10 de agosto de 2006

EIS REDENTOR, UM FILME E TANTO




Rodeei, desconfiado, várias vezes pelo dvd de Redentor, o filme de Cláudio Torres, antes de ceder à curiosidade. Tem ator global demais e parecia à primeira vista uma comédia ligeira. No making off, depois que vi o filme e fiquei impressionado, alguns participantes juram quem é feito mesmo para rir, mas os sites de cinema batizam de maneira certa: é drama, e dos pesados. Confunde porque ele é protagonizado por Pedro Cardoso, atualmente nosso comediante maior. Mas é drama, todo ele calcado em Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder. É a mesma história: o cara está morto e conta porque morreu. E morreu porque , escritor (no caso do filme brasileiro, repórter), se vendeu para alguém. Em Redentor, para o amigo da infância. Na obra-prima de Wilder, para a estrela decadente. Não se trata de um remake, uma refilmagem, mas o aproveitamento e adaptação de um mote: a lucidez provocada pela corrupção. O arrependimento vem do desastre, da queda, que leva à denúncia. Torres encontra em Wilder o mestre para abordar o Brasil de Sergio Naya,o construtor da Barra da Tijuca que caiu em desgraça. Claro que com outro nome, bem parecido, Saboya.

Redentor é um filme crespuscular. É sobre a morte de uma civilização, a do Brasil, que se transformou num porão mal assombrado. Disseca o passaporte para a violência, a esperança, pois é a boa fé sem cidadania que alimenta os tubarões da construção civil, da polícia e da política. É um filme que não brinca de fazer cinema. Faz de maneira convincente, com suas cenas fortíssimas, como a final, quando uma pessoa pode ser jogada no abismo. Há interpretações excelentes em todos os níveis. A mais brutal é de Miguel Falabela, o herdeiro corrupto que coloca o amigo na cadeia, se mistura com o tráfico de drogas e acaba sendo pressionado para se arrepender. Falabela tem um carisma e uma concentração que cinzelam a tela. Mas ele não esta só.

Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Stenio Garcia, Paulo Goulart e Camila Pitanga invadem a narrativa com fúria, ressentimento, dor, desesperança. Nada é pequeno em Redentor: cenários como Brasília sob a bomba atômica, ratoeiras em forma de edifícios, coberturas amaldiçoadas, lixos, cadeias pútridas. Há gritos, estertores, num clímax operístico permanente, como se estivéssemos diante de Terra em transe, de Glauber, e Pedro Cardoso fosse tão surtado quanto Jardel Filho, falando com Deus e exercendo vingança. É um mergulho doloroso no Brasil e não pode ficar preso a uma estante da locadora. É preciso levá-lo pra casa e navegar na sua agonia lenta em direção às profundezas do Mal.

O povo contaminado pela ditadura financeira, os aproveitadores que fazem qualquer coisa para livrar a cara, o jornalista que pensa poder escapar da arapuca, tudo nos leva de roldão neste filme surpreendente, uma super-produção embalado pelo som do Guarani, de Carlos Gomes. É, como disse alguém, o nosso Ben-Hur: o herói que ficou desaparecido nas galés volta para a grande corrida de bigas. E acaba como William Holden, morto na piscina no filme de Wilder. Deitado sobre sacos de lixo, de gravata desapertada, esse Pedro Cardoso hilário e tocante, como um Macunaíma revisitado, nos leva pelos becos de uma tragédia, o Brasil que perdeu o prumo e berra diante da catástrofe.

Eis Redentor, um filme e tanto. Marca do que melhor podemos produzir nesta retomada cheia de gás.

RETORNO - Fernanda Montenegro e Pedro Cardoso em Redentor: uma visita ao país-porão.

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