realizaram cinco saídas, cada uma de uma semana a 10 dias de duração, entre junho de 2005 e fevereiro deste ano. Cavalgaram na Lagoa do Peixe (entre a Lagoa dos Patos e o Atlântico) e nos Campos de Cima da Serra (São Francisco de Paula, Jaquirana e Cambará) no Rio Grande do Sul; na região da Coxilha Rica, em Lages, Santa Catarina; em Lapa, São Luís do Purunã e Tibagi, no Paraná, e em Itararé e Capão Bonito, São Paulo. Ao todo, se fosse para fazer uma conta corrida, seriam 15 dias em cima do cavalo, numa distância de mais ou menos 300 km, o que representa 20% do total do Caminho do Viamão. O livro ainda traz as emoções da viagem. As pessoas que eles encontraram pelo caminho deram aulas de cultura, gastronomia, história, costumes e artesanato, o que enriquece ainda mais a obra. As imagens também falam por si. Em alguns locais, aonde se chega somente a cavalo, as fotos inéditas são um complemento perfeito para a narração.A Coleção Expedições não pára por aqui. Nesse modelo, já foram publicados dois livros: "Aventura no Fim do Mundo" e "Aventura no Rio Amazonas". Após o lançamento da "Aventura nos Caminhos dos Tropeiros", mais viagens já estão agendadas. Descer o litoral brasileiro desde Fernando de Noronha até Florianópolis será a próxima aventura. Tudo, é claro, com a preocupação de que os leitores possam repeti-las depois.A editora Letras Brasileiras também inaugurou o novo site.
Serviço
Lançamento do Livro Aventura no Caminho dos Tropeiros - A cavalo, da Lagoa dos Patos a Sorocaba
Dia: 13 de julho de 2006
Horário: 19h às 21h
Local: Livrarias Curitiba Megastore do Shopping Estação, em Curitiba
Mais informações: (41) 3330-5118
Hellen Quevedo Homepage 07.11.06 - 2:03 pm #"

Nenhum comentário:

Postar um comentário